Uma das formas que João* encontrou para explicar o que sentia, quando enfrentou a ansiedade aos 21 anos, foi uma “constante vontade de gritar sem ter palavras”. O universitário mora na zona Norte de Teresina, onde saía de casa às seis horas da manhã para ir aos dois empregos – ele tinha o dia todo ocupado e estudava no período da noite. A rotina corrida entre trabalho e aulas, colocaram o jovem frente a um desgaste mental, fazendo-o procurar ajuda no sistema de saúde pública da capital.
Por não ter condições de custear o tratamento psicológico, buscou os serviços gratuitos oferecidos pela Universidade Estadual do Piauí (Uespi) e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – mas não conseguiu atendimento. Após esperar por mais de um mês, desistiu de procurar o serviço. “Foi uma época muito difícil, emocionalmente e financeiramente. Tive que procurar outras formas de me ajudar”, lembra o jovem, que precisou da ajuda de amigos e freou a rotina de trabalho. “Estou melhor que antes, mas ainda preciso de ajuda especializada”, reforça.
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A dificuldade vivenciada por João* se estende a vários outros jovens que enfrentam sintomas de adoecimento mental e não conseguem atendimento. De acordo com a Gerência de Saúde Mental da Fundação Municipal de Saúde (FMS) de Teresina, após a pandemia da Covid-19, a procura pelos serviços nas sedes dos sete CAPS distribuídos em todas as zonas da capital aumentou consideravelmente. A gerente do serviço, Larissa Carvalho, relata que de janeiro a julho deste ano, foram realizados 16.495 atendimentos. Em apenas um mês, alguns centros chegaram a ter mais de 1.000 prontuários ativos.
Larissa explica que o número é muito grande para suportar a demanda da capital, que também atende pessoas de outros municípios. Ela detalha que faltam recursos financeiros destinados à saúde para contratar mais profissionais, abrir mais centros de convivência e novos serviços para atender os pacientes que procuram os CAPS. “Depois de uma pandemia como essa, tão longa, onde as pessoas tiveram que se privar de tantas coisas, a saúde mental deveria ser uma prioridade no que diz respeito à saúde pública”, ressalta.
Crise sufocada
Tratado como um grande tabu, o suicídio não é um assunto frequentemente abordado pela mídia e outras instituições, embora, apenas no Piauí, represente a média de 10 mortes a cada 100 mil habitante. Os dados são de levantamento realizado entre os anos de 2010 e 2017 – computados com base nas declarações de óbito do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). O número superou o dobro da média nacional, que atingiu cerca de 5% do número de mortes.
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Em todo o estado, os três municípios que mais apresentaram mortes por este motivo entre 2018 e 2020, foram: Teresina (254), Picos (37) e Parnaíba (34).
O psicólogo e pesquisador na área, Carlos Henrique de Aragão, reforçou em sua pesquisa sobre casos de suicídio em Teresina que os dados são subestimados em todo o mundo. Ele reforça que, apesar dos esforços para quantificar o fenômeno, os dados podem ser quatro vezes menores do que a realidade. Carlos aponta que as motivações podem ser várias, desde questões culturais até um sistema de saúde que não está preparado para lidar com o assunto, com a falta de preparo técnico e emocional dos profissionais de saúde.
O pesquisador destaca que Institutos de Medicina Legal (IML) muitas vezes não têm estrutura adequada ou treinamento para apurar os fatos de forma cautelosa, o que impede que haja medidas estratégicas para evitar o suicídio. “Os hospitais privados são locais em que a classe média alta tem mais facilidade para camuflar o suicídio, se assim o desejar”, analisa em sua dissertação de mestrado sobre casos de suicídio atendidos através do Hospital de Urgência de Teresina entre janeiro de 2011 e junho de 2012.
Durante os 126 casos que analisou, ocorridos em Teresina, Carlos Henrique constatou que a maioria das vítimas eram homens, alcançando cerca de 60% dos casos. “Isso contradiz o que geralmente acontece em vários outros países, ou seja, geralmente a proporção é três vezes maior em mulheres”, analisa. Entre as causas, a maioria estão tentativas por envenenamento ou ingestão de medicamentos – sendo 52% dos casos, em grande quantidade por “chumbinho”, droga de venda proibida, mas que é encontrada facilmente no comércio a baixo preço.
Outros dados encontrados pelo pesquisador foram referentes ao estado civil: homens solteiros, separados e viúvos são a maior parte das vítimas. Os registros apontaram que cerca de 37% eram casadas. “O suicídio é uma comunicação trágica, por isso é importante decifrar esses códigos”, reforça em sua pesquisa.
No interior do Piauí, a dificuldade para entender os aspectos do suicídio se agravam. Isso porque ainda há uma quantidade baixa de pesquisas que possam quantificar e trazer soluções sobre as causas e o panorama do autocídio. Em Picos – segunda cidade com maior número de casos no estado -, a diretora do CAPS, Aurelândia Rocha, destaca a falta de políticas públicas adequadas voltadas para essa temática. O município, que recebe pacientes de mais de 19 cidades do Sul do Piauí, enfrenta muitas fragilidades na rede de atendimento para poder atender o usuário dos serviços e as famílias que enfrentam o adoecimento mental.
Segundo a diretora, a falta de leitos para casos psiquiátricos, casas de acolhimento e poucas Unidades de Pronto Atendimento (UPA’s) são os principais fatores que afetam a assistência psiquiátrica na região. “Quando não há políticas específicas aliada de uma boa comunicação, o problema é sufocado, ignorado”, avalia. Além disso, ela diz que pensar a saúde mental também envolve criar dispositivos que tornem a população saudável, como criar infraestrutura na cidade, projetos de cultura, lazer e oportunidades no mercado de trabalho. “Até a arquitetura é importante, uma vez que muitos prédios e passarelas, dependendo da sua construção, facilitam o suicídio”, observa.
Para o pesquisador Diego Stefano, as cidades piauienses com número significativo de casos refletem uma fragilidade do poder público em destinar investimentos na saúde mental. Teresina, Parnaíba e Picos, por serem regiões populosas que recebem uma grande migração de pacientes, acabam se concentrando em recepcioná-los, e não no acolhimento e diagnóstico de casos antes de seu agravamento.
Em uma metáfora simplificada, é como se as cidades estivessem mais preocupadas em remediar do que prevenir – enquanto os especialistas alertam que as ações de prevenção ao suicídio deveriam estar mais voltadas para envolver educação e psicologia do que na injeção de recursos em novas plataformas, como centros de escutas temporários. “O suicídio é evitável na medida que a escuta alcança histórias sufocadas por sentimentos de culpa, reprovação, humilhação”, pontua Stefano. “Nesse sentido, independentemente de qualquer campanha que seja feita, não terá efeitos de mobilização de forças. Pelo contrário: lota clínicas e não produz efeitos a longo prazo”, finaliza.
Além do amarelo
Todos os anos, o 9º mês é associado à campanha nacional do Setembro Amarelo. Empresas e o setor público se engajam de diferentes formas e ações para falar da prevenção ao suicídio, valorização à vida e cuidado com a saúde mental.
No entanto, para a pesquisadora em políticas públicas e saúde mental, Sayonara Lima, as ações devem ser efetivadas a longo prazo e de forma constante, principalmente por parte do poder público. “Compreendo que esse cuidado deve haver não quando o problema já está instalado”, reforça. “Mas na prevenção para que essas pessoas saibam lidar com as dificuldades do seu cotidiano”.
A pesquisadora chama atenção para o fato de que a saúde mental deve ser incluída nas estratégias adotadas para a saúde pública de um modo geral, uma vez que políticas destinadas a isso não avançam sozinhas. “O cuidado com a saúde mental não deve ser prioridade apenas dos CAPS, mas sim de uma rede integrada entre todos os setores da sociedade”, diz.
Com o aumento da procura por assistência psicológica durante a pandemia, Soraya analisa mais uma dificuldade enfrentada em torno da falta de preparo de toda a rede de saúde: os centros são pontos de serviços estratégicos e não especializados. “Muitas demandas não são do CAPS”, observa. “Quando fazemos uma avaliação e vemos que o paciente não é o perfil, a gente se questiona: para onde encaminhar? Onde essa pessoa pode encontrar acolhimento?”, questiona.
A única forma de prevenir seria incluir o cuidado com a saúde mental em setores como a saúde primária, a escola, a família e, é claro, também no setor econômico. “As pessoas precisam de cuidados e esses cuidados precisam ser ofertados não só em serviços especializados, e não apenas em um mês do ano”, frisa a especialista.
“A saúde mental perpassa pela questão socioeconômica, cultural, familiar”, segue explicando. “Se não realizarmos um trabalho em conjunto, ele não será eficaz”.
Saiba onde conseguir ajuda
Além dos CAPS – que você pode conferir endereços e contatos clicando aqui -, há lugares e entidades que contribuem na prevenção do suicídio e apoio a vítimas, gratuitamente. Se você está passando ou conhece alguém que está passando por um momento difícil, com alguns dos sintomas como desesperança, crises de choro sem motivo e sensação de solidão e isolamento, não deixe de procurar ou oferecer ajuda – um simples gesto de atenção pode salvar vidas.
- Centro de Valorização da Vida (CVV) – 188
- Provida – Rua Magalhães Filho, 152 / (86) 3215-43-44
- Centro Débora Mesquita (CDM) / (86) 9 9827-3343 / 9 8894-5742
- Cliníca-escola universitárias: Uespi; Centro Universitário Santo Agostinho; Uninassau; Facid
- Hospital Areolino de Abreu (serviço de atendimento a urgência): (86) 3222-2910
- Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) / 192
*Nome alterado para preservar a identidade da fonte.
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