“Esta paisagem de muita largura, que o grande sol alagava. O buriti, à beira do Corguinho, onde, por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor”. Um espaço imenso banhado pelo sol, de uma beleza e alegria que se destacam em meio ao cenário aparentemente opaco, mas cuja aridez brota uma incessante vida. É assim que Guimarães Rosa descreve o Cerrado na obra Grande Sertão: Veredas. No Dia Nacional do Cerrado, celebrado hoje, dia 11 de setembro, destaca-se a importância desse bioma, que é o segundo maior da América do Sul, ocupando cerca de 23% do território brasileiro. No entanto, apesar dessa vastidão original, ele está perdendo espaço e diversidade devido à ação humana.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), entre janeiro e maio de 2023, o Cerrado sofreu um aumento de 27% no desmatamento em comparação com o mesmo período do ano anterior, totalizando mais de 3.320 km² de área desmatada. Para ter uma ideia, essa extensão corresponde a quase três vezes o tamanho da cidade de Teresina. O aumento dessas regiões segue uma tendência preocupante, uma vez que o Cerrado já havia registrado a maior taxa de desmatamento em sete anos em 2022, com 10.689 km² desmatados, conforme dados do Prodes Cerrado, programa de monitoramento do INPE.
De acordo com o WWF Brasil, o Cerrado já perdeu mais da metade de sua cobertura original, destacando a gravidade da situação. No Piauí, o desmatamento do Cerrado é alarmante. O portal TerraBrasilis, uma plataforma web desenvolvida pelo INPE, aponta que em 2022 a área desmatada foi a maior dos últimos anos: foi uma área de 1.188,76 km², quase o tamanho de Teresina. Contando desde 2001, quando o projeto passou a averiguar o desmatamento, o Piauí já teve 22.773,34 km² do cerrado desmatado.
O biólogo e doutor em botânica, Francisco Soares Santos Filho, destaca que o Piauí é um estado localizado em uma zona de transição entre diferentes biomas, marcada especialmente pelo Cerrado e a Caatinga – área que ocupa cerca de um terço do estado. “O Cerrado Piauiense ocupa principalmente a região sudoeste do estado, próxima às margens do rio Parnaíba. Essa área engloba diversas bacias, incluindo as regiões de Ribeiro Gonçalves, Bom Jesus e Baixa Grande do Ribeiro, Uruçuí. Nessas áreas, o Cerrado é predominante, mas ao longo de todo o estado, podemos encontrar manchas de Cerrado, muitas das quais se misturam com a Caatinga”, explica.
Segundo ele, o Cerrado exibe uma biodiversidade incrivelmente variada de espécies, a qual pode ser ainda mais vasta do que se imagina, já que ainda existem poucos estudos de catalogação na região. Entre as espécies da flora, Francisco cita o Ipê como uma espécie bastante comum e marcante na região. “Ainda há muitas espécies a serem descobertas nesse bioma. A gente tem entre 10 e 14 mil espécies no Cerrado brasileiro. E eu desconfio que pode existir muito mais, porque nós temos algumas zonas onde o Cerrado ainda é pouco estudado”, diz.
Essa diversidade é ressaltada por Guimarães Rosa em seu Grande Sertão:
A mesma raça de borboletas, que em outras partes é trivial regular – cá cresce, vira muito maior, e com mais brilho, se sabe; acho que é do seco do ar, do limpo, desta luz enorme. Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta altinho. […] Bom era ouvir o mom das vacas devendo seu leite […]. Tardinha que enche as árvores de cigarras – então, não chove. Assovios que fechavam o dia: o papa-banana, o azulejo, a garricha-dobrejo, o suiriri, o sabiá-ponga, o grunhatá-do-coqueiro.
Além do Ipê, o biólogo destaca a planta Gonçalo-Alves (Astronium fraxinifolium), uma árvore rústica de médio porte cuja madeira é bastante apreciada, como típica do Cerrado. Ela está em perigo de entrar na lista de espécies em extinção devido à exploração ilegal por extrativistas. Francisco ressalta que as ameaças à biodiversidade no Cerrado não afetam apenas esse bioma, mas o efeito dessa destruição se alastram pelos outros ecossistemas, já que estão todos interligados. “A perda de biodiversidade é sempre um prejuízo maior para a natureza e termina sendo um prejuízo também para o ser humano. Infelizmente, as pessoas ainda não atingiram o nível de consciência necessário; e a pobreza em determinadas regiões faz com que boa parte desse processo de degradação persista. Isso interfere diretamente na vida de todo mundo, independente de você estar ou não naquele ecossistema”, alerta.
