O calor da pólvora no disparo certeiro e constante das armas de Virgulino aquecia o cano da arma, alumiava a noite e apagava o dia de muitos que cruzavam a rota do cangaceiro. Foi dessa imagem de brilho de disparo que, segundo o biógrafo Cicinato Ferreira Neto, veio o apelido de “Lampeão”, como era escrito na época. O rei do cangaço tinha um manejo fácil das armas e não poupava bala: de tanto atirar, mais parecia um candeeiro, um lampião aceso no breu da caatinga. Durante anos, o fogo da pólvora de Lampião espalhou medo e admiração por onde passava. Porém, há exatos 85 anos, o brilho da arma de Lampião finalmente se apagou.
Capitão cangaceiro
A história de Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, é controversa. Seu nascimento é atribuído à cidade de Vila Bela, hoje conhecida como Serra Talhada, em Pernambuco. Existem duas datas tradicionalmente associadas ao seu nascimento: 7 de julho de 1897, como indicado no registro civil do cangaceiro; e 4 de junho de 1898, data indicada na certidão de batismo de Virgulino. Se o nascimento ainda é uma incógnita, a data da morte não é mistério: em 28 de julho de 1938 a vida de Lampião chegou ao fim em um tiroteio contra um grupos de Volantes, soldados especializados em buscar e eliminar os cangaceiros. O bando de Lampião chamava os membros desse grupo de “macacos”, por conta do comportamento deles ao fugirem rapidamente ao avistarem o grupo de cangaceiros, pulando de medo.
Liderados pelo Tenente João Bezerra e pelo Sargento Aniceto da Silva, os “macacos” deram fim à vida de Lampião na Grota do Angico, em Poço Redondo, Sergipe. Morria o capitão do cangaço, mas a lenda de Lampião cresceu cercada de uma romantização que, ao longo dos anos, tem sido problematizada.
Maltratei, fui maltratado
A intimidade com o mundo bélico não chegou imediatamente para o rosto do cangaço. Virgulino Ferreira teve acesso à educação básica, aprendendo a ler e escrever. Sua adolescência foi dedicada a acompanhar seu pai em caravanas de mercadorias conduzidas por bois. Ele trabalhava com artesanato de couro até sua vida ser cruzada pela morte e pelo desejo de vingança. O pai de Virgulino foi assassinado pela força policial, direcionando de vez a vida do jovem ao cangaço, como um farol, um lampião.
Para algumas pessoas, as ações de Lampião são interpretadas como uma espécie de “justiça popular” em vista da opressão dos fazendeiros, políticos corruptos e até mesmo das forças policiais contra a população sertaneja. O cangaceiro enfrentava os volantes destemidamente, inspirando muitos artistas a exaltar a coragem do grupo de Lampião. No entanto, o rei do baião, Luiz Gonzaga, destaca a esperteza de Lampião acima de qualquer bravura sem limites, como cantado na música “Lampião (Era um homem, não era Deus)”:
“Lampião foi muito valente, artista, equilibrista, calculista, estrategista. Mas quando a coisa ficava preta pra banda dele… haa, ele dava no pé, porque era besta não”.
Um amor pistoleiro
“Cabelos pretos anelados, olhos castanhos, delicados” é a figura de Maria Bonita cantada por Luiz Gonzaga. Ao lado de Lampião, Maria Bonita também ajudou a construir o legado do cangaço.
De acordo com a obra “Bonita Maria do Capitão”, Maria Gomes de Oliveira, também conhecida como Maria do Capitão, nasceu em Malhada da Caiçara, Bahia, no dia 08 de março de 1911. Seus pais eram José Gomes de Oliveira, conhecido como Zé Felipe, e Maria Joaquina Conceição Oliveira, conhecida como dona Déa. Ela seguiu os costumes do sertão e casou-se cedo com Zé de Nenê, mas o casamento não deu certo. Após conhecer Lampião, apaixonou-se por ele e optou por acompanhá-lo no cangaço depois que a família dela, ameaçada pela polícia volante, fugiu da Bahia para Alagoas. Hoje, ela é lembrada como uma figura importante no cangaço, abrindo caminho para outras mulheres se juntarem ao bando de Lampião. No entanto, as mulheres cangaceiras também enfrentavam regras rígidas e diversas formas de violência, sem ter a quem recorrer, já que corriam riscos tanto entre os cangaceiros quanto pelas mãos da polícia. Mas a violência relacionada ao cangaço não acaba por aí.
