domingo, 24 de novembro de 2024

Para sobreviver ao mar de dados

Escolas do Piauí apostam na literacia digital como ferramenta de combate à exclusão e desinformação on-line

28 de junho de 2023

Seja em um espaço público ou no conforto do lar, a internet desempenha um importante papel na socialização e no acesso a oportunidades. Com o avanço constante da tecnologia e a digitalização cada vez mais presente em diversas esferas da sociedade, aqueles que não têm acesso aos recursos digitais e habilidades necessárias para utilizá-los acabam sendo excluídos. No entanto, o acesso à internet sem o letramento digital pode levar a perigos e desordens de informação, como o consumo e propagação de conteúdos falsos, frequentemente sensacionalistas, manipulados para parecer informações confiáveis.

Diferentes exclusões

A exclusão de digital é marcada, em parte, pela falta de acesso à internet, relacionada às oportunidades que indivíduos possuem para se conectar a esse recurso. Nesse contexto, entram em questão as disparidades socioeconômicas e a demora na implantação de  infraestruturas, especialmente nas áreas rurais.

O pesquisador de tecnologias digitais aplicadas ao ensino e professor do Colégio Técnico de Floriano, Ribamar Júnior, explica que o primeiro passo para  reduzir as desigualdades de acesso e a falta de habilidades digitais começa pelo ensino. “As escolas, primeiramente, também precisam ser incluídas digitalmente. Nosso país tem baixíssimos índices de “escolas digitais”, se levarmos em consideração seu tamanho e as milhares de escolas nas cidades dos interiores que estão aquém dessa realidade”, ressalta. 

No entanto, apenas a conexão com a rede não resolve todos os problemas associados à falta de acessibilidade digital. Além da exclusão de acesso, é fundamental enfrentar o desafio da exclusão de uso, que se refere à falta de habilidades digitais que impedem as pessoas de utilizar efetivamente a tecnologia. Para Ribamar, a inclusão deve ocorrer a partir de um esforço contínuo para a educação e literacia digital dos alunos. “São precisos projetos interventivos para oferecer, instruir, dar acesso a alunos que não têm tecnologias e internet em casa. Computadores e internet numa escola não são pra ficar pra direção da escola guardar, mas para os alunos em geral usarem. Particularmente, meus alunos naturalmente promovem práticas digitais, nas várias ações que realizamos com multiletramentos”, explica.

O letramento digital é uma das formas de lidar com a exclusão de uso, pois amplia os conhecimentos e habilidades na interação com ambientes digitais. Isso inclui domínio das práticas de escrita e leitura, estratégias de pesquisa eficaz, capacidade de selecionar informações relevantes e discernimento para identificar as fontes confiáveis na busca por conteúdos. Ribamar observa que, a partir desse letramento e o acompanhamento escolar sobre o uso das tecnologias digitais, os alunos desenvolvem  habilidades com muito mais rapidez e eficácia. “Eles passam a ser mais cuidadosos na pesquisa e curadoria, realizam melhor suas práticas, aprendem rápido o manuseio com sites, apps e programas. O letramento digital é contemplado de forma completa. Isso deixa e torna o aluno mais protagonista e mais autônomo”, conta.

Estudo e acesso

Segundo dados divulgados pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br), foi constatado que no ano de 2021, 84% dos estudantes que moravam em áreas urbanas não tinham dispositivos ou acesso à internet em suas residências. Já na zona rural, esse número foi ainda mais alto, alcançando 92%. A diretora do CETI Portal da Esperança em Teresina, Maria do Socorro Magalhães, confirma essa realidade, enfrentada por muitos alunos da instituição que residem na zona rural e não possuem acesso a computadores ou celulares em suas residências. Para enfrentar esse problema, o instituto estabeleceu uma parceria com o NAU Digital, um projeto piauiense que promove a inclusão digital de estudantes de escolas públicas no Piauí. A partir desse trabalho em equipe, a escola reabriu o laboratório de informática, que estava subutilizado, para oferecer cursos básicos e avançados de informática, proporcionando aos estudantes uma familiarização com o ambiente virtual.  “A escola se tornou um ponto de conexão importante para esses alunos, proporcionando acesso à tecnologia e contribuindo para o desenvolvimento de sua capacidade crítica. Através desse projeto, estamos incentivando os alunos a se tornarem mais críticos e a participarem ativamente em sala de aula”, conta Maria do Socorro.

