sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O labirinto das prisões

Piauí tem população carcerária com mais de 4 mil pessoas - em cinco anos, número de presos deve chegar ao dobro

06 de junho de 2022

Edição Luana Sena

José* não se sentia bem com o calor dentro da cela compartilhada com os outros companheiros na Cadeia Pública de Altos (CPA), distante 40 quilômetros de Teresina, com pouquíssima ventilação. Dormir era um desafio: o chão e os colchonetes tinham quase a mesma textura e, a depender da cela, era preciso revezar o luxo com os outros presos. Quem estava por lá há mais tempo tinha resistência em ser solidário com os outros companheiros. Não era incomum que, para alguns, só restasse o chão. 

Cadeia Pública de Altos (CPA) (Foto: Sejus)

Na última vez que encontrou a esposa, Maria*, ele contou que sonhou com um banquete. O prato: macarrão e a galinha caipira – refeição que a mulher comumente preparava para o casal e os dois filhos antes dele ser preso por furto em 2015. “Parecia que estava adivinhando que a morte ia buscar ele”, disse à reportagem. Ela costumava levar o prato durante as visitas, mas desde a pandemia da Covid-19, a entrega de comidas, chamada de “sacolão”, havia sido interrompida. José parecia atordoado, irritado e reclamava de dores no estômago no último encontro. Atribuiu o mal estar à comida da penitenciária que, a depender da aparência, preferia ficar em jejum. 

Dali a mais ou menos 15 dias, a companheira soube que José havia morrido diagnosticado com beribéri – uma doença causada pela falta de vitamina B1 e relacionada a uma alimentação inadequada e pobre em nutrientes. Em 2020, pelo menos seis pessoas presas no mesmo presídio de Altos morreram devido a um surto da enfermidade. A conclusão consta em um relatório técnico do Ministério da Saúde, divulgado pelo site El País. A pasta fora acionada pelo Ministério Público do Piauí (MP-PI) para verificar as condições da prisão, gerida pela Secretaria da Justiça (Sejus). Ao todo, dos cerca de 650 presos na penitenciária, 199 foram atendidos no serviço de saúde com sintomas e 56 chegaram a ser internados.

Detentos recebendo alta do hospital (Foto: Ascom HGV)

Durante a investigação, o relatório apresentou que a alimentação dos presos apresentava monotomia alimentar – quando se prioriza apenas um tipo de alimento no prato. No caso, o arroz branco tomava um espaço considerável no prato de cada preso, acompanhado de frango ou galinha. No café da manhã, apenas cuscuz e bolacha. O intervalo entre uma refeição e outra somavam 15 horas. O jejum chamou atenção dos técnicos do relatório. O cardápio foi classificado pobre em vitaminas – especialmente a B1, cuja ausência pode causar a beribéri.

A falta de acesso à frutas e outros alimentos durante o “sacolão” pode ter acelerado o quadro de falta de vitaminas entre os presos, tendo em vista que era um importante complemento alimentar na dieta da maioria deles, como apontou o relatório.  

A CPA de Altos foi inaugurada em 2019, no final do mies de setembro, para desafogar o sistema prisional do Piauí. José tinha sido transferido para a nova instalação considerada, à época, uma das mais bem estruturadas do estado. Sua primeira crise veio alguns meses depois, com adaptações para a Covid-19 e o surto de beribéri. Quase uma centena de preços apresentavam dores, fraquezas, dor de cabeça e febre.

Uma suspeita de leptospirose, antes dos diagnósticos de beribéri, havia sido instalada. No mesmo período, alagamentos e retorno de esgoto pelos ralos e pias indicavam que poderia haver infecção. A penitenciária passou por dedetização, mas a suspeita foi descartada quando equipes do Ministério da Saúde visitaram o local entre junho e julho de 2020 e identificaram o cardápio servido. 

O Ministério Público do Piauí abriu um inquérito e pediu a exoneração de Carlos Edilson, à época, secretário da Sejus. A crise foi tamanha que Wellington Dias decretou situação de emergência na Cadeia Pública de Altos 

Companheiras e mães de presos realizaram protestos diante do prédio do Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI) pedindo respostas sobre as mortes e a situação dos presos infectados. Em nota, a Frente Estadual pelo Desencarceramento do Piauí declarou que situação na CPA era uma tragédia que poderia ter sido evitada. “Nossa reivindicação é que as famílias sejam devidamente indenizadas, que esse massacre ganhe espaço no debate público e as várias autoridades e instituições envolvidas sejam responsabilizadas”, destacou.

Mulheres pedem respostas sobre morte dos presos (Foto: Murilo Lucena)

Por que não ser cruel?

Um grupo de alunos do curso de Direito, Jornalismo e Ciências Sociais se organizava no auditório do Palácio do Pirajá, na Universidade Estadual do Piauí, para aguardar a chegada do advogado e professor Lucas Villa em janeiro de 2020. Há alguns meses, ele tinha acabado de defender a tese intitulada  “Hegemonia e estratégia abolicionista: ferramenta pós-metafísica de redescrição discursiva do abolicionismo penal”, no Centro Universitário de Brasília, UniCEUB. Os termos eram relativamente conhecidos pelos estudantes de Direito, mas parecia algo inédito para os estudantes de outros cursos que queriam entender mais sobre a complexidade do sistema prisional no país. Lucas abriu a palestra lançando uma sentença: “Ser abolicionista, ou melhor, por que não ser cruel?”.

