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Teste de paciência

Atendimento lento, longas filas de espera e sistema fora do ar resumem um Detran longe da ideia de governo digital

01 de novembro de 2021

Tirar a primeira habilitação, pagar uma multa ou transferir um veículo são algumas das diversas atribuições que se espera realizar ao chegar no Departamento de Trânsito – o Detran. Entretanto, a expectativa nem sempre condiz com a realidade. Princípio de incêndio, estruturas sucateadas nas sedes dos municípios, longas filas de espera, sistemas fora do ar e muita burocracia: é assim o resumo do funcionamento do órgão no Piauí.

Na teoria, o Detran é responsável por administrar, fiscalizar, formar e garantir a segurança dos condutores de automóveis e pedestres. Por consequência, cabe ao órgão público também assegurar que os agentes envolvidos no trânsito cumpram as regras estabelecidas por leis – com a possibilidade de punição no caso de infrações -, promover ações educativas e realizar o licenciamento de veículos, registros, instalação e selagem de placas, além de outros serviços e procedimentos.

 

 

No entanto, as funções funcionam de maneira precária. As queixas da população foram comprovadas por um diagnóstico do Tribunal de Contas do Estado (TCE/PI). Em maio deste ano, um levantamento da gestão e dos recursos organizacionais do Detran verificou uma série de problemas e falhas no serviço prestado à população – no geral, a maior parte das reclamações estão relacionadas à queda dos sistemas informatizados. Após as fiscalizações, a análise verificou que as sucessivas “quedas no sistema” eram apenas a ponta visível do iceberg.

Problemas crônicos

A arrecadação de valores do Detran-PI se dá por meio de multas de trânsito, taxas pela prestação de serviços, alienação de bens móveis e outras receitas. Na análise do relatório, que verifica os anos de 2019 a 2021, o valor arrecadado supera em 42% a quantidade destinada às despesas.

Sobre o assunto, Garcias Guedes, diretor geral do Departamento, relata que o saldo é repassado para a Secretaria de Fazenda. “Cada órgão do estado executa o que é estabelecido no orçamento pelo LOA e a gente se adequa a essa legislação”, disse. “Nós arrecadamos e usamos o que está previsto no orçamento”.

Uma dessas despesas está relacionada às ações desenvolvidas para a educação no trânsito. De acordo com o Plano Plurianual 2020-2023 do Piauí, no que se refere aos índices de mortalidade juvenil, mais da metade das mortes de jovens de 15 a 29 anos (52%) no estado está associada, além da violência e homicídios, a acidentes de trânsito. 

A taxa de óbitos de jovens por acidente de trânsito no Piauí é 72% superior à média brasileira. Apesar do alto índice, o relatório do TCE apontou que a instituição não faz acompanhamento nem avaliação das ações educativas realizadas pela Escola Piauiense de Trânsito. 

A queda dos sistemas administrativos do Detran-PI, de acordo com o relatório, se deve pela limitação do sistema e pela falta de integração – além de problemas na parte elétrica. O levantamento também constatou que a equipe de tecnologia da informação hoje no órgão é insuficiente – são apenas 14 profissionais para operar 31 sistemas. 

 

Fonte: Relatório de levantamento Detran-PI 2021, realizado pelo TCE.

 

Sobre a precariedade do sistema, Garcias Guedes afirma que está em andamento a execução de um novo modelo para diminuir os problemas referentes a tecnologia. “Não temos um prazo definido, mas nosso objetivo é que até o final do ano ele esteja em execução”, informou, acrescentando que o órgão já capacitou atendentes no municípios para operar o novo sistema. 

A maior parte da equipe que trabalha hoje no Detran-PI é de profissionais terceirizados – eles respondem por mais da metade dos profissionais em atividade (64%). Isto porque o único concurso público promovido pela entidade ocorreu há mais de quatro décadas, em 1973. Desde então, os quadros funcionais não passaram por qualquer renovação.  

Os fatores apresentados pelo relatório são a causa das reclamações e falhas de operação do órgão que geram prejuízo na prestação do serviço ao público. Longe de tecnologias capazes de aprimorar e dar celeridade aos processos, o atendimento no Detran-PI acentuam a burocracia e acabam indo na contramão do que o Departamento de Trânsito oferece em outros estados brasileiros.

Novas tecnologias geram economia

Enquanto no Piauí os motoristas precisam se deslocar para atendimentos presenciais no Detran, enfrentando lentidão no atendimento e longas filas, outras unidades do órgão pelo Brasil dão o exemplo de como muitos serviços podem ser agilizados com recursos tecnológicos na palma da mão.

O Rio Grande do Sul saiu na frente na tentativa de oferecer facilidade para os usuários. Por lá, o Whatsapp tem sido utilizado para consultar débitos de trânsito e realizar pagamentos de multas e impostos – a transação pode ser feita online, em cartão de crédito ou utilizando o pix. A novidade é resultado da parceria entre o Detran-RS e uma startup especializada no parcelamento de débitos de trânsito e na desburocratização dos processos de pagamentos.

