É madrugada quando um adolescente passeia entre caminhões estacionados paralelos ao posto de gasolina com chão de terra. O lugar é calmo o suficiente para que motoristas estacionem, a noite, e cedam ao descanso antes de voltar a pegar a estrada. Por ali, o menino perambulante, de bermuda e camisetas puídas, observa tudo e parece estar à procura de algo. Poucos minutos depois um homem desconhecido se aproxima. Entre um trago e outro do cigarro ele o encara fixamente, faz um gesto com a cabeça, e ambos entram no caminhão.
Já era dia quando o jovem, que agora sabemos se chamar Massar, encontra seu amigo de rua, Adú – mais novo que ele, aparenta ter pouco mais de seis anos. Ao saber que o colega está com fome, Massar muda a expressão abatida e comemora: “Temos dinheiro!”.
Esse é um fragmento do filme Adú, cujo enredo se passa na cidade de Melilla, no norte da África. Entre os problemas sociais, a produção aborda a exploração sexual infantil autônoma: a prática de atos sexuais com crianças e adolescentes mediante pagamento, e sem o intermédio de outros adultos.
O episódio é fictício e acontece no continente africano – mas bem que poderia ser real e se passar no Brasil, e bem aqui, no Piauí. As rodovias, que cortam o estado de uma ponta a outra, assim como o cenário apontado no filme, são um dos principais pontos de vulnerabilidade.
O Dia Internacional Contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças tem data certa no calendário: 23 de setembro. O intuito é chamar a atenção para um assunto invisível e que deve ser debatido na sociedade. Segundo dados do Governo Federal, de 2011 ao primeiro semestre de 2019, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos registrou, via “Disque 100”, mais de 200 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. Entretanto, esse número não corresponde à totalidade dos casos, visto que apenas 10% são notificados às autoridades. Dessa forma, a estimativa é de que ocorreram mais de dois milhões de casos nesse período.
O Projeto Mapear, desenvolvido pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) e Childhood Brasil aponta que, entre 2019 e 2020, foram detectados mais de 100 pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes (ESCA) em rodovias federais no Piauí – um aumento de 139% em relação ao levantamento anterior do biênio 2017/2018, que contabilizou 43 pontos. Os números colocam o Piauí em 14º no ranking nacional de pontos mapeados. O levantamento aponta ainda que as cidades de Floriano, Bom Jesus e Teresina possuem a maior quantidade de pontos de vulnerabilidade.
Em comparação a outros anos, o perfil de exploração no estado mudou em consequência das medidas de restrição de circulação e abertura dos estabelecimentos. “O que se tem observado, especialmente no último ano, é que os pontos de exploração migraram para a região rural devido à pandemia”, revela a inspetora Menezes, do Núcleo de Comunicação da PRF/PI.
No Piauí:
O novo estudo revelou um aumento na vulnerabilidade para exploração sexual infantil na zona rural, que contabilizou 300% (36 pontos). Na zona urbana também houve crescimento – e continua sendo a maior incidência de risco, com 97,1% (67 pontos).
Menezes comenta que não há um direcionamento que possa revelar o perfil das crianças ou exploradores. Porém, é possível observar uma repetição da forma como se dão as ocorrências. “Há situações em que algumas dessas crianças estão sob o efeito de álcool ou uso de substâncias psicoativas. Muitas vezes elas são encontradas já tendo sido exploradas”, finaliza.
Assunto é visto como tabu e tem consequência diversas
Em 2020, no Brasil, foram registradas 95.247 denúncias de violações contra crianças e adolescentes através do “Disque 100”. As denúncias envolviam violência física, psicológica, abuso sexual físico, estupro e exploração sexual. Entre todos, o menor registro é o que diz respeito à exploração sexual (1.677) e, o maior número de ocorrência é de violência física (69.937). A exploração sexual ainda é assunto envolto de tabus e requer cuidados acentuados – deve ser tratado de forma diferente dos outros tipos de violências sexuais contra crianças e adolescentes, como o abuso sexual.
Os abusos sexuais acontecem, em sua maioria, dentro de casa, e o abusador, no geral, é uma pessoa de confiança da família. Essa é uma das violências sexuais mais comuns cometidas contra crianças. “Quase todos os dias recebemos relatos de casos de abuso que se concretizam”, comenta Ivan Cabral, conselheiro tutelar em Teresina. “E a gente precisa alertar que o abuso não é só quando há penetração”, informa. “No momento em que a pessoa toca no corpo de uma criança, em um espaço que só tem você e ela, é abuso sexual”, pontua.
