segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Da capela ao terreiro

No Dia Nacional de Combate à Intolerância, ouvimos três líderes religiosos: “As pessoas não têm que me tolerar, elas têm que me respeitar”

21 de janeiro de 2022

No Brasil, 21 de janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi instituída pela Lei Federal nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007 – é celebrada em alusão a morte da Ialorixá baiana Gildásia dos Santos e Santos – conhecida como Mãe Gilda, fundadora do terreiro de candomblé Ilê Asé Abassá. Ela e o marido foram perseguidos, vítimas de agressões físicas e verbais e seu espaço religioso foi depredado. Mãe Gilda morreu após o ocorrido, de um infarto fulminante.

Segundo dados do Disque 100 (Disque Direitos Humanos), até junho de 2019 foram registradas 354 denúncias de discriminação religiosa no Brasil. Os estados com mais ocorrências foram São Paulo (48), seguido por Rio de Janeiro (35) e Minas Gerais (14). 

O Piauí não está entre os líderes de denúncias e a capital. Apesar de ter sido considerada a mais católica do Brasil – o censo do IBGE divulgado em 2012 apontou o Piauí como o estado mais católico do Brasil, com 85,1% de fieis – apresenta quantidade expressiva de comunidades de religiões de matriz africana – são 480 casas instaladas aqui, com forte predominância da prática de umbanda. 

Contradição, no entanto, não quer dizer antagonismo. Apesar das diferenças, as doutrinas carregam consigo algo em comum: a ideia de comunidades pautadas na fraternidade, no cuidado e no amor ao próximo. Para marcar o combate a intolerância, oestadodopiaui.com convidou líderes de três religiões distintas para conversar. Mãe Eufrazina é ialorixá na Tenda Espírita de Umbanda Santa Bárbara, no bairro Santo Antônio, há quatro décadas. O Padre Rômulo Bezerra, missionário há 21 anos e integrante da Comunidade Católica Shalom. E Isaías Batista, pastor evangélico há duas décadas. 

 

As respostas nos ajudam a entender o que pensam sobre o compromisso do estado em proteger a liberdade religiosa. É nossa forma de contribuir para o debate pautado no respeito e na pluralidade de ideias. 

O que levou você a assumir esse lugar de líder religioso(a)?

Mãe Eufrazina: A minha história começa aos sete anos de idade. Foi um chamado pra missão que eu trazia. Na umbanda a gente se forma com sete anos. Como minha mãe de santo, que era do Ceará, teve que ir morar no Pará, fiquei dois anos indo pra lá pra terminar os fundamentos e aos 16 anos foi que recebi o cargo de mãe de santo. Passei um tempo ainda em Crateús, minha cidade natal, depois a gente conseguiu esse terreno em Teresina e começamos a construção da Tenda Espírita de Umbanda Santa Bárbara. 

Pastor Isaías Junior: Eu sou pastor evangélico da Igreja Batista há 22 anos. Nós cremos que todos somos chamados por Deus para uma nobre missão. Os pastores, no caso, tem a missão do sacerdócio. Eu creio que Deus me chamou, me convocou, como convocou o profeta Isaías. No velho testamento, O capítulo XI, do profeta Isaías, relata um chamado. Ser pastor é isso: um chamado de Deus. 

Padre Rômulo Bezerra: Para mim é uma questão de vocação, é um chamado de Deus na verdade, não foi algo que primeiramente eu escolhi mas que eu escutei no meu coração como a voz de Deus. Deus me chamou para ser sacerdote e padre e eu respondi esse chamado de Deus fazendo um caminho de discernimento e de estudo alguns anos me preparando para o ministério sacerdotal. Não é fácil, assim como qualquer missão na vida, mas não me vejo realizando outra coisa a não ser servir a Deus e levando-o até as pessoas.

 

Para você, o que é fé? E o que é religião?

Mãe Eufrazina: Fé é tudo que nos segura, nos sustenta dentro da nossa religiosidade. Porque está dentro de uma religião como a umbanda e não ter fé, você não precisa nem estar. É tudo que você toca, tudo que você ver, tudo que te liga ao espiritual. A fé é tudo. A umbanda é uma religião mãe, acolhedora, te ensina o quão importante é respeitar o outro. É a única que eu tenho certeza que abraça as pessoas como elas são.

Pastor Isaías Junior: Conforme Hebreus, capítulo 11, versículo 1, no Novo Testamento: a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos. Então, a fé é a certeza daquilo que nós estamos almejando, pedindo ao senhor Jesus Cristo. Fé também é sobre esperança. Religião é um dogma, um conjunto de dogmas. Um conjunto de regras que norteiam um grupo. Nós evangélicos, não pregamos e não divulgamos religião, nós pregamos a Cristo. Cristo Jesus.

Padre Rômulo Bezerra: A fé é uma resposta que damos, uma resposta positiva ao Deus que se revela a cada um de nós. Deus revela no seu filho Jesus o seu amor de pai. A Sagrada Escritura, na carta aos Hebreus, diz que “a fé é a garantia dos bens que se esperam, a prova das realidades que não se veem”. A fé é um dom de Deus, uma virtude sobrenatural. A religião é esse caminho que nós fazemos, esse caminho por onde a fé nos foi transmitida, e que nós caminhamos como igreja para viver a vontade de Deus e nos fortalecer na caminhada da fé.

