domingo, 24 de novembro de 2024

Sob o brilho da Luna

Os traços e cores que marcam a identidade de Luna Bastos espalham as raízes artísticas da piauiense para além das fronteiras brasileiras

06 de outubro de 2023

Nas ruas movimentadas e nas roupas das pessoas que passam pelas avenidas. Na pele ou na madeira que serve como tela. A expressão artística de Luna Bastos, de 27 anos, rompe o cotidiano e vibra nas retinas. Luna é capaz de transformar o cenário urbano em uma galeria a céu aberto, onde suas criações fazem as cores se acenderem. Ela traz alguma luz para a rotina monótona nas grandes metrópoles. A artista, que nasceu em Teresina e viveu os primeiros anos de vida no bairro Dirceu, zona sul da capital, passou quase toda a infância na Vila do BEC, em Timon (MA). Depois, mais adulta, ela voltou a morar em Teresina. A trajetória de Luna é serpenteada pela cor de terra líquida do rio Parnaíba, um território onde o Piauí e o Maranhão se entrelaçam, e que muitos carinhosamente apelidam de Piranhão – esse estado híbrido marcado por um ir e vir.

A artista urbana piauiense Luna Bastos vive entre São Paulo e Rio de Janeiro e leva a arte do graffiti ao redor do mundo (Foto: Arquivo pessoal Luna B.)

Foi nas ruas e praças da capital piauiense que Luna entendeu que gostaria de conversar com o mundo pela arte. O graffiti foi a porta de entrada para esse diálogo, que surgiu na vida da artista em 2012, durante uma oficina ministrada na praça Pedro II pelo artista Naldo Saori, de São Luís. “Até então eu não tinha o hábito de desenhar e quando tive contato com a possibilidade de me expressar através dos muros e contar minha história, meus desejos, meus anseios, pensei: quero conseguir fazer isso”. A partir dessa experiência, a arte fincou raízes em Luna e cresceu, tornando-se uma maneira única dela se traduzir e traduzir o mundo. 

“Acredito que o estudo das emoções, do comportamento humano, da relação entre corpo e mente me permitiram ter uma sensibilidade mais apurada no meu trabalho artístico”

Apesar dessa intensa troca, apenas em 2020 Luna passou a vislumbrar a chance de estabelecer uma carreira na área artística. “Durante muitos anos precisei me dedicar aos estudos (em psicologia) e a ideia de ter arte como ofício parecia algo muito distante da minha realidade”. Formada em psicologia pela UESPI, Luna se espalha pelos muros das ruas e percorre as alamedas da psique humana unindo os campos da arte e da psicologia ao dar um corpo simbólico aos sentimentos que possui. “Acredito que o estudo das emoções, do comportamento humano, da relação entre corpo e mente me permitiram ter uma sensibilidade mais apurada no meu trabalho artístico”, comenta.

De onde as raízes se nutrem

Além da psicologia, as forças artísticas que fluem pelo trabalho de Luna são alimentadas pela música, poesia e fotografia. Artistas como Milton Nascimento, Itamar Assumpção, José Leonilson, Miró da Muribeca, Cátia de França, Leminski, Bjork, Nina Simone, Geovana, Nill, Flora Matos, Seydou Keita, Giovani Cidreira e Agnaldo Manuel dos Santos são apenas alguns dos nomes que inspiram a artista. 

A obra “Na Encruzilhada entre o Passado e o Futuro” foi grafitada na rua Legouvé, em Paris (Foto: Arquivo pessoal Luna B.)

As experiências pessoais também são uma fonte de inspiração da qual a artista se nutre. Esse olhar, que surge do íntimo, se reflete na recorrência de algumas abordagens, mesmo quando atualizadas. Um dos temas constantes é a representação de pessoas negras por meio de silhuetas escuras, que emergem da experiência e da sensibilidade de Luna ao dar forma à representatividade e à identidade racial em suas obras. “Essa temática está presente na minha criação desde o início, sempre me questionei sobre a representação de pessoas negras nos espaços”. Movida pelo incômodo causado por estereótipos e representações raciais negativas atribuídos a pessoas pretas, ela decidiu usar a arte como um vetor de mudança. Hoje, a obra de Luna se espalha pela urbe e deixa uma marca nos olhares daqueles que se espelham na obra com admiração e autorreconhecimento. “Cresci vendo através da TV e na escola representações negativas acerca da negritude. Então, de alguma forma, sempre desejei construir novas referências sobre ela”, explica. No entanto, essa busca por mudanças também se faz necessária dentro do meio artístico.