Diretora do CETI Portal da Esperança, Maria do Socorro Magalhães em evento escolar

Perigos em um mar de informação

Devido à importância central que a internet e as mídias sociais ocupam na rotina da população, os perigos desses ambientes também se tornam mais frequentes. Um levantamento realizado pelo Poynter Institute aponta que, no Brasil, 4 em cada 10 pessoas afirmam receber diariamente notícias falsas. Os resultados da pesquisa, realizada em 2022, mostram que 43% dos brasileiros admitiram ter compartilhado acidentalmente informações incorretas, como postagens, vídeos, imagens ou notícias, apenas para perceberem posteriormente que se tratava de desinformação, ou a chamada fake news. 

O estudo conduzido pela Poynter também revelou que os jovens, especialmente aqueles da Geração Z, entre 18 e 25 anos, são os mais propensos a assumir a responsabilidade pelo compartilhamento dessas informações enganosas.  No contexto da inclusão digital, é crucial abordar a questão das fake news. A exposição constante de crianças e adolescentes a uma grande quantidade de informações os torna mais propensos a acreditar e compartilhar informações falsas, devido à falta de uma análise crítica adequada. É necessário considerar a importância da inclusão no acesso e uso da tecnologia digital pensando na capacitação dos indivíduos para discernir e questionar a veracidade das informações antes de compartilhá-las, principalmente entre os mais jovens.

Diante desse cenário, o professor do CETI Portal da Esperança, Tiago Rabelo, desenvolve atividades de produção de vídeos que abordam a temática da desinformação e que incentivam a maior familiaridade dos alunos com as ferramentas digitais. Segundo ele, as atividades buscam a conscientização sobre os perigos da disseminação de informações falsas e o desenvolvimento de habilidades críticas entre os jovens. “Esse é um assunto extremamente atual, por isso é necessário saber mais para evitar cair em golpes, armadilhas e notícias falsas que são amplamente divulgadas por meio do WhatsApp e outros canais de comunicação. Ao terem explorado o assunto na escola e produzido vídeos, os estudantes ficaram mais aptos a entender sobre o assunto”, ressalta.

Professor Tiago Rabelo durante projeto pedagógico interdisciplinar sobre os perigos da fake news

A produção do conteúdo também desempenhou um papel fundamental ao promover a familiarização dos estudantes com as tecnologias digitais por meio da utilização do laboratório de informática e das aulas ministradas no âmbito do projeto Nau Digital, estabelecendo uma integração entre as disciplinas envolvidas.  “Eles cuidaram de todas as etapas, desde a criação do roteiro até os ensaios e a edição do vídeo. Mas eles também utilizaram o laboratório de informática da escola, que estava disponível. Além disso, eles pesquisaram e escolheram os programas e aplicativos mais adequados para o estilo de vídeo que queriam produzir, sendo supervisionados pelos professores”, conta Tiago.

Leia mais: [Navegando rumo à inclusão]

Airana Raquel, estudante do primeiro ano que participou da atividade, relata que antes não tinha muito contato com tecnologias digitais e computadores. No entanto, desde que começou a participar das aulas oferecidas pelo projeto Nau Digital, passou a ter mais acesso ao conhecimento em informática. Essa experiência tem proporcionado a ela uma maior familiaridade e habilidade no uso dessas tecnologias, inclusive na produção de vídeos sobre desinformação. Airana destacou a importância de estar vigilante em relação ao consumo de informações no ambiente virtual. “Acredito que é crucial verificar se as informações são realmente verdadeiras, pois muitas pessoas apenas repassam sem checar, o que acaba causando problemas. É importante que as pessoas pesquisem a fundo e verifiquem a veracidade dos sites”, relata.