A pandemia e o período de restrição das atividades para conter o contágio pelo coronavírus foi, de certa forma, o empurrão que faltava para que muitos serviços públicos se tornassem digitais. Com as repartições fechadas por medidas sanitárias, a saída foi oferecer o acesso ao público pela internet, sem necessidade de deslocamento. 

Serviços como emissão de documentos de veículos e CNH foram repensados para que diminuísse drasticamente a concentração de pessoas no Detran-Piauí. No entanto, uma cultura estabelecida por anos e a baixa qualidade do site atual – mesmo passando por reformulações – aliados a uma comunicação deficiente com a população, ainda têm levado muitos a se dirigirem, desnecessariamente, para a sede ou postos de atendimento da capital e municípios.

 

Fonte: Relatório de levantamento Detran-PI 2021, realizado pelo TCE.

 

Em Goiás, a tecnologia também tem auxiliado, gerado economia e poupado o tempo de milhares de motoristas. No ano passado, a gestão do Detran-GO anunciou a automatização total do Detran, com a digitalização de processos, serviços e documentos através do uso de um aplicativo. O órgão também fez a adesão à Carteira Nacional de Habilitação (CNH Social), permitindo que seis mil pessoas tivessem acesso ao documento.

O presidente do órgão, Marcos Roberto, informou à imprensa que as mudanças geraram uma economia de R$187 milhões ao estado. “Foram computadas a redução no preço de serviços, a revisão de contratos, a extinção de procedimentos desnecessários que oneram o cidadão. A propósito, ao implantar o CRLV-e (digital), o Detran-GO deixou de imprimir e enviar via Correios 2,3 milhões de documentos por ano. A mudança gerou uma economia de R$5,9 milhões entre custos de impressão e envio”, citou. 

As ações estão em sintonia com a Estratégia de Governo Digital 2020-2022 publicada em abril pelo Governo Federal. O objetivo é organizar iniciativas e pensar políticas públicas que norteiam as transformações do governo por meio das tecnologias digitais. Para se ter uma ideia, dos 3,6 mil serviços disponíveis hoje no site gov.br, 58% já são digitais. 

Estima-se que no primeiro ano de pandemia, 800 serviços se tornaram acessíveis pela internet – algo que pode representar a economia anual de aproximadamente 2 bilhões. Mas, paralelo a isso, é preciso o investimento em gestores empenhados em tornar possível o uso desses meios, além de treinamento de equipe e, talvez, o mais importante: romper com a cultura do balcão de repartição.

No Piauí, lucram os despachantes

Onde as funções do estado falham, a sociedade acaba arrumando formas particulares de se organizar. O atendimento demorado e as longas filas fazem muitos usuários recorrerem a terceiros para resolver questões sobre documentação de veículos e outras que demandam o privilégio do longo tempo de espera. São os “despachantes de trânsito”, pessoas nomeadas para esse serviço, oferecido inclusive por empresas especializadas. 

A lentidão nos atendimentos do Detran-PI que, quase sempre, está com o sistema fora do ar, faz com que as pessoas procurem outras alternativas. Apesar de eficientes, os despachantes oneram os custos de se renovar uma CNH, licenciamento ou realizar algum outro procedimento, uma vez que além de pagar as taxas cobradas pelo órgão, o usuário também precisa desembolsar para remunerar o despachante.

A opção foi a única saída para o empresário Antônio Sousa, de 65 anos. Ele, que viaja com frequência a trabalho, possui dois veículos com placas registradas em Teresina e relatou que, no pouco tempo em que faz parada na cidade – geralmente, dias que eram pra ser de folga e descanso – ele precisa de celeridade para resolver pendências burocráticas. “Minha vida é bastante corrida e o tempo é ouro para mim”, argumentou. “Algo que eu teria que pagar cerca de 300 reais para resolver, acabou saindo pelo dobro do valor, pois precisei pagar um despachante para resolver a transferência de um carro que eu comprei”, contou. “Fazer o que? Não posso esperar a boa vontade do Detran. Se eu for viajar com os documentos irregulares, pode sair mais caro”.

Outro motorista que enfrentou momentos de estresse ao precisar renovar sua carteira de habilitação foi o jovem Daniel Brito, de 35 anos. Ele procurou a unidade do Detran na cidade onde mora, mas precisou viajar até Teresina para resolver. “Por lá só me enrolaram. Eu ia todos os dias e sempre ficava para o dia seguinte”, relembra. “Sistema fora do ar e outras desculpas, até que resolvi viajar 120 quilômetros até Teresina, perdendo um dia inteiro de trabalho, para ser atendido”, reclama. “Ao menos, no fim, deu certo”.

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Categorias: Especial

Geysa Silva

Jornalista, consultora de marketing político e especial Experiência Piauí.

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