“Infelizmente as ruas ainda continuam sendo hostis para mulheres e para a população LGBTQIA+ . Enquanto mulher negra LGBT, sempre sou questionada sobre o tema, mas daí me pergunto: quantos homens são questionados sobre essas questões?”

Nos últimos anos, há um crescimento notável na participação e influência de mulheres no cenário do graffiti. Entretanto, ainda persistem inúmeros desafios, uma vez que as ruas ainda representam um ambiente violento para parcelas específicas da população. Luna enfatiza a importância de que homens sejam questionados sobre os esforços para promover e ampliar a igualdade de gênero e a diversidade no mundo do graffiti, e que o peso dessas mudanças não devem ser endereçado apenas às mulheres. “Infelizmente as ruas ainda continuam sendo hostis para mulheres e para a população LGBTQIA+ . Enquanto mulher negra LGBT sempre sou questionada sobre o tema, mas daí me pergunto: quantos homens são questionados sobre essas questões?”, questiona.

Ao mesmo tempo em que Luna encara cada parede em branco como uma tela em potencial para contar uma história, ela também enxerga a possibilidade de transformar o cinza das cidades a partir de experiências de conexão. “Gosto da ideia de não só fazer parte do cenário urbano, mas de modificá-lo. Toda vez que estou intervindo num espaço público, penso no tipo de cidade que eu gostaria de habitar. É bonito perceber como a percepção que as pessoas têm sobre um local se modifica após uma pintura”. Ao lançar a arte sobre uma parede, Luna se enlaça com a paisagem urbana e chacoalha o monocromático da rotina.

“Sinto-me realizada quando consigo estabelecer uma conexão genuína com as pessoas que habitam os territórios onde estou pintando”

A artista busca conectar-se com o território e com as pessoas que interagem diariamente com sua obra, como se cada pintura fosse uma marca territorial, influenciada pelas trocas e experiências que ela vivencia nos espaços. “Sinto-me realizada quando consigo estabelecer uma conexão genuína com as pessoas que habitam os territórios onde estou pintando”. Essa interação com a comunidade é um elo que ajuda a estabelecer um senso de pertencimento e identificação entre os habitantes, amenizando o ritmo acelerado das cidades com os traços e cores das figuras da artista.

O tempo das travessias

A efemeridade dos graffiti nas ruas é uma característica da arte urbana, porque a rua é um elemento em constante metamorfose. Essa característica é algo com que Luna gosta de lidar: as transformações do espaço urbano e a transitoriedade da tela viva com a qual trabalha. “Quando pinto algo na rua é como colocar um filho no mundo, não dá pra ter controle. Alguns murais duram semanas e outros duram anos. A única coisa que gosto de carregar comigo são os registros dos trabalhos”. A rua ensina sobre essa renovação e estado de mudança, é um retorno ao trabalho da artista. “A arte urbana me ensina a lidar com a efemeridade da vida”, comenta.

O mural “Afrolatina”, feito no bairro Bixiga (SP) e inspirado em “América Invertida” de Torres Garcia, desafia convenções ao inverter referências e propor uma visão alternativa da América (Foto: Arquivo pessoal Luna B.)

A arte de Luna está marcada pela cidade de Teresina. Desde os muros da UFPI ao autorretrato de 17m da artista localizado na Av. José dos Santos e Silva é visível traços da Luna pela capital. Ao mesmo tempo, a artista fala sobre a difícil relação com a cidade. “Em pouquíssimos momentos me senti reconhecida ou valorizada em Teresina”, comenta. Uma das razões para esse sentimento, de acordo com Luna, é a frequente solicitação de trabalhos artísticos não remunerados.

“Me senti muito grata pelo reconhecimento e pela oportunidade de pintar um mural em grandes dimensões na minha cidade natal, mas a realidade é que na maioria das vezes sou convidada para trabalhar de graça… não acredito que isso seja uma forma de valorizar minha trajetória”

Essa prática, trabalhar de graça, contribui para a falta de reconhecimento e valorização dos artistas na cidade, tornando ainda mais difícil para eles ganharem um salário justo e serem devidamente reconhecidos por seu talento e contribuições. “Quando fui convidada pelo Festival Retalho para pintar uma empena me senti muito grata pelo reconhecimento e pela oportunidade de pintar um mural em grandes dimensões na minha cidade natal, mas a realidade é que na maioria das vezes sou convidada para trabalhar de graça… não acredito que isso seja uma forma de valorizar minha trajetória”, explica.

