domingo, 24 de novembro de 2024

Tudo que nós tem é nós*

De norte a sul em Teresina, grupos se unem para mudar a realidade de vizinhos e de suas comunidades

11 de outubro de 2021

Olhar, escutar e entender o outro é uma tarefa cada vez mais difícil diante das urgências do cotidiano. São contas para pagar, metas para alcançar e o “eu” impera sobre as necessidades básicas de dignidade e respeito ao outro. O conceito aristotélico observa que o homem busca a comunidade para alcançar a completude. O filósofo via a felicidade como finalidade das ações humanas.

A pesquisadora Mônica Nogueira – cuja dissertação de mestrado originou o livro “Quando o grande é pequeno” – sobre projetos comunitários que acontecem no Cerrado nordestino – destaca a disparidade entre projetos comunitários e grandes projetos sociais de empresas privadas. Enquanto este último segue uma orientação de divulgação das marcas, o primeiro tem como ponto de partida o espaço local, a valorização de suas origens e percepção das dificuldades não abarcadas pelo poder público.  

Para a pesquisadora, mesmo que os projetos sejam mobilizados por pessoas com pouco investimento financeiro, eles são capazes de envolver dezenas de famílias e provocam mudanças para o bem estar coletivo. “Eles promovem a difusão de um novo ideário que reúne princípios de solidariedade, responsabilidade social sobre desenvolvimento, revalorização da cultura e conhecimentos locais”, destaca Mônica. 

Mesmo com tantas dificuldades, individuais ou coletivas, Teresina possui diversos projetos mobilizados pelas comunidades para superar carências e anseios de tantos grupos múltiplos na capital. Apesar das estatísticas de violência, fome e desemprego, nos quatro cantos da cidade – Norte, Leste, Sudoeste e Sul – grupos dividem suas rotinas de trabalho ou estudos na tentativa de mudar, mesmo que minimamente, a realidade de vizinhos, do bairro e da região a qual pertencem. Conheça algumas histórias a seguir.

 

A luta pelo básico

Na zona Norte, Elisnete e Rutênio Mota, mãe e filho, pediram uma ajudinha da nigeriana Adaeze Aninweze, engenheira ambiental, para desenvolverem, junto a comunidade Dilma Rousseff, suas próprias fossas ecológicas. Cerca e ⅓ das 300 famílias que vivem no local não possuem banheiro em casa. 

Elisnete Mota, que preside a Associação das Mulheres Cidadãs da Grande Santa Maria sempre se incomodou com a falta de saneamento básico da região. “É um absurdo as pessoas ficarem jogando fezes uma nos quintais das outras”, comenta. E da revolta surgiu a única solução a seu alcance. “A necessidade fez a gente acordar e ajudar o irmão que está ali do lado”.

O trio organizou cursos gratuitos para moradores da comunidade, a fim de ensinar técnicas para a construção de fossas ecológicas. Além de aula teórica, o curso envolvia o planejamento para a construção das fossas, além dos cuidados e manutenção. Adaeze, a engenheira que coordena a ação comunitária, já atuou em projetos de fossas ecológicas na cidade de José de Freitas – ela utiliza uma espécie de túnel de pneu como encanação. ”Na terra adubada vamos plantar bananeira, mamão, taioba e outras plantas que necessitem de bastante água e sol, normalmente plantas com folhas grandes”, explica.

Fossas ecológicas: solo adubado vira plantação de banana, mamãe e outros (Arquivo pessoal)

A comunidade Dilma Rousseff possui quase quatro anos de existência e não é a única comunidade no Piauí a sofrer com a ausência de saneamento básico. A própria engenheira ambiental que desenvolve pesquisa em tratamento de água residuais pontua que o Piauí peca no serviço. “Há um descaso com a população pobre, periférica e da zona rural, em relação ao saneamento básico”, observa. “Esses locais têm a maior concentração da população do estado que é negligenciada pelo poder público em vários aspectos”, critica a especialista. 

Além de possibilitar a solução para cerca de 20 famílias, que ao final do curso poderão ensinar a mais pessoas, as fossas também vão incorporar tecnologias sustentáveis. Os organizadores pensam em construir uma escola para formação, capacitação e profissionalização de pessoas em técnicas sustentáveis. Mas, agora precisam do apoio de outros membros da comunidade para a compra e doação de areia vegetal e pneus usados.

Calçado eficiente

Em muitas viagens que realizou como policial militar no Piauí, chamou a atenção de Josias da Paixão, 56 anos, chamou a atenção a quantidade de pessoas com uma deficiência física bem particular: a falta de um dos membros inferiores. O aumento do uso de motocicletas no trânsito, somado a consequências de doenças sérias, reflete em uma geração de pessoas amputadas.

Josias refletiu sobre como estas pessoas adquiriam calçados – uma vez que as sapatarias costumam vender apenas pares de sandálias e tênis. Dessa inquietação surgiu, no ano de 2003, o projeto “Calçados Eficientes”, no conjunto Francisco Marreiros, zona Sudeste da capital. 