Quem é o seu deus/entidades e o que eles/elas representam?

Mãe Eufrazina: No meu caso, o primeiro que se apresenta é um pai de coroa que é o príncipe Olímpio. Ele vem uma vez por ano, as três da madrugada. É uma entidade sutil, uma energia limpa, maravilhosa. E tem as outras entidades que fazem parte do cotidiano e tomam a frente do terreiro, como Ogum de Umbanda, um soldado que ronda e circula os trabalhos da casa, as pessoas que aqui vem, faz a defesa da mãe de santo, dos filhos. E o guia de consulta da nossa casa, que é o Simão da Bahia, uma entidade baiana, muito amigo, carismático, gosta de conversar. Tem também a Cigana Laura que faz atendimento e consulta na casa. Elas representam fé, amor, caridade, paz, esperança. Muitas pessoas que aqui vem estão desesperançosas em relação a saúde ou os caminhos que estão fechados. Alguns falam que às vezes são mais bem atendidos por uma entidade do que por um médico que às vezes nem toca, nem conversa com você. E eles têm o cuidado de ouvir e acolher.

Pastor Isaías Junior: O nosso Deus é o criador dos céus e da terra. É o Deus criador, Deus onipotente, onisciente, onipresente. Espírito pessoal perfeitamente bom que em seu santo amor cria, dirige e sustenta todas as coisas. 

Padre Rômulo Bezerra: É o Deus que Jesus nos revelou. O Deus único, que se revela, Pai, Filho e Espírito Santo. Deus te revela um Deus de amor, alguém que nos criou por amor e para o amor, também nos salvou através do seu filho Jesus. E nos dá uma vida com o Espírito Santo derramado em nossos corações. Para mim, esse Deus também se revela com o rosto de misericórdia. O Papa Francisco fala muito que o nome de Deus é misericórdia – e pra mim é uma das definições belas de Deus.

Você sente que a sua religião é desrespeitada? Já foi vítima de algum episódio de intolerância? Acha que a sua religião já oprimiu ou desrespeitou outras práticas religiosas?

Mãe Eufrazina: Na verdade, eu costumo dizer que discordo dessa palavra intolerância. O que eu sofro é desrespeito. As pessoas não tem que me tolerar, elas tem que me respeitar como eu respeito toda religião. Eu creio que quem respeita quer respeito. Se a gente respeita o católico, o evangélico, o budista, todas as outras religiões, a gente também tem que ser respeitado. Minha filha fez o santo – ela é do Candomblé – e quando ela estava lá fazendo a parte da obrigação dela, chegou uma senhora e disse que ela era branca, bonita, não devia estar numa religião de preto e gente do mal. Disse que Jesus amava ela. Isso pra mim é desrespeitoso. Ninguém vai lá, segura ela e diz “Oxalá te ama”. 

Pastor Isaías Junior: Raramente e também nunca fui vítima de algum episódio de intolerância. 

Padre Rômulo Bezerra: Eu, pessoalmente, não fui vítima de episódio de intolerância. Já tiveram pessoas que não aceitaram o testemunho que eu dava, pregação, uma palavra sobre Deus. Sobre opressão eu posso dizer que eu, como padre e líder religioso, não contemplo nem propago isso na igreja. A igreja, claro, talvez tenha alguns membros que, por certa ignorância, podem ser desrespeitosos, mas é como eu disse: a definição maior de Deus é amor. Ele não julga. Ele acolhe, e eu escolhi ser a sua imagem e semelhança.  É importante respeitar o homem que vai buscando a Deus independente de como for, e alguns vão buscando através de outras expressões religiosas. É importante sempre o diálogo e o respeito.

Você acha que o nosso país cumpre o compromisso de separar Estado e religião e de proteger a liberdade religiosa? 

Mãe Eufrazina: Eu acho que depois de tantas reivindicações a gente avançou em muitas questões – mas ainda falta muito a ser resolvido. Quando eu via a “Marcha pra Jesus” e a “Caminhada da fraternidade” eu me perguntava por que não tinha a “Caminhada do Axé”. Fizemos uma mobilização, como sou a atual coordenadora estadual da RENAFRO, juntamos muitos dos nossos e conseguimos fazer a 1ª caminhada “Cultura negra na ponte”. Hoje já estamos na 9º edição e é uma caminhada muito grandiosa porque Teresina tem muitos terreiros. Também tvai acontecer o lançamento do aplicativo Creio, para o povo de terreiro, que vai dizer para o governo onde estamos, quem somos e o que estamos precisando, mapeando as comunidades de terreiro do estado. É uma conquista, pra gente. 

Pastor Isaías Junior: Creio que sim e que há uma separação entre estado e religião, claramente. Porém, há dificuldades para proteger essa liberdade. Muitas vezes essa liberdade de crer em algo passa por silenciamentos – o que não deveria acontecer, já que vivemos em um estado laico e nossa liberdade é garantida pela nossa Constituição. 

Padre Rômulo Bezerra: De um certo modo, sim, pelo amparo legal. É uma separação necessária, mas acredito que deve existir sempre o respeito independente do que você acredita ou não. Tem movimentos ideológicos que tentam tirar valores que são próprios da sociedade, que veio de um contexto católico. Mas tem movimentos religiosos que também querem interferir no Estado.

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Categorias: Especial

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