O boi é um mosaico de cor que ferve ao som do pandeirão aquecido pelas chamas da fogueira. Ora ele dança a festa, ora a festa dança o boi – até o momento em que ambos são um só. Os brincantes se misturam na paisagem entre os panos acetinados das roupas, das fitas e o brilho furta-cor das lantejoulas e miçangas que balançam acompanhadas pelas toadas. Quem não brinca, mas apenas observa, também tem brilho. Nos olhos.
No universo do Bumba meu boi, onde a música e a dança se entrelaçam em uma celebração viva, o cenário é mais do que uma mera paisagem física; é um testemunho da herança cultural e da história que se acende diante dos olhos encantados dos brincantes e dos espectadores. Tudo é vibração, todo o ritual consagra essa resistência de um boi que, mesmo diante da morte, sempre se alevanta.
O boi, figura central da festa do Bumba meu boi, emerge como uma criatura majestosa e quase mística. Os instrumentos musicais e as cantorias que dão vida a essa festa são uma parte essencial do cenário. Elas ecoam como batidas fortes, guiando os passos do boi e da multidão que dança esse mundo. O Bumba meu boi é um tipo de expressão cultural frequentemente relacionada a um tipo de peça teatral chamada “auto”, que é curta e pode ter um caráter alegórico ou moralizante. Os “autos” têm raízes na Idade Média e no Renascimento, sendo populares na Espanha e Portugal, e geralmente incluem elementos de música, dança e representação teatral. Durante a representação do Bumba meu boi, os brincantes dão vida aos personagens de uma história repleta de desejos e que reflete o cenário do Brasil colônia.
A levantação do boi
A história do Bumba meu boi começa com um desejo, assim como todas as boas histórias. Pai Chico, também conhecido como Nêgo Chico, era casado com Catirina, e trabalhava numa fazenda junto de outros agregados e escravos na propriedade. Catirina fica grávida e tem um desejo irresistível de comer língua de boi, especificamente do boi querido pelo amo da fazenda.
Pai Chico decide roubar o boi para satisfazer o desejo de sua esposa. Quando o fazendeiro percebe o desaparecimento do amado boi e de Pai Chico, ele ordena aos vaqueiros que os encontrem e não retornem sem o homem e o animal. No entanto, os vaqueiros não conseguem localizá-los. O amo então pede ajuda aos indígenas para rastreá-los. Eles conseguem encontrar o Pai Chico e o boi, que neste ponto está aparentemente morto após um tiro no chifre.
O fazendeiro interroga o Pai Chico e descobre o motivo pelo qual ele roubou o boi. O doutor da medicina é chamado para curar o animal, mas percebe que o bicho estava apenas desacordado. O boi se levanta e começa uma dança majestosa e alegre. Diante deste feito, o fazendeiro perdoa Pai Chico, e a história termina em uma grande festa. Em algumas versões, o boi morre e é ressuscitado como parte da narrativa.
Manda buscar outro lá no Piauí
A manifestação cultural do Bumba meu boi se desenvolveu ao longo de muitos séculos e é resultado da interação de diversas influências culturais, incluindo as culturas indígena, africana e europeia. A professora e historiadora Viviane Pedrazani explica que não há registro documentado da origem precisa do Bumba meu boi devido à escassez de fontes históricas escritas. Em vez disso, a tradição foi transmitida principalmente oralmente, e essa falta de documentos escritos torna difícil determinar sua origem. No entanto, de acordo com a pesquisadora, o Bumba meu boi se espalhou por diversas regiões do Brasil e ganhou destaque no Nordeste brasileiro, devido à forte conexão da região com a tradição pecuarista. “O Bumba-meu-boi vai se adentrando no território brasileiro e vai levando elementos de uma tradição pecuarista, movimentada nos séculos 16, 17, 18, pelo ciclo do gado. Nós temos na cultura piauiense, ecos dessa civilização do gado, desse ciclo econômico, cultural que perdura até hoje. Nós tratamos de reconhecer no Bumba-meu-boi uma manifestação cultural que a gente percebe esses elementos do ciclo do gado” explica.
Os primeiros relatos escritos do Bumba meu boi datam de 22 de fevereiro de 1834 e 11 de janeiro de 1840, quando o Padre Miguel do Sacramento Lopes Gama publicou críticas ferozes sobre essa tradição no jornal “O Carapuceiro” em Recife, Pernambuco. “Havia uma certa restrição da igreja em relação a essas manifestações de proibição, então eram manifestações que ficavam é a margem muitas vezes, e sim se desenvolviam nas pequenas comunidades, nos pequenos redutos, nos pequenos guetos, e ela atravessa o tempo juntando diversos elementos”, ressalta Viviane.
“O QUE HE BUMBA MEU BOI.