Já a exploração sexual se caracteriza pela relação sexual de uma criança ou adolescente com adultos, mediada por pagamento ou qualquer outro benefício, onde crianças e adolescentes são tratados como objetos sexuais ou mercadorias. “Qualquer criança ou adolescente pode ser vítima de abuso e exploração sexual, assim como é importante entender que o abusador não tem cara de monstro”, diz Hivana Fonseca, pesquisadora e psicóloga que também atende no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). “Pode ser justamente aquela pessoa socialmente respeitada, articulada, mas que usa da sua posição e poder para abusar ou explorar sexualmente crianças e adolescentes”, reforça.
As consequências desse tipo de violência podem ser de maior ou menor grau, dependendo do acolhimento recebido pela criança que foi vítima. “Depende desde a idade em que ocorreu, a recorrência da situação, o modo da violência em si, a relação com o abusador e também, um dos mais importantes fatores, é o acolhimento”, explica Hivana Fonseca. “Se acreditam no relato dela, se ela é acolhida e recebe apoio, se passa a ser protegida e tem acesso aos cuidados necessários”, diz exemplificando.
Apesar disso, os episódios são sempre prejudiciais ao desenvolvimento e envolvem mudança de comportamento, sintomas de ansiedade e depressão, queda no rendimento escolar, isolamento e outras questões. É necessário estar atento aos sinais que podem demonstrar ocorrência da violência: eles variam desde a rejeição reiterada por determinada pessoa ou ambiente, linguagem erotizada e mau desempenho na escola. “É importante também se atentar ao que é dito, mas também ao que é expresso pela criança ou adolescente, seja através de um comportamento, fala, desenho, brincadeira ou post da internet”, acrescenta Hivana.
Ações de combate e prevenção devem ser articuladas
A exploração sexual está inclusa na lista das piores formas de trabalho infantil, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esse tipo de violência perpassa uma série de ações de prevenção e podem envolver o acesso à informação e orientações sobre o tema, como a educação sexual que ajudará a criança a aprender sobre o próprio corpo. O trabalho preventivo também deve vir associado ao envolvimento articulado das redes de prevenção, combate e punição.
As principais formas de combate a essa prática são o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual e Infantojuvenil, que prevê as diretrizes a serem seguidas; e o Estatuto da Criança e Adolescente, principal lei de proteção de crianças e adolescentes hoje.
A âmbito estadual, em 2017 instituiu-se a Política Estadual de Prevenção e Enfrentamento de Violência, Abuso e Exploração de Crianças e Adolescentes, voltada a promover um conjunto de ações articuladas entre os poderes para prevenir e combater as violações dos direitos da criança e do adolescente.
O sistema de garantia de direitos perpassa todas as esferas estaduais, federais e municipais. Para a promotora de justiça, Joselisse Carvalho, coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Infância e da Juventude, as medidas voltadas à proteção da criança e adolescente dependem da necessidade de cada criança. “A partir da notificação e do primeiro atendimento, que geralmente ocorre no Conselho Tutelar, vamos saber o que será adotado dentro da realidade da vítima”, explica.
Essa adequação de proteção também acontece dentro do atendimento e acolhida dada à criança. “Se for uma criança que vai permanecer na família, que a família está conseguindo se organizar para proteger, ela precisa do atendimento psicoterápico e a família também precisa de orientação, até para saber como lidar, como manejar”, explica a psicóloga Hivana, que também atua no CRAS. “O atendimento vai buscar responder às demandas tanto no sentido de orientação para os procedimentos psicossociais, como psicoterápicos, para ir trabalhando e ressignificando todos os processos e favorecendo realmente a retomada de um desenvolvimento mais saudável”, acrescenta.
A promotora Joselisse reforça que também é preciso entender a criança e o adolescente como sujeito de direitos. “O corpo da criança não é um objeto que, por estar dentro de uma família, aquela família pode fazer tudo o que quer”, comenta. “O mais difícil é achar que isso tem que ser resolvido dentro do âmbito familiar”, observa. “Na grande maioria das vezes, o agressor está nesse espaço”.
As denúncias de crimes podem ser feitos pelos principais canais:
- Disque 100
- Conselhos Tutelares
- Polícia Militar, por meio do 190
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