“Nomes têm poder”. Essa é uma crença comum em muitas culturas, nas quais se acredita que ter conhecimento do nome de alguém ou de algo confere uma certa influência sobre essa coisa. Na tradição judaico-cristã, por exemplo, o conhecimento do verdadeiro nome de Deus é considerado poderoso e sagrado. Para além do aspecto religioso e místico, o nome que se recebe ao nascer, ou aquele que é escolhido durante a vida, forma uma ligação com a identidade e como você é percebido pelo mundo.
Os nomes podem ser poderosos símbolos carregados de significado cultural. Eles não estão limitados apenas aos seres vivos, pois até mesmo construções e objetos são nomeados. E é aí que Teresina enfrenta um impasse: a escolha do nome para o futuro Museu da Imagem e do Som, o MIS.
Uma das razões históricas para dar nomes às construções está ligada à sua função ou propósito. Por exemplo, na antiguidade, templos, palácios e monumentos eram frequentemente nomeados em honra a deuses, reis ou figuras históricas importantes. Esses nomes ajudavam a estabelecer uma conexão simbólica entre o edifício e a entidade homenageada.
Atualmente, a tradição de dar nome às construções continua viva. Nomear imóveis também é uma questão de ordem prática, para facilitar a identificação da propriedade de maneira clara e eficiente. Também é comum batizar edifícios em homenagem a pessoas notáveis, como líderes políticos, filantropos, artistas ou figuras históricas importantes. Os nomes considerados para o Museu da Imagem e do Som cumprem com esse objetivo, o de reconhecer e valorizar o trabalho dedicado à realidade cultural da capital.
Nomes de renome
Em 2016, a Câmara de Vereadores de Teresina aprovou por unanimidade a proposta do vereador Dudu (PT) para nomear o Museu da Imagem e do Som, localizado no prédio da antiga Câmara de Teresina, em homenagem póstuma a Francisco das Chagas Júnior, produtor cultural e idealizador do Coletivo Salve Rainha Café Sobrenatural. Na época, o então prefeito Firmino Filho expressou seu apoio à iniciativa por meio das redes sociais, defendendo que o prédio fosse chamado de “MIS Júnior”. Durante a gestão de Firmino, também já se falava em celebrar a vida e obra de Torquato em algum dos espaços que vão compor o MIS.
No início deste ano, um grupo de 15 vereadores de Teresina propôs o projeto de lei 90/2023, visando nomear o Museu da Imagem e do Som como “Prefeito Firmino Filho” em reconhecimento às contribuições do ex-prefeito, que faleceu em 2021. No entanto, em junho de 2023, o Palácio da Cidade, sob a administração do atual prefeito, Dr. Pessoa, decidiu vetar a proposta e descartar o nome de Firmino para o MIS. O argumento é que o espaço deve ser nomeado em homenagem ao poeta piauiense Torquato Neto.
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É na tríade de nomes composta por Francisco das Chagas Júnior, Firmino Filho e Torquato Neto que reside o futuro nome do museu. Cada um deles representa contribuições para a cidade de Teresina e para a cultura em geral. Francisco das Chagas Júnior foi um produtor cultural e idealizador do coletivo Salve Rainha, que ocupou o antigo prédio da Câmara de Teresina e chamou a atenção para a necessidade de valorizar e revitalizar diversos espaços abandonados pelo poder público na capital. Foi na gestão de Firmino Filho em que foi dado o pontapé inicial para o desenvolvimento do Museu da Imagem e do Som. Torquato Neto, renomado artista piauiense, é uma figura importante da literatura e do audiovisual brasileiro. Sua obra e seu engajamento artístico tiveram grande influência na cena cultural do país, impactando o movimento tropicalista na década de 1960.