De quantas folganças, de quantos divertimentos inventa o nosso povo nos seus passa-tempos, eu não conheço hum mais estúpido, mais desenxavido, mais tollo, do que huma cousa chamada Bumba meu boi”.
“A estultice do bumba meu boi.
De quantos recreios, folganças, e desenfados populares há em nosso Pernambuco, eu não conheço hum tão tollo, tão estupido, e destituído de graça, como o alias bem conhecido bumba meu boi. Ein tal brinco não se encontra nem enredo, nem verosimilhança, nem ligação: he hum aggregado de disparates. Hum negro meltido de baixo d’huma haieta he o boi: hum capadocio, enfiado pelo fundo d’ hum panacu velho, chama-se o cavallo marinho, outro, alapardado sob lençoes, denomina-se burrinha: hum menino com duas saias, huma da cintura para baixo, outra da cintura para eima, terminando para a cabeça com huma erupema, he o que se chama a caipors: há além disto outro capadocio, que se chama o pai Matheus”.
Apesar dos olhares negativos da igreja para essa manifestação cultural na época, o Bumba meu boi resistiu e se desdobrou por várias regiões, cada uma delas trazendo sua própria interpretação desse espetáculo. Embora surjam rivalidades pela origem do boi, como a que existe entre piauienses e maranhenses, é crucial reconhecer que cada uma delas possui suas singularidades. Viviane fala que mesmo dentro do estado do Piauí, diferentes cidades podem trazer aspectos distintos para o Bumba meu boi. Por exemplo, diferente da capital, a região litoreana do estado tem o hábito de utilizar máscaras conhecidas como caretas durante as apresentações.
“Identidade é reconhecimento, reconhecimento de pertencimento. Então, quando você tem bem arraigado a distribuição dessa festa ao longo do ano, você percebe que isso alimenta a identidade, a memória daquelas pessoas.”
Além da dança, a música é um dos elementos que faz toda a história se aquecer. Nas apresentações, destacam-se instrumentos de percussão, como a maraca, o pandeirão e o tambor-onça. Eles são os protagonistas, trazendo uma pulsação para as toadas. Matracas, tantans e apitos também podem integrar a sinfonia. Viviane destaca que a relação dos brincantes com os instrumentos musicais, como o pandeirão, desde a confecção até a afinação do instrumento, constitui uma parte tradicional da vivência do Bumba meu boi. “Os brincantes afinam o instrumento que tem couro no fogo. Esse é um momento ritualístico em que eles se reúnem em volta do fogo e fazem a afinação do instrumento botando-o próximo ao fogo, porque ele vai esticando, vai ganhando novo som, a batida fica mais aguçada. Essa é uma experiência que para eles é muito importante”, ressalta.
O brilho aceso da festa
Em Teresina, o Bumba meu boi e as fogueiras de São João foram proibidas pelas autoridades policiais durante o ano de 1914. De acordo com a publicação do jornal Diário do Piauhy, o então secretário de estado da polícia da época, Fenelon Ferreira Castelo Branco, alegou que os fogos de artifício e as bombinhas tradicionais dos festejos juninos, que também estavam associadas às festas de Bumba meu boi, poderiam ocasionar acidentes graves e danificar a fiação elétrica da cidade.
“EDITAL
O dr. secretario de estado da policia, usando da attribuição que lhe é conferida pelo art. 37 do Reg. de Segurança Publica que baixou com o Dee. n. 362, de 30 de maio de 1908, afim de evitar os acontecimentos graves occasionados pelas bombas explosivas, busca-pés, espadas e carretilbas, determina a todas as autoridades policiaes dos districtos desta capital, que prohibam expressamente que sejam soltos nas ruas e praças desta capital, referidos fogos, prohibindo tanbem a brincadeira de Bumba meu boi na zona urbana desta cidade e as tradicionaes fogueiras de S. João e S. Pedro em vista de serem prejudiciaes aos fios da illuminação electrica. Secretaria de estado da policia em Therezina, 15 de junho de 1914.
Fenelon Ferreira C. Branco.”
A proibição não conseguiu deter a tradição. Hoje, os bois desfilam pelas ruas da capital e as comunidades persistem unidas em solidariedade para não deixar o boi se acabar. Isso se manifesta em cada etapa da produção das celebrações do Bumba meu boi ao longo do ano: na confecção de instrumentos musicais, na criação de adereços e trajes, na produção de novos bois, nos ensaios para o batismo e até mesmo no ritual simbólico da morte do boi.
O brilho do boi continua a alumiar as ruas das capitais, cujos postes continuam intactos diante da presença da brincadeira. Viviane comenta que a festa é uma forma de interligar as pessoas da comunidade e fortalecer um senso de pertencimento e identidade. “Identidade é reconhecimento, reconhecimento de pertencimento. Então, quando você tem bem arraigado a distribuição dessa festa ao longo do ano, você percebe que isso alimenta a identidade, a memória daquelas pessoas. Isso traz esse sentimento de pertencimento, esse trabalho de memória faz que as pessoas se sintam parte daquela comunidade, daquele grupo de pessoas”, afirma.