O rosto do banditismo
Se por um lado a figura de Lampião e seu bando estava associada à coragem e inteligência contra os grupos poderosos e opressores, por outro é lembrado por aterrorizava as comunidades locais com suas ações violentas e impiedosas, inclusive contra pessoas inocentes. As execuções públicas, mutilações e outras formas de violência eram utilizadas para impor o medo, a fim de evitar resistência ou traição.
Quando o bando comandado por Virgulino atacava cidades nordestinas em busca de recursos, comida e abrigo, aqueles que se recusavam a colaborar enfrentavam o perigo de serem sujeitos a diversas violências. O historiador Aelson Barros explica que o cangaço fez parte de uma série de movimentos chamados de banditismo. Para Aelson, as atividades dos cangaceiros contribuíram para o aumento da criminalidade nas áreas afetadas. “O banditismo seria a atividade de um conjunto de sujeitos armados, agindo em bandos no interior do país por meio da prática do roubo, do saque e de assassinatos. Invadiam fazendas, vilas ou cidades contribuiam para a intensificação da violência nos sertões”, ressalta.
O bando de Lampião tinha o costume de marcar as iniciais dos cangaceiros no rosto e também nas coxas, nádegas e virilhas das mulheres que fossem condenadas pelo tribunal do grupo. Essas marcas eram uma forma de identificação e controle imposto pelas ações violentas do cangaço. Para Aelson, as práticas do banditismo são plurais, mas a violência é um componente sempre presente. “As ações dos sujeitos que praticavam o banditismo eram o roubo e o saque a propriedades privadas. Nessa prática podiam levar tudo que tivesse valor, desde jóias, dinheiro, gados, armas e etc. Praticam também ameaças de toda ordem, extorsões, espancamentos, abusos e mutilações das mais variadas formas. Praticavam assassinatos em zonas rurais, vilas e pequenas cidades”, conta.
Lampião não se limitava a atacar os ricos e poderosos; ele também cultivava alianças com alguns deles. Essas conexões lhe conferiam apoio em várias cidades do Nordeste, onde, para seus aliados, deixava de agir em certas áreas, fornecia homens, se vingava de inimigos e prestava outros serviços. Segundo Aelson, a falta de assistência do poder do Estado à população marcou o movimento do banditismo, principalmente em uma região com poucas oportunidades, como o sertão nordestino. “As motivações mais comuns ligadas a prática do banditismo social e do cangaço eram a pobreza, a falta de oportunidade econômicas eficazes, a precariedade do meio rural como forma de “ganhar a vida”, explica.
A imagem residual
Atualmente, o cangaço é estudado como parte da história do Brasil, e a figura do cangaceiro é analisada dentro de seu contexto social e histórico, levando em conta tanto os aspectos violentos e criminosos como também as injustiças sociais e o descaso do estado com a população dos sertões. Seja o “banditismo por pura maldade, banditismo por necessidade, banditismo por uma questão de classe”, como canta a banda Nação Zumbi, a figura de Lampião, mais que um lenda, traz consigo uma história marcada por um ciclo de violências: sofridas e cometidas. Lampião traçou uma história complexa e cheia de nuances, que vai além de reducionismos. Sua trajetória como o líder mais famoso do cangaço revela os complexos desafios enfrentados no sertão nordestino, bem como a resposta violenta que Virgulino Ferreira e seu bando empregaram como forma de sobreviver e enfrentar às condições adversas da época.
0 comentário