Para não virar um estacionamento
Localizado próximo ao cruzamento da Rua Barroso com Eliseu Martins, o prédio que abrigará o MIS foi construído na década de 1920 e inicialmente funcionou como Banco do Brasil. Em 1976, durante o mandato do Prefeito Major Joel da Silva Ribeiro, o espaço foi adquirido por meio dos esforços do então vereador Pedro Mendes Ribeiro para se tornar a sede do Poder Legislativo da capital. O espaço foi entregue à Câmara em 16 de junho de 1976 e aberto ao público em 16 de agosto, quando ocorreu a primeira sessão no local.
Devido ao aumento no número de vereadores e funcionários, o local tornou-se inapropriado para a realização das atividades da Câmara. Os gabinetes e as áreas administrativas não comportavam mais a quantidade de trabalhadores. Em 2009, os vereadores foram transferidos para o atual prédio da Câmara Municipal de Teresina, situado na avenida Marechal Castelo Branco.
Posteriormente, o prédio abrigou o Espaço da Mulher Empreendedora (CAMODA), que integrou o projeto Cidade Produtiva, viabilizado pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura de Teresina. Após o projeto, o espaço entrou em desuso.
Em 2014, o artista Francisco das Chagas Júnior, junto de amigos, fundou o Coletivo Salve Rainha com o objetivo de impulsionar a cultura local. Eles criaram um Café Sobrenatural itinerante, que combinava gastronomia com arte popular. O coletivo organizava temporadas de eventos temáticos que ocorriam aos domingos durante alguns meses do ano. Com a proposta de criar uma tecnologia social de preservação do patrimônio histórico-cultural de Teresina, esses eventos ocupavam espaços ociosos da cidade com instalações artísticas, exposições, performances e shows.
Entre 2015 e 2016, a história do Coletivo Salve Rainha se entrelaçou com a do antigo prédio da Câmara Municipal de Teresina. Eles enxergaram no imóvel a oportunidade de revitalizar o patrimônio histórico da cidade, trazendo à tona as possibilidades culturais desse espaço, que estava sem uso. O coletivo realizou uma série de atividades nesse ambiente, incluindo laboratórios de dança e publicação independente, práticas de yoga, aulas de taijutsu e ensaios de carnaval, como o Rainha das Águas. Se hoje esse espaço passa por reformas para abrigar o Museu da Imagem e do Som, é importante destacar a contribuição do coletivo ao apontar algo ignorado pelos gestores: a cidade pode valorizar sua história e cultura, revitalizar espaços abandonados e evitar que todo o centro se torne apenas um apanhado de estacionamentos.
E o perigo dessa febre de estacionamentos que põe abaixo o centro da capital apresenta sintomas visíveis logo em frente ao prédio que abrigará o MIS, mostrando que nem as ruínas da memória ficaram para contar história.
Sobre a importância de criar vida nos espaços esquecidos pela cidade, Francisco das Chagas Júnior e Torquato dialogam através dos tempos. No livro póstumo de Torquato, “Os Últimos Dias de Paupéria”, o poeta diz:
“Ocupar espaço, criar situações. Ocupa-se um espaço vago como também se ocupa um lugar ocupado: everywhere. E aguentar as pontas, segurar, manter […]. Ocupar espaço: espantar a caretice: tomar o lugar: manter o arco: os pés no chão: um dia depois do outro”.
Ao manter a “caretice” do lado de fora, as intervenções de ocupação promovem uma abordagem criativa e resgatam Teresina, incentivando a expressão artística e a diversidade cultural. A arte traz consigo uma visão transformadora do espaço, abrindo portas para diálogos e reflexões sobre a identidade, a memória e o futuro da cidade.
Contribuições que ultrapassam paredes
A escolha do futuro nome do MIS é baseada em três figuras que marcaram a história da cidade e cujos nomes não ficaram presos ao passado. São nomes vivos, que reverberam para além das barreiras materiais. Batizar um espaço que celebra a arte com um desses nomes é reconhecer a importância e a força do legado dessas figuras.
