sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Quer dizer que somos um povo racista?

Pesquisa revela que 90% dos brasileiros considera país racista, mas debates ainda não são suficientes para conter os crimes

20 de novembro de 2021

Edição Luana Sena

Nathiele Oliveira estava tendo mais um dia normal na sua rotina: trabalho, demandas, ocupações, academia. Pela noite foi realizar seu treino rotineiro, quando, entre um exercício e outro, ouve uma conversa em sussurros de duas mulheres no canto: “Ela é bonita, mas ela é negra”. Imediatamente, a frustração tomou conta dela. Mais um dia em que o racismo atravessou sua vida. 

O episódio não foi um caso isolado. Em lojas, Nathiele é comumente observada pelos vendedores – a vigilância dos atendentes e seguranças miram a manicure. As situações já chegaram ao extremo dela ser impedida de experimentar um brinco em uma joalheria: quando olhou ao redor, mulheres brancas circulavam tranquilamente pela loja. “Ficaram perto de mim achando que eu iria roubar”, declara Nathiele. 

Ela nunca realizou denúncia ou se deslocou a uma delegacia para relatar os episódios. “Procuro não ficar com isso na cabeça”, conta, explicando que prefere não recorrer a um processo judicial com medo do desgaste. 

Desmotivações causadas pela lentidão da justiça e receio em procurar a polícia são alguns dos principais fatores que impedem que negros façam denúncias contra racismo e injúria racial, aponta a pesquisadora e advogada Lara Matos. Além disso, Lara pontua que, no Piauí, há pouca comunicação sobre a existência das leis que tipificam crimes contra a raça e pouca estrutura nas delegacias para registrar os crimes. “Isso reforça como ainda estamos dentro de uma estrutura racista”, destaca. “Quando a vítima vai fazer o B.O, há situações em que o racismo ou a injúria é registrado como difamação ou injúria simples”, reforça.

Esse panorama é o que promove a “cifra oculta” – conceito da criminologia utilizado para expressar quando determinado crime não é comunicado ao Poder Público. Para a advogada, os números que são registrados não se aproximam da realidade de crimes reais que acontecem no estado. De acordo com dados da Secretaria de Segurança do Piauí, entre 2020 e 2021 os casos apresentaram decréscimo. “A subnotificação é gritante”, ressalta Lara. 

Entre os episódios mais recentes que aconteceram no Piauí está a do racismo vivido por Laiane Nunes, enfermeira do Hospital de Urgência de Teresina. Durante um procedimento cirúrgico no hospital, a médica anestesia chamou-a de “escurinha”, alegando não saber o nome da profissional. Segundo Laiane, não era a primeira vez que situações como essa aconteciam com ela dentro do trabalho, mas não havia denunciado por insegurança. 

Na fila de vacinação contra a Covid-19, na Universidade Federal do Piauí (UFPI), um enfermeiro de 27 anos que trabalhava na aplicação foi vítima de racismo pela mãe de uma paciente. Durante um desentendimento a respeito do agendamento do imunizante, a mulher o questionou. “Ela perguntou se eu era o superior e eu disse que sim. Depois, ela perguntou com tom de deboche ‘Você?’. Eu perguntei se era pelo fato de eu ser negro e ela respondeu ‘Sim. E você é médico?”, relatou o profissional ao G1 Piauí. 

Em apoio ao colega de trabalho, outros enfermeiros realizaram protesto contra a discriminação sofrida. Em vídeo e cartazes publicados nas redes sociais, profissionais declaram que não apoiarão nenhum ato racista contra a categoria.

Profissionais da saúde em ato contra práticas racistas. (Foto: reprodução da internet)

Denunciar o racismo ou a injúria é um processo relativamente novo no sistema judiciário brasileiro, porém reflete a dignidade das pessoas racializadas. Por isso, a advogada reforça a necessidade da implementação da comunicação da lei desde a escola, aliada ao ensino de história africana para possibilitar identificação com cultura e negritude. “Assim será possível que mais pessoas procurem seus direitos quando forem desrespeitadas por conta da sua cor”. 