Segundo Francisco, é fundamental adotar um manejo responsável dessas áreas, especialmente aquelas com rica diversidade biológica e espécies ainda desconhecidas. Outro aspecto importante é que Cerrado desempenha um papel vital na regulação do ciclo hidrológico, na conservação da biodiversidade aquática e no abastecimento de água para uma grande parte da população brasileira. O bioma é chamado berço das águas por alimentar oito das 12 principais bacias hidrográficas do país – ele representa a soberania hídrica do país. “É preciso ter muito cuidado na exploração do Matopiba, especialmente porque lá nós temos as nascentes de muitos rios importantes na nossa região. Então o Rio Parnaíba, o Rio Uruçuí, o Rio Balsas, todos eles têm nascentes na região do Matopiba”, comenta.
O desmatamento no Cerrado muitas vezes ocorre devido ao uso do solo em atividades agrícolas, especialmente no agronegócio. Dados do Inpe apontam que aproximadamente 80% dos alertas de desmatamento foram registrados nas áreas do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que compõem a região conhecida como Matopiba. Esta área representa atualmente a principal fronteira de expansão agrícola no Brasil e está entre as maiores causadoras de destruição de biomas no mundo. “O agronegócio é necessário para o desenvolvimento econômico, não só do Estado, mas do país inteiro. O Brasil é um grande celeiro de produção de alimentos. Agora, o que tem que ser feito é observar as regras. Muitas vezes os produtores equivocadamente atropelam a legislação, atropelam os fundamentos da conservação e aí terminam usando áreas sem os devidos cuidados, sem deixar reserva legal”, ressalta.
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A reserva legal é uma área em uma propriedade rural com vegetação natural que deve ser protegida para preservar a biodiversidade da região. Ela pode ser usada para manejo florestal sustentável, de acordo com as leis e os limites estabelecidos para o bioma em que a propriedade está localizada. juntamente com as Áreas de Preservação Permanente, A reserva legal visa proteger a biodiversidade local, sendo uma medida legal para combater o desmatamento e a expansão da agropecuária sobre áreas florestais e vegetação nativa.o tamanho da Reserva Legal em uma propriedade varia de acordo com o bioma e a região, No Piauí a exigência é 30% para áreas de Cerrado com pelo menos 20% dentro da propriedade e os outros 10% da propriedade mantida com vegetação nativa. No entanto, essa técnica não é totalmente compensatória “Se você usa técnicas de conservação do solo, você incentiva ali que aquela fração que ficou reservada, que aqui no Piauí é 30%, ela fique realmente preservada, você consegue minimizar os efeitos do desmatamento, sobre a biodiversidade.Mas esse efeito é só de minimização, ele não é totalmente compensatório. Pode ser que na área que eu desmatei existia uma espécie que não existia na área preservada. A chance disso acontecer é muito alta”, alerta.
Segundo o biólogo, uma forma de impedir que a destruição dos Cerrados avance é o controle mais efetivo dos processos de licenciamento ambiental, principalmente no que diz respeito à implementação de novos projetos do agronegócio, é uma medida fundamental para conter o avanço da destruição do Cerrado no Piauí. “Se você implementar uma política de desenvolvimento sustentável e o Estado exercer um controle sobre os processos que precedem o uso do solo, a cadeia que vai desde a escolha das áreas, passando pelo desmatamento, o manejo, até a conclusão do processo pode melhorar. Temos um bom arcabouço legal, com leis que protegem áreas e punem os infratores, mas, falta o efetivo cumprimento dessas leis pelo Estado. Acredito que há muito espaço para melhoria nesse sentido, para que possamos avançar no processo de preservação do Cerrado no Piauí”, comenta.