Mural produzido por Luna Bastos na empena da Agência de Desenvolvimento Habitacional durante o Festival Retalho em Teresina (Foto: D.G)

Para além do Piauí, Luna ganhou o Brasil e o mundo. A obra dela cruzou fronteiras à medida que a artista participou de mutirões de graffiti nos estados vizinhos. Hoje, a grafiteira atravessou o país de Belém a Salvador e de Belo Horizonte a São Paulo. Internacionalmente, ela alcançou países como África Ocidental, Reino Unido, França, Áustria, Alemanha e México. “Sempre tive o desejo de explorar e conhecer novos lugares e sinto que a arte urbana intensificou o encanto pela travessia. Hoje meu trabalho tem um outro alcance, mas o desejo de conhecer novos lugares/culturas e deixar minha marca sempre se faz presente”. O encanto pela travessia é a maneira pela qual Luna aprecia o momento presente e abraça a beleza da transitoriedade, enquanto demonstra como as influências passageiras podem enriquecer a arte que criamos e apreciamos.

O movimento no caminho do traço

Almejar o reconhecimento por uma identidade visual marcante é um desejo comum a todos os artistas, e para Luna, construir uma identidade visual sólida foi uma das maiores conquistas na trajetória profissional. “Mesmo quando vario meu estilo ou me expresso em diferentes suportes, consigo sempre deixar minha assinatura”. Além do traço, a artista se move em um universo de cores muito específicas, frequentemente utilizando tons de azul-turquesa, amarelo, verde e preto; uma paleta de cores  bem a “cara” da Luna. O azul-turquesa, inclusive, é a cor preferida dela desde pequena. Luna combina esse tom com outras cores para criar atmosferas e umedece-las com sentimentos. “Quando faço uso do turquesa e do amarelo penso nos significados que essas cores carregam: o azul pra mim está ligado ao divino, à imensidão (do mar e do céu), ao sonho, à fantasia. O amarelo me remete ao sol, energia de vida que nos rodeia, sinto que é uma cor que me convida ao movimento e estabelece uma relação de equilíbrio com a profundidade do azul”, explica.

Mural gigante localizado na Avenida Rodrigues Alves, Zona Portuária da cidade do Rio de Janeiro. A arte integra o evento Rua Walls 2021 (Foto: Arquivo pessoal Luna B.)

Além das ruas, a arte de Luna tem se estendido a outros suportes e se manifestado em diversas telas, incluindo a pele. Para a artista, a tatuagem representa uma relação única e diferente em comparação com suas obras nos muros das ruas, que ensinam a transitoriedade. No corpo, os traços permanecem ao longo da vida, envelhecendo  testemunhando a passagem do tempo. “Comecei a tatuar com 20 anos quando ainda morava em Teresina. Sempre gostei muito do universo da tatuagem, como uma prática ritualística e ancestral, pela relação de confiança que se estabelece entre o tatuador e a pessoa que será tatuada”, comenta.

Um tela de raízes profundas

Hoje, além dos traços de tinta, Luna aprendeu o caminho da madeira e do entalhe. Cada suporte diferente é uma forma de experimentar uma conversa com a materialidade e o tempo da artesania. “O trabalho com madeira se difere das demais artes que eu produzo principalmente pelo tempo e paciência que demanda e vai na direção oposta ao trabalho que faço nas ruas (no geral um mural precisa ser finalizado em dias ou no máximo uma semana)”. A experiência de Luna com a madeira representa sua conexão com a arte e espiritualidade do Nordeste. Ela se inspira nos ex-votos, que são figuras de madeira oferecidas por fiéis a santos em agradecimento por promessas cumpridas, para criar suas esculturas entalhadas. “Também é um trabalho que me conecta às referências que tenho de arte no Nordeste (principalmente os ex-votos) e à natureza, pois estou lidando com uma matéria viva e que se modifica com o tempo, para além do meu controle”.

Escultura de madeira e alumínio inspirada na música “Milágrimas” de Itamar Assumpção – “A cada mil lágrimas sai um milagre” (Foto: Arquivo pessoal Luna B.)