Calçado eficiente existe há 18 anos e já beneficiou mais de 10 mil pessoas (Arquivo pessoal)

A casa de Josias funciona como um grande depósito de sapatos arrecadados para doação – atualmente acumula mais de mil calçados esperando por novos donos. Pessoas da comunidade procuram por todos os estilos e pontuações.

O projeto começou tímido, com poucas doações, no geral, estimuladas pelos amigos de Josias. Atualmente, recebe doações de lojas de calçados e marcas interessadas em contribuir por todo o Piauí. 

Ao longo de 18 anos do projeto, o policial conseguiu beneficiar mais de 10 mil pessoas, entre Teresina e outros municípios piauienses. Em uma pesquisa realizada por ele na internet, descobriu apenas uma iniciativa como essa, no estado de São Paulo, que fornece os sapatos em delivery – uma ideia que ele pretende implementar por aqui também. 

Apesar das duas décadas de existência, para Josias o projeto ainda tem muita vida pela frente. Ele pretende atingir cada vez mais pessoas na comunidade onde mora e levar mais sapatos para quem precisa. “Eu gostaria que não tivesse ninguém precisando mas, infelizmente, existe e eu quero muito fazer a diferença”, revela o policial. “Me sinto realizado em ter um projeto que eu possa dizer: liga para mim, posso te ajudar”.

Lendo o mundo através do meu bairro

Todo sábado, no bairro Cidade Jardim, região da grande Pedra Mole, na zona Leste de Teresina, crianças e adolescentes se reúnem das 8h às 10h para participar das ações do Brincando com os Livros. A ONG, que incentiva a leitura infantil, foi idealizada por quatro amigas que sentiram a necessidade de fazer uma atividade envolvendo as crianças da comunidade onde moram.

Nara Sampaio, uma das co-fundadoras, conta que a ideia começou com um bazar de roupas no bairro – o dinheiro arrecadado era revertido para comprar e distribuir cestas básicas nas casas da região. No entanto, durante a realização do bazar, as amigas percebiam a grande quantidade de crianças ociosas. “Cada vez que a gente entrava em contato com as crianças, percebíamos que muitas tinham problemas em casa, vinham de famílias desestruturadas”, destaca a co-fundadora. “Então pensamos: por que não fazer um pouco mais?”.

Biblioteca comunitária e contação de história para crianças faz parte de ação da ONG (Arquivo pessoal)

O projeto existe há sete anos e atende cerca de 30 trinta crianças e adolescentes, com idades entre 5 e 16 anos. Todos os encontros acontecem em uma casa alugada para o projeto no bairro Cidade Jardim, onde acontecem reuniões e eventos diferentes, como apresentações musicais e palestras que possam envolver tanto as famílias como as crianças. 

Em cada encontro, Nara explica que dois grupos são formados de acordo com as idades, tendo em vista que as temáticas são diferentes para poder envolver todos os participantes. Para os adolescentes, os temas trabalhados são voltados para questões existenciais da juventude, período em que vivem, enquanto para crianças é trabalhado valores e regras de convívio. “Temos um violão que faz parte do projeto e fica aqui para envolver música na contação de histórias”, ressalta. “É uma forma, além da leitura, de trazer dinamicidade e acolhimento para as crianças”.

Pão para todos

A pandemia ocasionada pelo coronavírus acentuou o número de pessoas em situação de vulnerabilidade – para muitos, o pão vem faltando à mesa. Para tentar amenizar a situação, quatro mulheres vizinhas no Parque das Esplanadas, zona Sul da capital, resolveram criar o projeto “Pão Solidário”. Desde abril deste ano, aos sábados pela manhã, Iara Carvalho, Rosa de Abreu, Ana Rodrigues e Conceição distribuem pães a famílias carentes da região.

Para elas, agir em prol do outro é uma iniciativa que deveria partir de todos. “Só assim será possível transformar positivamente a comunidade”, pontua Iara que é também vice-presidente da Associação de Moradores da região. 

Pão solidário: anseio de ajudar comunidade uniu as voluntárias. (Arquivo pessoal)

A ideia foi inspirada na ação desenvolvida por outra comunidade, a Vila Irmã Dulce. Hoje, o Pão Solidário atende 40 famílias, em sua maioria formada por mulheres mãe solo e que não possuem renda fixa. Sem fins lucrativos, os fundadores realizam um bazar solidário para arrecadar dinheiro e custear a produção dos pães. 

O anseio de ajudar sua própria comunidade uniu as voluntárias. “Nosso anseio é vê-las bem e felizes e, acima de tudo, garantir a oportunidade de ter o seu pão na mesa”, diz Iara. “A nossa comunidade pode ajudar, cada um pode ajudar e fazer a diferença”, finaliza.  

Para contribuir:

 

*Trecho da música Principia, do Emicida. Clique para ouvir.

domingo, 24 de novembro de 2024
Categorias: Especial

Camila Santos

Graduanda em jornalismo na Universidade Federal do Piauí.

0 comentário

Deixe um comentário

Avatar placeholder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *