sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Raízes junto à dança

JUNTA FESTIVAL coloca Teresina no epicentro da dança com uma programação repleta de espetáculos que marcam a cultura do estado

20 de outubro de 2023

Dançar pode ser mover raízes, choacolhar algo que parece fixo, mas que se nutre de ação e de memórias. Nos gestos e expressões coreografadas, há uma imersão nas próprias origens, um mergulho nos cenários e seres que marcam a vida. “Dancem, dancem, senão estamos perdidos”, dizia a grande coreógrafa alemã Pina Baush, apontando a dança como uma direção de sobrevivência. O movimento dos corpos enlaçados por essa arte também aponta o caminho da própria cultura. Nos espaços da capital, dançar nutre as nossas raízes piauienses. Para alimentar essa força, a 9ª edição do JUNTA FESTIVAL traz a dança contemporânea aos palcos de Teresina e aquece o cenário cultural da cidade entre os dias 24 e 29 de outubro. O evento apresentará trabalhos vindos da França, Suíça e de várias regiões do Brasil; em destaque, traz grandes produções do nosso próprio estado.

São muitos os piauienses que contribuem para dar vida ao que se segue nos palcos da capital, desde coreógrafos, bailarinos, diretores e outros profissionais. A seguir, a história de alguns dos espetáculos e diretores que enriquecem a cena artística da dança no JUNTA Festival.

Mergulho inscrito no corpo

Mesmo antes de embarcar em sua jornada profissional na dança, o coreógrafo e bailarino Marcelo Evelin já nutria uma relação intensa com essa forma de arte durante a infância. Aos cinco anos, ele sofreu uma fratura no fêmur que o manteve imobilizado por seis meses. Nesse período de repouso forçado, ele fortaleceu a conexão com o próprio corpo, entendendo a importância do movimento e da materialidade de si mesmo. “Foi nesse momento que comecei a compreender meu corpo como uma extensão essencial da minha sobrevivência no mundo”, compartilha Marcelo.

Essa entendimento do corpo como forma de se relacionar com os espaços se entrelaçou na vida de Marcelo, fincando raízes na dança. O bailarino e coreógrafo procurou expandir essas conexões quando, aos 18 anos, retornou ao Rio de Janeiro. Foi nesse momento que iniciou seus estudos em dança sob a orientação de Klauss e Angel Vianna. Com a dança, ele descobriu uma forma de nutrir a própria existência e traduzir-se ao mundo. O que alimenta a minha dança é o outro, os vivos e os mortos, e as relações com as pessoas e o mundo. São as coisas simples, que passam desapercebidas e acabam por me atravessar”, ressalta.

Saudade e identidade ressoam na dança, acompanhadas por elementos teatrais, sonoros e visuais que vibram as origens do coreógrafo (Foto: Pedro Ivo)

A experimentação na arte atualiza a comunicação com o mundo. É por ela que os artistas renovam as formas de se conectar consigo mesmos e com o público. Ao olhar para as origens, Marcelo mergulha na cena da dança do Piauí e observa como a expressividade dos artistas se fortalece por esse desejo de experimentação, de dançar movimentos que expandam os limites do que é possível na dança. “Temos uma cena forte e ativa na dança aqui no Piauí, e a coisa cresceu muito e em todas as direções. Nossa dança esta permeada de experimentação e apostas, de descobrir como fazer da maneira que der, e isso é muito importante que esteja acontecendo”, relata o coreográfo.

“Temos que cuidar dos espaços e condições que a dança propicia a jovens artistas, e expandir cada vez mais essas possibilidades”

Ainda que a dança mantenha sua resiliência e, independentemente das circunstâncias, continue a expressar sua força, toda arte precisa de apoio e valorização para se manter. Marcelo enfatiza que a necessidade de investimentos para que os dançarinos, coreógrafos e profissionais possam desenvolver plenamente seus trabalhos no Piauí. “Acho injusto que o orçamento para a dança em editais públicos do estado e município seja menor do que para outras áreas, que nem chegam a ter uma projeção que a dança tem. Acho que temos que cuidar dos espaços e condições que a dança propicia a jovens artistas, e expandir cada vez mais essas possibilidades”, comenta.

Ao olhar para o corpo como um reservatório de memórias, Marcelo criou o “Ai, ai, ai”, espetáculo que ele apresenta no Junta Festival, na quarta-feira, dia 25 de outubro, às 19h, no Teatro Sesc Cajuína. Cada gesto, cada movimento, cada expressão revisita a jornada poética nas raízes afetivas de Marcelo que, durante a estreia do espetáculo, em 1995, estava há muito tempo distante do Brasil e do Piauí. O solo é altamente pessoal, criado a partir de uma investigação do corpo e da memória, explorando o momento presente e a conexão com o passado.O Ai, ai, ai surgiu de cacos de memórias, de lugares, situações e pessoas, do frio intenso e da solidão que o inverno traz. Surgiu de muita saudade, da infância, do Brasil, mas também do desbunde, do ai ai ai do carnaval e do teatro de revista, que eu sempre gostei muito”, relata.