O vereador Dudu, autor do projeto apresentado em 2016 para nomear o MIS como “Produtor Cultural Francisco das Chagas Júnior”, reafirma sua convicção e justifica essa escolha como um merecido reconhecimento pelas realizações de Francisco das Chagas na cultura teresinense. “Em conjunto com meus colegas vereadores, entendemos que o Museu deve levar o nome do jovem Francisco Júnior, do Coletivo Salve Rainha, como forma de homenagear o jovem que tanto contribuiu para a juventude de nossa cidade”, conta.
A filha do ex-prefeito Firmino Filho e deputada estadual, Bárbara Carvalho, apoia a homenagem a Francisco Júnior em vista das contribuições culturais do produtor pela cidade e pelo espaço que vai abrigar o MIS. “Acredito que será uma justa homenagem denominá-lo de Júnior Araújo, uma vez que, através do movimento Salve Rainha, o nosso Júnior Araújo ajudou a revitalizar o local quando ainda era um prédio abandonado”.
Bárbara ressalta que essa homenagem é algo que o próprio pai desejava. “Além disso, estamos fazendo valer a vontade do ex-prefeito Firmino Filho, que havia sancionado o decreto de autoria do Vereador Dudu fazendo essa homenagem. Assim, estamos homenageando uma pessoa que tanto fez pela nossa cultura”, diz.
O jornalista e pesquisador Jader Damasceno, amigo próximo de Francisco Júnior, destaca a profunda conexão que o produtor cultural tinha com a cidade e com a memória urbana. Ele defende a escolha do nome de Francisco das Chagas Júnior para nomear o prédio do Museu da Imagem e do Som da cidade, levando em consideração os demais nomes em discussão. “O próprio Firmino já dizia que MIS tinha que ter o nome do Júnior. O nome do Torquato, apesar da relevância cultural que ele tem, acho desnecessário porque parece que Teresina só tem Torquato Neto. Ele tem um trabalho lindo, mas Torquato pensava o Brasil, pensava em outros lugares. O grande amor, de fato, do Francisco, do Júnior, era Teresina. Ele decidiu abrigar e transformar Teresina”, explica.
Jader pesquisou as práticas de comunicação híbrida realizadas pelo Coletivo Salve Rainha na cidade de Teresina entre 2015 e 2017. Ele fala como a atuação de Júnior, a partir do Salve Rainha, afetou a urbe de Teresina e mudou a realidade do antigo prédio da Câmara Municipal, impedindo que ele virasse um estacionamento. O pesquisador ressalta que o trabalho de Júnior beneficiou inúmeras pessoas, impulsionando a economia criativa e solidária, além de apoiar e dar visibilidade a artistas locais. “Pensar o nome do Júnior é valorizar o que o Júnior sempre plantou, que é a memória coletiva de Teresina. Reviver a memória de Teresina, fazer Teresina se apaixonar por ela nas interações, nas intervenções, na mudança geográfica da cidade, nas possibilidades de transformar e ressignificar a cidade, as pessoas, as ocupações. […] Além de ser um grande artista visual, ele representa uma ideia sociopolítica e simbólica muito poderosa “, conta.
Os três pela cidade
A tradição de nomear imóveis e espaços urbanos também está presente na história de Teresina, e alguns espaços da cidade já levam homenagens a Francisco das Chagas Júnior, Firmino Filho e Torquato Neto.
O nome de Francisco das Chagas foi dado a um espaço: a Praça Cultural Francisco das Chagas de Araújo Costa Júnior, localizada na Avenida Marechal Castelo Branco, abaixo da Ponte JK, que conecta a Avenida Frei Serafim à Avenida João XXIII. O Coletivo Salve Rainha realizou três temporadas de eventos no local nos anos de 2015, 2016 e 2018. Durante os eventos, foram ressaltadas a subutilização dessa área, a poluição e negligência em relação aos rios que cruzam a cidade, e a paralisação da obra de ampliação da ponte na época. Em 2017, durante a inauguração das novas vias da ponte, o idealizador do Salve Rainha foi homenageado postumamente e seu nome batizou o espaço ocupado pelo coletivo, que compõe a primeira praça do projeto do Complexo Cultural da Ponte JK.
