sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A fórmula para multiplicar vitórias

Professores e alunos de Cocal dos Alves continuam a transformar a realidade social da região por meio da matemática. Qual o mistério do ensino dessa cidade?

03 de agosto de 2023

Pense em Cocal dos Alves. Talvez, se você estiver bem informado, uma das primeiras palavras que venha na sua cabeça seja “medalhas!”. Mas se você não estiver bem informado, tudo bem, você vai ficar. 

Localizada a cerca de 281 km de Teresina, a cidade, que possui pouco mais de 6 mil habitantes, é conhecida pelas medalhas. Sim. Medalhas. Cocal dos Alves está abarrotada delas 🥇🥈 🥉. São tantas que já se perdeu a conta. E olha que de conta os alunos dessa cidade são especialistas. E é por isso que há tantas medalhas em Cocal dos Alves, ou melhor, medalhistas. 

Não é à toa que a cidade foi apelidada por seus moradores de “Capital da Matemática”: o município conta com um grande número de jovens medalhistas na maior competição de matemática nacional, a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). De 2005 a 2019, os alunos de Cocal dos Alves ganharam um total de 227 medalhas em competições de matemática, sendo 45 de ouro, 72 de prata e 110 de bronze. Dados coletados pelo pesquisador de Wilter Freitas indicam que essas conquistas representam 48,9% das medalhas de ouro da OBMEP recebidas pelos alunos no estado do Piauí até 2019, sem contar os anos de 2020 a 2023.

Uma das escolas que contribui para essa porcentagem é o Centro Estadual de Tempo Integral Augustinho Brandão (CETI Augustinho Brandão), que já acumula mais de 200 medalhas para Cocal dos Alves, sem contar as menções honrosas.

Mas do que é feita uma escola premiada se não por alunos e professores engajados?

Os componentes da equação

Francisco Yuri tem 14 anos e cursa o nono ano. Ele gosta de ouvir músicas e assistir filmes, especialmente os protagonizados pelo ator Robert Downey Jr. 

Sara Tawany e Gabriela Victória têm 15 anos e estão no primeiro ano. Sara gosta de ouvir as canções da ANAVITÓRIA e da Billie Eilish; enquanto Gabriela prefere assistir animes, jogar xadrez e ouvir Lana Del Rey e Rubel.

Emanuelle Cristina tem 16 anos e está no 2º ano do ensino médio. Ela pratica futsal e é fã de Justin Bieber.

Os quatro são adolescentes completamente comuns –  exceto por uma questão: eles acumulam uma impressionante lista de premiações. 

Yuri conquistou diversas medalhas de ouro e prata na OBMEP, na Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica (OBA) e na Competição Canguru de Matemática. Recentemente, o garoto foi um dos alunos que se destacaram na Copa Nordestina de Matemática em Pernambuco, obtendo duas medalhas de prata. 

Sara possui medalhas de ouro e prata na OBA, ouro e bronze na Olimpíada Nacional de Ciências (ONC), e bronze na OBMEP. Gabriela tem uma lista de medalhas de ouro na OBA e na OBMEP. Emanuelle se destaca com três medalhas de ouro na OBA, recebeu bronze na ONC e na Olimpíada de Física das Escolas Públicas (OBFEP). 

As conquistas dos quatro alunos só tendem a crescer com as próximas fases das olimpíadas.

Emanuelle, Yuri, Sara e Gabriela fazem parte do grupo de alunos premiados que cresce a cada ano no CETI Augustinho (FOTO: Darkson Vieira)

Santa matemática

Os adolescentes representam apenas uma parcela dos estudantes do CETI Augustinho Brandão que estão mantendo vivo o apelido de Cocal dos Alves como a “Capital da Matemática”. Na cidade, a participação na OBMEP e nas demais olimpíadas de ensino já é uma prática estabelecida, quase uma devoção, ou melhor, uma tradição como os festejos católicos de cidades interioranas. Yuri vai participar da segunda fase da olimpíada de matemática em outubro e já tem como objetivo alcançar o resultado máximo. “A expectativa para a segunda fase da OBMEP é altíssima, estou muito animado porque fiz ano passado, no oitavo ano, e tirei ouro, então agora eu só estou pensando: ouro, ouro e ouro. Assim, só querendo o mais alto mesmo. Não sei se é muito querer demais, mas é o que eu quero”, pontua.