O “Ai, ai, ai”  faz referência aos trejeitos de Carmen Miranda e ao choro-soluço de um criador exilado de casa há muitos anos (Foto: Pedro Ivo)

O espetáculo “Ai Ai Ai”, que completa quase três décadas de estreia, é um exemplo da relação contínua entre a dança e o corpo humano. Neste contexto, a performance perdura, revelando a poesia intrínseca na saudade e na memória marcadas pela identidade de Marcelo. “Pra mim é um presente enorme poder seguir dançando esse solo por 28 anos, exatamente igual, sem mexer nada, só o corpo envelhecendo e o tempo passando e as adaptações naturais feitas nessa dança”, revela. O corpo procede e resiste dançando, encontrando nessa arte um fortalecimento.

Precisamos trabalhar o nosso senso critico, saber falar e dizer o que fazemos, como fazemos e como entendemos a nossa dança em relação ao mundo. O reconhecimento precisa vir daqui e de nós mesmos

Para que a dança do Piauí continue a inspirar e deixar uma marca que transcenda Teresina e alcance reconhecimento global, Marcelo visualiza um futuro repleto de aspirações e esperanças que precisa ser fortalecido junto ao incentivo do governo. “Precisamos de um curso superior de dança no estado, para profissionalizar nossos artistas, e ampliar espaços e condições – formais e não formais – para a dança continuar existindo”. A dança também cresce com o olhar do público e de outros artistas ao valorizarem os significados da dança que emergem da nossa terra, com suas memórias, raízes e seu povo. “Precisamos trabalhar o nosso senso crítico, saber falar e dizer o que fazemos, como fazemos e como entendemos a nossa dança em relação ao mundo. O reconhecimento precisa vir daqui e de nós mesmos”, comenta o coreógrafo e bailarino.

O “Ai, ai, ai” poderá ser apreciado pelo público piauiense no Junta Festival durante o dia 25 de outubro, às 19h, no Teatro Sesc Cajuína (Foto: Pedro Ivo)

Encanto na cor ancestral

A dança entrou na vida da coreógrafa e professora Artenilde Silva ainda na infância, ou podemos dizer que a vida de Artenilde entrou na dança – se é que alguma vez esteve fora dela. Aos sete anos de idade, ela descobriu algo poderoso na cadência dos passos que vibravam nas festas juninas de São Félix do Piauí, cidade natal da coreógrafa. Durante as competições de valsa que aconteciam nesses festejos, Artenilde descobriu que dançar era uma potência. Quando a família dela se mudou para Teresina, a coreógrafa viu a oportunidade de desenvolver essa força. “Eu continuei buscando esse lugar de segurança na dança. Fiz dança contemporânea, fiz jazz e ballet clássico quando a Fundação Monsenhor Chaves realizava oficinas e cursos nas periferias”, relata a coreógrafa. 

“Eu nunca desisti da dança, porque ela também nunca desistiu de mim”

Mesmo ao descobrir os movimentos dessas danças, Artenilde continuava a buscar mais. Era como se algo ainda estivesse faltando – um ritmo a ser descoberto pelo corpo. “Eu nunca desisti da dança, porque ela também nunca desistiu de mim. E aí, em 1988, eu comecei a pesquisar as danças afro em um momento em que Brasil começou a pensar a situação da negritude no país” conta. Segundo ela, nesse período a igreja católica começou a encarar o papel das pessoas negras dentro da religião, da espiritualidade e da sociedade. Por estar inserida na comunidade católica e ter uma forte afinidade com a dança, Artenilde foi convidada a criar uma coreografia para a Missa dos Quilombos, uma cerimônia religiosa que buscava integrar influências culturais afro à celebração católica. Durante a pesquisa sobre as influências afro na dança, a coreógrafa descobriu que os movimentos embalados pelo som da percussão conectavam o coração dela a todo o corpo, agitando a ancestralidade enraizada nele. “Eu descobri que aquilo era o que eu queria dançar. Era aquela dança que em 1988 Teresina não conhecia como dança, mas que existia dentro dos terreiros e dentro da capoeira “, comenta. A partir do enlace entre o corpo, o ritmo e o movimento, ela se apaixonou novamente pela arte de dançar.

Artenilde personifica a dança em uma celebração de identidade marcada pelo presente e pelo ancestral (Foto: Hélio Alvarenga)

A dedicação por essa arte levou Artenilde a se aproximar de espaços e grupos no qual a dança afro fazia casa. No caminho da pesquisa e da prática, a coreógrafa criou o primeiro grupo de dança afro em Teresina, o Delê e, posteriormente, o Afoxá. “Em 1995, me convidaram para realizar uma oficina de dança afro na periferia sul de Teresina, no bairro Angelim, e foi aí que o grupo Afoxá surgiu”. Dessa semente, o Grupo Afoxá cresceu impulsionado pela herança ancestral e pelo desejo de expressar as vivências marcadas pelas questões raciais. “Estudamos muito sobre corpo preto. As temáticas que nos movem na dança vêm das memórias que nos envolvem, vem dos nossos avós, pais e mães e dos fazeres cotidianos das nossas famílias pretas. Transformamos isso em dança, entendendo tudo a partir do tambor”, explica.