Entre as obras em Teresina que receberam o nome do ex-gestor Firmino Filho, destacam-se o viaduto da Tabuleta, importante via de acesso entre as zonas Sul e Centro da cidade, a Praça Prefeito Firmino Filho e a Creche Firmino Filho, localizadas na Santa Maria da Codipi, zona norte de Teresina. A Escola do Legislativo Municipal também homenageou o ex-gestor, e recebeu o nome de Vereador Firmino Filho. Além disso, em 2022 o Governo do Piauí sancionou o Selo Firmino Filho, uma iniciativa que reconhece empresas e instituições que desenvolvam projetos em benefício de crianças e adolescentes.
Torquato Neto também recebeu homenagens pela cidade. Além de estátuas, como a de Braga Tepi em exposição permanente no Parque da Cidadania, há o Residencial Torquato Neto, localizado na Zona Sul de Teresina, a Rua Torquato Neto, no bairro São Cristóvão, a Escola Municipal Torquato Neto no Bairro Beira Rio, o Teatro Torquato Neto, no centro da cidade, e o Campus Torquato Neto, da UESPI.
Um museu no futuro
A estrutura do MIS deve contar com cinco andares e abrigará diversas instalações, como lojas, café, cineclube, auditório, estúdio de som, laboratório de cinema, ilha de edição, midiateca, videoteca, núcleo de digitalização, restauração e catalogação, laboratório de fotografia, além de espaço dedicado a eventos e produção e venda de obras de artistas locais. Se há um dilema sobre o nome do MIS, também possível nomear essas instalações e contemplar as três figuras no mesmo edifício.
Além da questão do nome, outro ponto chama atenção: a inauguração do prédio é um mistério. O início do projeto aconteceu em setembro de 2016 e tinha como prazo de execução até meados de 2017.
No entanto, as obras foram interrompidas. Em setembro de 2019, as licitações para a construção do MIS foram concluídas. Em novembro do mesmo ano, a previsão de inauguração do museu era até dezembro de 2020. Em fevereiro de 2020, as obras foram retomadas, com um prazo de finalização inicialmente estabelecido em 12 meses. No entanto, ao longo do tempo, houve alterações nas estimativas de conclusão. A pandemia foi um fator que contribuiu para o atraso das obras. Em novembro de 2020, previa-se que a obra fosse entregue no segundo semestre de 2021. Porém, em novembro de 2021, a nova previsão indicava que a conclusão ocorreria em janeiro de 2022. Posteriormente, em janeiro de 2022, foi estabelecido que a obra seria finalizada em março do mesmo ano. Em setembro de 2022, as obras estavam 99% concluídas. Finalmente, em outubro, a reforma do prédio foi finalizada, porém, a data exata de inauguração do museu ainda não foi divulgada.
Para ocupar o presente
“Antes ocupar o espaço e logo em seguida poetar conforme for. Na gaveta, baratas e velharias. Poesia, não”, escreveu Torquato em seus Últimos dias. O trabalho de Francisco das Chagas Júnior frente ao Salve Rainha cruzou esse ideal, como uma forma de revolucionar a afetividade sobre os ambientes, fortalecendo conexões e o sentimento de pertencimento à cidade. Firmino olhou para o MIS como uma possibilidade de celebrar a cultura audiovisual. Cuidar e existir dentro desses espaços urbanos é uma forma de lutar para que a história de Teresina não se resuma a um apanhado de carros na sombra. Os nomes importam, é claro, mas talvez, antes da homenagem aos nomes, seja importante contribuir para que essas lutas reverberem em ações concretas para a preservação da memória e para o fomento cultural. E que a cultura fique de fora das gavetas e extravase para além do centro de Teresina, crescendo nas diversas regiões da capital e do estado.
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