Para alguns dos alunos, essa sede por premiações já se tornou uma herança. Yuri conta que os irmãos mais velhos, antes dele, eram quem traziam as medalhas para casa. Foi ao ver as conquistas dos irmãos e com o incentivo dos professores que nasceu o desejo de trilhar o caminho das olimpíadas escolares. “Eu descobri esse interesse graças aos meus irmãos e ao meu professor, Raimundinho. Quando cheguei ao sexto ano, já tinha uma ideia do que eram as Olimpíadas de Matemática graças aos meus irmãos que já estavam participando delas, e assim aprofundei meu interesse com a ajuda da escola”, conta.

A rotina de uma medalhista escolar é geralmente bastante desafiadora e exigente: requer dedicação, esforço e comprometimento contínuo. Sara explica que estudar o céu e os astros é um interesse natural para ela; e é por isso que ela se dedica tanto a essa área. “Tento estudar o máximo possível no tempo livre, mas também utilizo bastante o conhecimento que adquiro durante as aulas da escola. Quando se aproximam as olimpíadas, os professores responsáveis costumam criar grupos de WhatsApp para nos auxiliar online com explicações extras, além das preparações aos sábados com os professores de matemática da escola”, ressalta.

Para aqueles que buscam desvendar os mistérios da natureza e do universo, a matemática e a física desempenham um papel essencial para encarar as belezas do cosmos, atraindo mentes curiosas que buscam aprender sobre as leis que regem o universo. Assim como Sara, Gabriela é uma dessas mentes. Para ela, os dias de aula favoritos são os de preparação para as olimpíadas. “Descobri o interesse pelas olimpíadas quando comecei participar nas da escola mesmo, percebi o quão divertido e educador aquilo poderia ser, vejo como uma forma de aprender cada vez mais, de sempre me superar e me dedicar mais nessas áreas do conhecimento”, comenta.

Se durante muitos anos existia a crença de que os meninos tinham melhor desempenho em áreas de exatas do que as meninas, Gabriela contraria essa informação, tanto com as premiações que alcançou, quanto no que ela defende. “Eu penso que isso não existe, esforço não tem gênero. Acredito que o aprendizado não depende disso e matérias de exatas são para todos. Por sinal, meu professor de física comentou que iria inscrever as meninas da minha escola em um Torneio de Física para as meninas, criado no intuito de combater esse pensamento distorcido mesmo, achei legal demais”, diz.

“Esforço não tem gênero. Acredito que o aprendizado não depende disso e matérias de exatas são para todos”

Esforço, como bem aponta Gabriela, é uma palavra que marca a trilha percorrida por esses alunos. Alguns podem ter maior facilidade para aprender determinados assuntos, mas é necessário dedicar tempo para estender essas habilidades e conhecimentos. Yuri fala que os professores estão sempre incentivando os alunos que enfrentam dificuldades, reconhecendo que cada aluno possui seu próprio ritmo de aprendizado. Essa abordagem individualizada ajuda a garantir que todos os estudantes possam progredir e alcançar seus potenciais. “Alguns alunos, inicialmente, não conseguem conquistar medalhas. Mas aí os professores ajudam muito, incentivando e dizendo que no próximo ano tem mais oportunidades ou outras olimpíadas para a pessoa participar. Eles também ressaltam que o mais importante é o aprendizado. É claro que ganhar uma medalha dá uma sensação muito boa, mas se a pessoa aprendeu, isso já é algo incrível, pois o real intuito das olimpíadas é aprender”, explica.

Emanuelle é outra aluna que também prova que a matemática e a física são espaços para as mentes curiosas. A garota sempre teve interesse pela astronomia e, por isso, busca conhecimento nessa área desde criança. A fama da cidade acendeu em Emanuelle o desejo de fortalecer o orgulho da família e dos demais cocalalvenses a partir de um assunto que ela ama: o universo. Na escola, ela encontrou a possibilidade de compartilhar e dividir com outros alunos e professores os mesmos interesses. “A fama de Cocal dos Alves é nacional, tão tal que coleciona troféus pelo reconhecimento nas olimpíadas, tanto a escola como a cidade. As pessoas sentem orgulho pelas conquistas realizadas na educação. Todos acompanham de perto, participando dos eventos de premiação que a escola realiza. Os pais e a comunidade escolar estão sempre incentivando os alunos a alcançar nossos objetivos”, ressalta.

As galáxias se tornam uma fonte inesgotável de inspiração, motivando as jovens mentes a desbravarem a astronomia (FONTE: Reprodução)

Medalhas são chaves

Todos os quatro alunos dizem o mesmo: medalhas abrem portas. Ou melhor, a partir da educação e da conquista de premiações, surgem possibilidades de crescer, de ajudar a família,  e conquistar seus espaços no mundo.