Apesar do aumento do debate em torno dos movimento negro nos anos 90, a dança afro-brasileira continuava a ser subestimada e alvo de questionamentos quanto à natureza artística. Muitas pessoas não compreendiam ou ignoravam a forte relação deste estilo de dança com a arte, a religião e a resistência cultural do povo africano, o que levava a olhares racistas. Artenilde destaca que o grupo Afoxá contribui para consolidar a dança afro como uma influência poderosa no Piauí. “Em muitos momentos ouvimos que nós não fazíamos dança, que não tínhamos metodologia, que não tínhamos técnica, mas sempre a gente buscou dialogar com o cenário da dança. Sempre dizendo que sim, temos tudo isso”, confirma Artenilde, reafirmando a riqueza dessa expressão cultural.

“Todos os lugares têm dança. É um elo para que todo mundo se comunique, se fortaleça e possa existir”

A potência dos diferentes corpos em movimento instiga diálogos e molda a narrativa da nossa própria existência. Pelos passos e gestos impregnados de ritmo, nasce a força transformadora da dança. Para Artenilde, o Grupo Afoxá cresceu com o anseio de tocar os outros pelo movimento, por dialogar pelo acolhimento do som com o corpo. “Todos os lugares têm dança. É um elo para que todo mundo se comunique, se fortaleça e possa existir. E o grupo Afoxá marcou e marca essa história porque é um grupo que sempre formou, se qualificou, sonhou, teve esperança e sempre foi muito aberto para o diálogos; e nem só aberto, sempre foi provocador de diálogos!”, afirma a coreógrafa. 

O atual cenário da dança no Piauí tem se diversificado, abraçando estilos que anteriormente não recebiam tanto reconhecimento – algo conquistado pela reunião de inúmeras forças como a de Artenilde, que incentiva a pluralidades de movimentos e influências sob os palcos do estado. Para a coreografa e professora, um sinal dessa transformação é a inclusão de danças afro, danças populares, folclóricas e urbanas na programação da Escola Estadual de Dança Lenir Argento. Ela enfatiza: “A Escola Estadual de Dança é a vitrine da dança no estado. É por isso que todas essas formas de dança, que não faziam parte anteriormente, almejavam estar presentes, reconhecendo o local como um importante palco onde podemos exibir nossa riqueza artística”. Essa mudança indica um novo horizonte para a dança no Piauí.

Da língua Yorubá, “Afoxá” significa “encanto” e marca as raízes afro na expressividade do grupo (Foto: Hélio Alvarenga)

É para entrar no compasso dessa dança e democratizar o acesso a arte, que Artenilde e o Afoxá nunca pararam de se reinventar e trazer novas narrativas ao Piauí, como uma forma de não deixar esse diálogo com o corpo cessar. Na próxima quinta-feira, 26 de outubro, às 19h, na Galeria Clube dos Diários, Artenilde e o Grupo Afoxá se unem para apresentar “Sementes de Cabaça”, um espetáculo que celebra a conexão com a natureza através de danças ritmadas e espirituais. Nessa performance, o corpo se torna o veículo de um diálogo profundo, fazendo o público vibrar ao ritmo dos movimentos. Como destaca Artenilde, é necessário prestigiar e valorizar os profissionais que movem essa arte , pois “A dança é um saber que estrutura todos os outros saberes, porque é um lugar de produção, de conhecimento, através da criatividade. E quando o ser humano cria com a dança, ele se torna mais alegre, mais feliz, ele consegue olhar para o mundo de uma forma mais esperançosa”.

“Semente de Cabaça” é uma celebração à cura, à natureza e à capacidade de enfrentar mudanças com serenidade (Foto: Hélio Alvarenga)

Programação

A dança é a estrela principal do JUNTA Festival, e por isso o evento se desdobra em um mosaico artístico repleto de performances, desde a intensa batalha de Vogue, até o arrebatador Baile Afrosamurai. Além de destacar os talentos da cena artística local, o festival também estabelece colaborações internacionais de prestígio, como as parcerias com a Fundação Pro Helvetia da Suíça e o Consulado da França no Brasil. No evento, o palco é um ponto de convergência, onde os espetáculos que transcendem fronteiras geográficas e conceituais marcam o caminho da dança contemporânea em todo o mundo – localizando o centro da dança em Teresina.

Os espetáculos estão distribuídos entre o Complexo Cultural Clube dos Diários, o Theatro 4 de Setembro, o Parque da Cidadania e o Sesc Cajuína. Os ingressos para as apresentações estão disponíveis exclusivamente na plataforma Sympla e devem ser apresentados na entrada, acompanhados de uma doação de 1kg de alimento não perecível. Confira a programação logo abaixo.

(Imagens: Junta Festival)

 

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