O boi balança vivo
O Bumba meu boi faz presença em vários bairros de Teresina a partir de grupos como o Capricho da Ilha. Genilson Mendes é o amo do grupo e fica responsável pelas toadas. Segundo ele, o Capricho da Ilha teve sua origem no bairro João Paulo II, na zona sul de Teresina, em maio de 2005. A ideia para formar o grupo surgiu durante uma conversa entre amigos. Hoje, virou uma tradição passada de pai para filho. O grupo começa a preparação logo no início do ano para fazer o boi dançar pelas ruas da cidade. “No nosso grupo, o Capricho da Ilha, iniciamos os ensaios a partir do mês de maio, dedicando tempo aos adereços, à música e às toadas. O amo é quem elabora as toadas, e as roupas são bordadas à mão. Além disso, contamos com integrantes dedicados à chiadeira e à percussão, incluindo pandeiristas”, comenta.
O período junino é de grande importância para os grupos de Bumba meu boi. Nesse mês, eles tradicionalmente realizam o batismo do boi no dia 23 de junho, véspera de São João, momento em que um novo boi é apresentado à comunidade. De acordo com a superstição, o batismo do boi traz prosperidade para os brincantes e permite que o boi seja apresentado publicamente, estreando no mês em que as festas regionais se intensificam. Para Genilson, os eventos que acontecem no mês de junho são oportunidades para mostrar que a tradição do Bumba meu boi continua viva. “Nossa tradição está fortemente ligada à religião e às festas de São João e São Pedro, e dedicamos nosso esforço a essas celebrações. Um momento de destaque e significativo para nós é quando ocorrem os folguedos e o encontro dos bois. Essa é uma etapa que requer tanto preparo físico quanto mental, mas que nos gratifica imensamente ao ver os brincantes extremamente entusiasmados com a brincadeira”, ressalta.
Para os grupos do Bumba meu boi, honrar a brincadeira é um assunto sério. Além de ser uma tradição viva, o Bumba meu boi ajuda os mais jovens a se envolverem com a comunidade e desenvolverem habilidades como tocar instrumentos, dançar, confeccionar trajes e adereços, e trabalhar em equipe. Para Genilson, o grupo orienta os adolescentes de maneira produtiva, afastando-os de envolvimento com o crime. “O Capricho tem o compromisso de preservar nossa cultura e evitar que ela se perca ao longo do tempo. Além disso, trabalhamos no resgate e na orientação dos jovens, fornecendo conhecimento sobre a cultura e, assim, contribuindo para que não se envolvam em atividades criminosas”, afirma.
A infância de muitos foi um palco onde a dança alegre do boi fez sua presença. Genilson explica que se depender do grupo, os olhares infantis estarão repletos da mesma alegria compartilhada pelo boi. “Um dos momentos mais gratificantes é ver o impacto do nosso trabalho nas crianças, com a valorização da nossa cultura pela comunidade e o compartilhamento de conhecimento com os jovens”, relata.
O boi é o protagonista de uma tradição viva que resiste ao tempo. Os movimentos de dança e a encenação ao ritmo das toadas marcam uma ode à cultura que habita o Bumba meu boi e o transforma em algo nosso, em um boi piauiense. Ele é uma tela onde os saberes se entrelaçam, onde a paixão e a cultura se fundem em uma única entidade que encanta, celebra e, mais importante, sobrevive. No cenário do Bumba meu boi, ecoam vozes ancestrais, lembrando a todos que a tradição e a música são fios que tecem a identidade e a história do estado. É um espetáculo que vai além das melodias; é um mergulho profundo na alma do Piauí e de sua gente.
O apoio do Estado é essencial para garantir que o Bumba meu boi e outras manifestações culturais similares possam prosperar e continuar a enriquecer a herança cultural do Brasil. Essas políticas públicas não apenas preservam uma parte valiosa da identidade nacional, mas também contribuem para o desenvolvimento econômico e social de comunidades locais e para a promoção da diversidade cultural. É uma forma de que os brincantes possam “alevantar” o boi todos os anos. Faz parte do encantamento e da beleza do boi resistir.
Além dos brincantes, o boi se mantém vivo através dos olhares e da forma como passa a habitar a memória coletiva. Para isso, é importante uma audiência que contemple a saga de Pai Chico, Catirina, o amo, o boi e os demais personagens. O Encontro de Bois em Teresina é uma das oportunidades para você se misturar, mesmo com o olhar ou com um balanço tímido, na festa. – ô balanceia meu boi – 🎶.
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