“Eu acho que hoje a matemática é como se fosse uma chave para mim. Porque através dela, eu consigo alcançar muitas coisas, como ter acesso a viagens para os lugares em que acontecem as olimpíadas e conseguir bolsas de iniciação científica. A matemática é algo que abre muitas portas para mim. Então, eu acho que ela ocupa um espaço muito grande e importante na minha vida” (YURI)

Quando ganhei medalha, ela me abriu muitas portas, além de ter ganhado muito conhecimento”  (SARA)

“Reforço a importância da participação nas olimpíadas por parte das escolas, de verdade. Acredito que abre um mundo de possibilidades e determinação. A educação abre portas e me permite alcançar o que anseio” (GABRIELLA)

“Participar da OBA significou muito para mim, porque foi onde pude me destacar e colocar em prática meus conhecimentos de astronomia, e isso abriu caminhos para tentar conquistar medalhas em outras modalidades” (EMANUELLE)

Se todo esse conhecimento abre portas, são os professores que indicam como girar as chaves (FONTE: Reprodução)

Mistério solucionado

Você pode se perguntar: Qual é o mistério do CETI Augustinho Brandão? O que há na água dos bebedouros da escola para que os alunos alcancem tantos resultados? No entanto, as respostas não estão nos corredores, junto aos bebedouros, mas dentro da sala de aula, entre os alunos e os professores. Para o diretor do CETI, Darkson Vieira, a escola tem um papel essencial em mostrar à sociedade como a educação transforma vidas. Ele fala que todos os profissionais da escola, desde o vigia até o pessoal administrativo e os professores, foram alunos da própria instituição. A ideia da educação como forma de transformação social já está enraizada na cultura da escola e se expande para toda a cidade.

 “Se você visitar qualquer estabelecimento público do município, encontrará ex-alunos da escola trabalhando em diversas funções, seja como professores em outras escolas, enfermeiros nos hospitais, fisioterapeutas, atendentes, técnicos e, em alguns casos, até médicos. Isso mostra o impacto positivo da educação na comunidade, e como todos esses profissionais contribuem para a transformação social do município”, conta.

Alcançar a medalha de ouro nas olimpíadas de matemática é uma das metas que contribuem para essa transformação social. Por meio da OBMEP, por exemplo, os alunos têm a chance de ingressar no programa de iniciação científica desde o ensino fundamental e médio. Além disso, aqueles que recebem medalhas podem ter acesso a bolsas ao ingressarem na universidade, o que ajuda os alunos mais carentes. Darkson explica que o comprometimento com a preparação dos alunos nas Olimpíadas é constante, com base na dedicação dos professores e no incentivo à participação dos estudantes.  “Para apoiar a preparação dos alunos, organizamos sessões de estudos aos sábados, onde levamos todos os alunos que passaram para a segunda fase da Olimpíada para a escola. Durante esses encontros, fornecemos almoço, lanche, material didático e os professores participam de forma voluntária. O engajamento e voluntariado dos professores são fatores essenciais para o sucesso nessas atividades olímpicas”, explica.

“O engajamento e voluntariado dos professores são fatores essenciais para o sucesso nessas atividades olímpicas”

Mas não só de matemática e fórmulas vivem os alunos. Eles precisam estar preparados emocionalmente para enfrentar os desafios que a vida escolar e a participação em competições acadêmicas podem trazer. A autoconfiança, a capacidade de lidar com a pressão e o controle das emoções são habilidades fundamentais para que os alunos se destaquem não apenas nas olimpíadas, mas em todas as áreas da vida. A professora Girleny Fontenele, que acompanha os alunos nas aulas especializadas para a OBA, também os orienta sobre como agir sob pressão, gerenciar o tempo e lidar com o emocional durante as competições. “Acredito que preparar emocionalmente os alunos é tão importante quanto prepará-los cognitivamente, pois resultados significativos dificilmente surgem sem essa preparação emocional”, fala. 

“Preparar emocionalmente os alunos é tão importante quanto prepará-los cognitivamente, pois resultados significativos dificilmente surgem sem essa preparação emocional”

O X da questão

O mistério das medalhas de Cocal dos Alves é resolvido com matemática básica. Professores engajados + alunos dedicados + políticas públicas e investimento em educação = medalhas

Num país que desperdiça 40% do talento das crianças, segundo um estudo do Banco Mundial, cada gota desse potencial vale ouro, prata e bronze. Mais do que isso, os professores e alunos do CETI Augustinho Brandão provam que esse talento, juntamente com o esforço para aprimorá-lo, pode transformar a realidade de toda uma cidade. É uma forma de seguir em frente e cruzar as fronteiras sociais em direção a um futuro de oportunidades promissoras.

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