Airana durante exibição de vídeo-tutorial sobre desinformação e mídias digitais

A ausência de habilidades adequadas para avaliar a veracidade das informações leva as pessoas a acreditar e compartilhar conteúdos falsos, amplificando sua disseminação. Isso resulta em uma sociedade mal informada, onde boatos e desinformação se espalham rapidamente, prejudicando a tomada de decisões e minando a confiança nas fontes de informação confiáveis. Airana relata que o grupo dela se dedicou à criação de um vídeo com o propósito de conscientizar as pessoas sobre as fake news e destacar a relevância de não compartilhar informações falsas, uma vez que isso pode acarretar problemas significativos para a sociedade. “O nosso vídeo retrata um caso de fake news relacionado a um massacre em uma escola, que foi compartilhado sem verificar sua veracidade. Isso gerou muito tumulto entre os alunos. No final, explicamos às pessoas o que elas podem fazer para evitar repassar esse tipo de notícia”, explica.

Riscos na rede

O Glossário essencial da desinformação, divulgado pelo Trust Project,  iniciativa que avalia a credibilidade do jornalismo, afirma que nem todas as “desordens das informações” são iguais.  Segundo o Glossário, existem três tipos específicos: a primeira delas é a informação incorreta, também conhecida como “mis-information”, que ocorre quando informações falsas são compartilhadas sem intenção de causar danos. Nesses casos, as pessoas podem inadvertidamente disseminar informações falsas, muitas vezes devido a falta de verificação ou compreensão inadequada do conteúdo. 

Já o segundo tipo, a desinformação, ou “disinformation”, ocorre quando informações falsas são compartilhadas conscientemente com o objetivo de causar danos. Isso pode ocorrer por meio da disseminação deliberada de notícias falsas, teorias da conspiração ou manipulação de fatos para influenciar a opinião pública ou atingir determinados objetivos. Outro tipo de desordem da informação é a mal-informação, ou “malinformation”, que ocorre quando informações privadas são publicadas sem consentimento, como a divulgação de dados pessoais sensíveis, difamação ou exposição de segredos para prejudicar indivíduos ou organizações. É importante estar ciente desses diferentes tipos de desinformação para desenvolver habilidades de discernimento e verificação de informações, buscando fontes confiáveis e corroborando dados antes de compartilhá-los. A promoção de um ambiente digital informado e responsável é essencial para combater os efeitos negativos da desinformação.

No radar

Diversas iniciativas têm como objetivo contribuir para a verificação de informações falsas, e uma delas é o Radar do Aos Fatos. Lançada em agosto de 2020 pela organização Aos Fatos, a ferramenta Radar monitora, em tempo real, conteúdos digitais suspeitos como desinformação e discurso de ódio propagados nas principais redes sociais. Essa ferramenta tem como objetivo identificar e analisar informações que possam estar associadas à desinformação, contribuindo para um ambiente digital mais seguro e confiável.

Informações colhidas pela ferramenta Aos Fatos sobre cenário da desinformação quanto à temática democracia

A equipe que gerencia o Radar delimita uma temática a ser investigada e identifica termos relacionados a ele. Inicialmente, o Radar focou na pandemia de Covid-19, mas agora também monitora o debate sobre o sistema judiciário e ameaças à democracia. Após essa seleção, são capturadas as publicações que contêm os termos relacionados ao assunto escolhido e o material passa por um processo para extrair informações relevantes, como conteúdo, autoria, imagens e vídeos. A partir dessa etapa, as publicações coletadas são avaliadas com base em critérios que procuram identificar se contêm termos associados a campanhas de desinformação e se possuem características de conteúdos de baixa qualidade. Cada plataforma é analisada de acordo com uma metodologia específica, considerando as particularidades de cada rede social.

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