A palmeira que é mãe
No Cerrado, não há somente a diversidade da fauna, as cores da flora e o murmúrio das águas. Há uma tapeçaria viva, onde a biodiversidade se entrelaça com os povos, suas tradições e culturas – que também estão ameaçadas com o avanço da destruição desse bioma. A coordenadora local do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco-Babaçu, Marinalda Rodrigues da Silva, comenta que tem notado um aumento na destruição dos babaçoais em sua região, e isso vem ocorrendo com frequência. Ela reside na Comunidade Chapada da Sindá, localizada no município de São João do Arraial, ao norte do estado, onde a zona do Cerrado se mistura com a mata de babaçu. “E com o avanço do agronegócio, as nossas comunidades vêm sofrendo grandes perda de palmeiras de babaçoais e também de várias outras frutas nativas da nossa região. E isso causa uma grande perda para a gente como quebradeira de coco-babaçu”, alerta.
O babaçu é uma palmeira que pode atingir até 20 metros de altura. Conforme indicado pelo Manual de Aproveitamento Integral do Fruto do Babaçu, elaborado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), as áreas florestais que abrigam a palmeira do babaçu se estendem por aproximadamente 196 mil quilômetros quadrados do território brasileiro. Essas áreas têm uma concentração notável nos estados do Maranhão, Tocantins e Piauí, em uma região que é reconhecida como a Mata dos Cocais, que serve de zona de transição entre os biomas da Caatinga, Cerrado e Amazônia. Além disso, a presença dessa palmeira também se estende ao sul do Pará. A degradação do Cerrado afeta diretamente esse região.
“O Cerrado e o coco-babaçu representam a vida para mim e para todas as outras quebradeiras de coco-babaçu, porque sem o Cerrado e sem as palmeiras de coco-babaçu em pé, a gente não sobrevive”.
Preservar essa planta é de significância não apenas de um ponto de vista econômico, pois muitas famílias dependem dos seus frutos, mas também é crucial para a manutenção da riqueza biológica nessa zona de transição, de grande importância para o Brasil. Marinalda conta que as quebradeira de coco-babaçu exercem uma força de resistência muito importante para ajudar a proteger o Cerrado e enfrentar as ameaças relacionadas ao desmatamento e ao agronegócio. “A luta e a resistência das quebradeiras de coco foram fundamentais para a criação e implementação da Lei Babaçu Livre de forma que, depois que a lei foi aprovada, nós quebradeiras de coco se sentimos à vontade para coletar o coco em qualquer espaço que tenha coco Babaçu sem ter medo de coletar o coco, sem ter medo de alguém dizer que não pode coletar, a gente se sente mais com coragem e mesmo sabendo que o coco é livre, que o coco é nosso, que nós é quem quebra o coco, nós é quem sobrevive do coco, isso é muito importante para nós quebradeira de coco, essa lei aprovada do Babaçu Livre aqui no estado do Piauí.”
A lei mencionada por Marinalda é a Lei Babaçu Livre, resultado de décadas de luta das quebradeiras de coco babaçu, mulheres que enfrentaram violências ao longo de sua história. Sancionada no Piauí em dezembro de 2022, essa lei reconhece as atividades tradicionais de coleta e quebra de coco babaçu e seus métodos como patrimônio cultural do estado. Ela proíbe a derrubada de palmeiras de babaçu, promove o acesso livre das comunidades agroextrativistas aos babaçuais e proíbe o uso de agrotóxicos por pulverização, queimadas nos babaçuais.
“Se as palmeiras de coco, os babaçus, desaparecerem, e o nosso Cerrado for destruído, nossa perspectiva como quebradeira de coco será triste, porque não tem como a gente sobreviver sem palmeira de babaçu em pé, sem o Cerrado em pé”
Além disso, a lei prevê a destinação de terras públicas para territórios de quebradeiras, a criação de assentamentos e o livre acesso delas aos babaçuais em propriedades públicas e privadas. A Lei Babaçu Livre é a principal bandeira de luta das quebradeiras, buscando garantir seus direitos e melhorar suas condições de vida, porque. Segundo Marinalda, a lei é uma forma de proteger o que para ela significa a própria vida. “O Cerrado e o coco-babaçu representam a vida para mim e para todas as outras quebradeiras de coco-babaçu, porque sem o Cerrado e sem as palmeiras de coco-babaçu em pé, a gente não sobrevive”, afirma.