O trabalho em madeira de Luna também é influenciado pelas inspirações que a psicologia lhe proporciona. Além da religiosidade, a ideia de criar máscaras de madeira foi inspirada por suas leituras sobre Jung e sobre as “máscaras sociais” que utilizamos para interagir com o mundo em nosso dia a dia. “Penso nas máscaras como uma espécie de segunda pele, como uma fronteira que estabeleço entre o mundo interior e exterior, entre o terreno e o divino, entre o que desejo guardar e o que desejo comunicar. Em relação à estética delas, pesquiso muito sobre as máscaras produzidas pela etnia Bamoun, em Camarões e também sobre as de origem Iorubá”.

A obra “Posso mudar meu destino” foi esculpida em madeira de Ipê e tem aplicação de cobre (Foto: Arquivo pessoal Luna B.)

Além da arte de Luna habitar os muros e o corpo, também está sob a pele. A artista busca expressar pela união do que produz e do que veste. “A moda representa pra mim uma forma de expressão da minha personalidade e da minha ancestralidade. Do ponto de vista social, compreendo que é uma importante ferramenta para construção/afirmação da identidade negra”. Em 2023, a artista desenvolveu uma coleção em parceria com a maior loja varejista de moda do Brasil, a Renner. “Foi muito significativo ter uma coleção de roupas com estampas desenvolvidas por mim. Ver pessoas se identificando e desejando usar essas peças foi especial, principalmente pela ideia de tornar a arte presente no dia a dia”, relata a artista urbana.

As linhas curvas da arte de Luna se entrelaçam no caminho têxtil rente à pele (Foto: Arquivo pessoal Luna B.)

Agulhas, ideias e um coração

Mas não é só pela tinta e pelas estampas que Luna constrói um caminho têxtil. Ela também usa a agulha com um instrumento para tecer arte. “O bordado (com linhas e depois com miçangas) surgiu durante a pandemia num momento em que senti que precisava me voltar mais aos processos manuais, para me conectar mais com a minha própria história como uma forma de reconstruir elos”. No caso de Luna, essa escolha não apenas permitiu uma conexão mais profunda com sua própria história, mas também a ajudou a reconstruir elos com seu passado e suas raízes. Ao incorporar miçangas, a artista adiciona uma camada extra de complexidade e textura à sua obra.

“Com o movimento do bordado sinto que estou repetindo, recordando e elaborando questões que me atravessam. Gosto muito de uma frase do artista Leonilson que diz: a agulha desenha as ideias do coração. Acho que isso resume bem”

Ela encontrou junto ao movimento de bordar o desenho das próprias memórias. “Com o movimento do bordado sinto que estou repetindo, recordando e elaborando questões que me atravessam. Gosto muito de uma frase do artista Leonilson que diz: a agulha desenha as ideias do coração. Acho que isso resume bem”.

O bordado de Luna faz uma releitura da fotografia da cineasta Juh Almeida – [deixa o menino sonhar] (Foto: Arquivo pessoal Luna B.)

Hoje, a artista que vive no eixo Rio-SP, fala que o desafio diário é continuar a ser artista no Brasil e viver com dignidade. “Meu desejo para o cenário da arte urbana é que ele se torne cada vez mais diverso e que as pessoas valorizem mais esse tipo de arte que é, em sua essência, tão democrática”, ressalta.

Essa valorização da arte vai além da apreciação e encantamento visual; envolve o apoio e a celebração dos artistas. É essencial reconhecer o valor que sustenta essa produção, algo que Teresina, o Piauí e o Brasil ainda precisam aprender. Essa valorização não se limita ao reconhecimento e à exposição, mas também requer investimento financeiro e entender que a arte é um meio de vida. E viver/produzir custa dinheiro. Esse tipo de valorização possibilita que artistas como Luna continuem a criar e compartilhar seu trabalho, ao mesmo tempo em que contribuem para o desenvolvimento cultural de suas comunidades.

A obra de Luna é um devir para a artista, um lembrete de progresso sem perder suas raízes e de resistência nesse desafio diário de ser artista. É como crescer em direção à lua, abraçando a potência máxima de sua identidade, de sua fase maior. Como diria Conceição Evaristo, é um sonho olhando para o futuro que se faz hoje, que acontece no agora. Esses sonhos são raízes que se fincam em um trabalho duro e que se expande mundo afora. A cada traço, linha e bordado, Luna cresce. Nas palavras dela, “A arte que desenvolvo é uma expressão do que sou ou do que aspiro ser”. 

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