Todas as delegacias do Piauí podem registrar o boletim de ocorrência contra racismo. Caso não haja unidade especializada em crimes dessa natureza, é possível realizar a denúncia na circunscrição do Distrito. Se o crime ocorrer no âmbito digital, é necessário procurar a Delegacia de Crimes Virtuais. O Ministério Público é acionado quando o crime é comunicado pela mídia ou feito denúncia através das comissões específicas das questões de raça. 

Alvo certo

Há um ano, na véspera do Dia da Consciência Negro, João Alberto Silveira Freitas foi espancado por seguranças de um Carrefour, em Porto Alegre. No dia do crime, pelo menos 15 pessoas presenciaram a cena e não intervieram para cessar a violência. Entretanto, em pesquisa realizada pelo Atlas Político, 52% das pessoas ouvidas afirmaram que o assassinato foi motivado por racismo. No mesmo levantamento, 90% concordaram que o Brasil é um país racista – 5,7% afirmaram que não existe racismo e 3,6% não souberam responder. 

Na mesma semana, diversas cidades brasileiras realizaram protestos antirracistas para reivindicar a morte de João Alberto. O crime e seu desfecho é similar ao caso George Floyd, nos Estados Unidos, ocorrido em maio de 2020. Morto espancado por policiais, a cena foi gravada e circulou em todo o mundo – dando tom às manifestações nos EUA e Brasil sob a expressão “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam).

Casos que chocaram o mundo (Foto: reprodução na internet)

A onda de protestos, mesmo em meio à pandemia, serviu para despertar parte da sociedade acerca da violência vivida pelas pessoas pretas. Nas ruas e na internet – através das #blackouttuesday – o engajamento antirracista mobilizou parte da consciência racial à época. 

Relatório divulgado pela Rede de Observatórios da Segurança, em grupos de estudo sobre violência nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Pernambuco no mês de julho do ano passado, 75% das pessoas mortas pelas forças policiais eram negras. 

 

 

 

Depois que a manifestação acaba 

Segundo a pesquisadora em questões raciais Hallana Moreira, a divulgação dos assassinatos motivou um grande debate – dentro da sociedade e na mídia -, porém não resolve um dos principais problemas sociais do país. Isso porque, embora existam no Brasil grandes índices de crimes motivados por racismo, em decorrência dos racismos estruturais e institucionais, conversar sobre o fato de forma incisiva ainda é novidade. 

A pesquisadora cita a pesquisa realizada pelo Instituto Senado Federal (DataSenado), em que 56% da população brasileira concorda que “a morte violenta de um jovem negro choca menos a sociedade do que a morte de um jovem branco”. O dado ainda revela o grau de indiferença de boa parte dos brasileiros a respeito da questão. 

Ela ressalta que o silêncio – nas escolas, comunidade, internet, espaços públicos e privados – é o que torna o indivíduo politicamente responsável pela reprodução do racismo. “É urgente a conscientização sobre o tema como parte da estrutura brasileira”, afirma Hallana. “Quanto menos a gente promover esse debate, menos mudança vai haver na sociedade”, frisa. 

Ela sustentou em seu estudo que, no Brasil, há o mito da democracia racial. Isto é, uma negação generalizada do racismo brasileiro, o que ainda leva muitos a levarem um susto quando se deparam com o assunto. “Para o brasileiro, racista é quem separa e não o que nega a humanidade de outrem. É uma contradição”, cita Hallana. “Quer dizer que não somos um país racista?”, questiona a pesquisadora.

O racismo se manifesta em todas as estruturas da sociedade. O desemprego, vulnerabilidade e até questões como a da pandemia da Covid-19 são vividas de forma preocupante entre a população negra. O acesso desigual à saúde, por exemplo, revela que 55% dos negros morreram por Covid-19 – enquanto a proporção entre brancos foi de apenas 38%, segundo o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde.

De acordo com as pesquisadoras Emanuelle Freitas, Dandara de Oliveira e Andrea Jacqueline, os dados revelam como a pandemia se apresenta de forma racializada. “Historicamente, a maior parte do povo negro reside em locais precários, com moradias precárias e pouco acesso aos serviços básicos de saneamento”, pontuam. “É certo que a luta contra o racismo se estende para todas as demandas da sociedade, e com a atual questão da pandemia do novo coronavírus não seria diferente”, pontua.

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Categorias: Especial

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