Promover o protagonismo das quebradeiras de coco babaçu equivale a proteger a diversidade de vida do Cerrado. Esse bioma, que se conecta a outras das diversas paisagens brasileiras, também está ligado às comunidades tradicionais que vivem nele e por ele. Quando pensa no futuro do bioma, Marinalda enxerga o espelho da própria vida. “Se os nossos governantes do Estado e municipais não tomarem as providências necessárias diante das inúmeras derrubadas, queimadas e desmatamentos que estão ocorrendo nas nossas comunidades e territórios, enxergo um futuro triste à frente como quebradeira de coco. Será um futuro triste, pois se as palmeiras de coco, os babaçus, desaparecerem, e o nosso Cerrado for destruído, nossa perspectiva como quebradeira de coco será triste, porque não tem como a gente sobreviver sem palmeira de babaçu em pé, sem o Cerrado em pé”, alerta.
Um deserto que se alastra
Apesar de a Caatinga ser mais suscetível à desertificação, esse fenômeno também afeta regiões do Cerrado, como é o caso de Gilbués, no norte do Piauí, que fica aproximadamente a 797 km da capital Teresina. O engenheiro agrônomo e pesquisador do seminário, Fabriciano Conrado, explica que a degradação do solo em regiões geralmente áridas, semiáridas e subúmidas secas resulta da combinação de diversos fatores, incluindo mudanças climáticas, fenômenos atmosféricos e ações humanas, como desmatamento e exploração intensiva do solo. Na região de Gilbués, o processo de desertificação é acentuado devido à topografia acidentada, índices de chuva intensos em curtos períodos e práticas humanas, como queimadas e desmatamento, em um solo naturalmente frágil. Para o engenheiro agrônomo, uma das formas de impedir a degradação do Cerrado é pela educação ambiental. “Um dos principais fatores de ameaça é a falta de orientação para os agricultores, especialmente os pequenos e médios, que muitas vezes não possuem conhecimento sobre práticas adequadas. Isso resulta em ações prejudiciais ao Cerrado, como caça, queimadas e desmatamento indiscriminado, principalmente em áreas de brejos e córregos. Acredito que a educação é fundamental para reduzir significativamente o impacto ambiental em nossa região”.
A cidade Gilbués está localizado em uma região de transição entre os biomas Caatinga e Cerrado, que também foi afetada pela expansão da fronteira agrícola do país. Essa expansão se estendeu para além do sudoeste do Piauí e sudeste do Maranhão, alcançando o oeste da Bahia e o norte do Tocantins. Nessa área, coexistem diferentes realidades, incluindo a produção mecanizada em grande escala e a agricultura familiar tradicional. Para Fabriciano, é necessário a fiscalização ações irregulares e o incentivo de práticas conservacionistas para os agricultores. “No Matopiba, essa falta de organização prejudica o crescimento, pois o desenvolvimento desordenado pode resultar em consequências ambientais negativas. Se não houver fiscalização adequada, essas consequências podem ser significativas”, ressalta.
Entre as atividades prejudiciais ao bioma, Fabriciano destaca a caça, que muitas vezes não é discutida, as queimadas, frequentemente usadas por caçadores para encurralar animais, e o desmatamento indiscriminado, principalmente em áreas de brejos e córregos, onde pequenos e médios agricultores costumam abrir áreas para cultivo.
Para não encerrar o Cerrado
Proteger o Cerrado não é apenas uma questão ambiental, mas também de relevância econômica, social e cultural. A destruição da vegetação original devido às práticas agrícolas, pecuárias e mineração é motivo de grande preocupação, principalmente devido aos impactos severos que isso tem sobre o ciclo da água em todo o país, afetando, por conseguinte, a produção agrícola e a biodiversidade como um todo. As comunidades tradicionais que têm uma ligação intrínseca com esse ecossistema são as mais diretamente afetadas por essas mudanças e frequentemente sofrem os primeiros efeitos dessa destruição. Para não se encerrar o Cerrado, antes de tudo, é crucial adotar medidas concretas, como a criação de áreas de conservação, a restauração de ecossistemas degradados e a promoção de práticas agrícolas sustentáveis. O monitoramento, a educação ambiental, políticas governamentais, engajamento da sociedade e parcerias internacionais também desempenham um papel crucial na preservação desse importante bioma. Devemos assegurar que o destino do Cerrado não seja o seu desaparecimento. Se for para existir um fim, que seja apenas pela forma como o Cerrado se dissolve no céu noturno de um horizonte infindável, como Guimarães Rosa descreve poeticamente: “Só no azul do anoitecer é que o Chapadão tem fim”.
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