Na corrente teórica que Lucas acredita, a forma com que a pena é atribuída aos infratores é incongruente aos objetivos das prisões: ressocialização para quem cometeu um delito. “Me parece cruel reduzir o sofrimento da vítima causando dor ao infrator para reparar o crime, ou até mesmo, causar mais sofrimento para reparar um dano”, destaca o professor. “Quando a sociedade se sente satisfeita com esse movimento e começa a achar isso normal, isso me parece uma apologia à crueldade”. E na imensa maioria das vezes, o alvo do sistema penal é um só: homens e jovens negros, com pouca ou nenhuma escolaridade. 

O abolicionismo – assim como a pena e outros tratos cruéis –  acompanha a sociedade conforme sua época. A escravidão, por exemplo, era um trato cruel que foi abolido na maior parte dos países. A pena de morte, prisão perpétua, penas de castigo corporal, outrora institucionalizados, também foram abolidos. No Brasil, para os quase 800 mil presos, o encarceramento também vem sendo apontado pelos movimentos abolicionistas como irracionais.

A política criminal apostada no Brasil é de repressão para infratores. Mas a sentença de que quanto mais houver repressão, haverá menos encarceramento, é contrariada pelos números alarmantes de lotação nos presídios. Dos anos 2000 a 2014, a população carcerária cresceu 161%. No período, os números revelavam que quatro em cada 10 presos no Brasil estavam atrás das grades aguardando um julgamento. Em mais de um terço das unidades, 60% deles estão há mais de 90 dias na cadeia – prazo tido como o mínimo razoável para que ele conheça sua sentença. 

Uma situação que só não é pior porque, nos últimos anos, o país teve uma pequena redução no número de presos. A superlotação nas penitenciárias, porém, ainda é alarmante: elas estão 54,9% acima da capacidade. Desde o último levantamento sobre o sistema prisional feito pelo Monitor da Violência, foram criadas 17.141 vagas, número ainda insuficiente para dar conta do problema, apesar da redução no número de presos. 

Eram 709,2 mil detentos – hoje são 682,1 mil. Mas a capacidade é para 440,5 mil. Ou seja, existe um déficit de 241,6 mil vagas no país. O total não considera os presos em regime aberto e os que estão em carceragens de delegacias da Polícia Civil. Se forem contabilizados esses detentos, o número chega a quase 750 mil no país. Se o crescimento se mantiver, uma em cada 10 pessoas estará presa em 2075, conforme o Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias).

A situação não é diferente no estado piauiense. Em janeiro de 2015, o número total de pessoas privadas de liberdade nas 15 unidades penitenciárias do Piauí era 3.542, passando para 4.303 presos em junho de 2017 – ou seja, nesse período, a população carcerária do estado aumentou em 761 pessoas. De acordo com o Núcleo de Estatísticas, o percentual de crescimento no número de presos tem sido progressivo. Em dezembro de 2016, o crescimento no número de presos registrado em relação a janeiro do ano anterior foi de 17%.

Com base nos dados de 2015 a 2017, o Núcleo de Estatísticas do Sistema prisional destaca que a taxa média de crescimento da população carcerária do Piauí é de 6,8% ao ano. Isso significa que, em 2027, a população carcerária no Estado será de 8.110 presos.

Este panorama das prisões no país fez o Supremo Tribunal Federal classificar as prisões no Brasil como “Estado de Coisas Inconstitucional” – quando se verifica a existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais. 

Atualmente, no Piauí, Lucas acredita que o sistema penitenciário tem progredido. Em 2015, representando a OAB, Lucas presenciou uma das maiores rebeliões do sistema prisional do estado. Por semanas, policiais penais negociavam ataques dos presos contra a estrutura da antiga Casa de Custódia, na Zona Sul de Teresina. Os apenados alegavam maus tratos, visitas limitadas, alimentação precária e uma denúncia pontual: um preso teria morrido por conta de cacos de vidro intencionalmente colocados na comida dele. Inaugurada há mais de 20 anos, a Casa de Custódia José Ribamar Leite é a unidade prisional do estado que concentra a maior parte da população carcerária. Hoje, são cerca de 850 presos, quando a capacidade do presídio é de apenas 330 detentos.

Atualmente, a Sejus informou que a penitenciária passou por mudanças estruturais para garantir a segurança dos presos e parte das reivindicações, à época, foram acatadas – em especial, a retirada de dois agentes penais acusados de maus tratos. A revista vexatória, a qual as mulheres dos presos eram submetidas para visitar os companheiros, foi eliminada. Scanners corporais são utilizados para impedir a passagem de armas ou eletrônicos aos presos. 

O abolicionismo penal tem apontado as fragilidades deste sistema como uma estratégia para evitar que pessoas parem de cometer crimes. Os direitos humanos desrespeitados dentro das prisões vai de desencontro ao conceito de justiça encarado por Lucas Villa. “Imagine que você tem uma piscina e uma criança que não sabe nadar. Ela cai na piscina, se afoga, e como pena, você define que ela não pode mais nadar por 10 anos”, exemplifica Lucas. “As prisões cabem nessa metáfora: não se aprende a nadar sem poder nadar por longos anos. Não se humaniza ninguém tirando ela da sociedade”.

Nas pesquisas de Lucas, o sentimento de atribuir justiça ao sinônimo de vingança, é apontado como “gozo punitivo”: a população sente prazer em ver mais pessoas encarceradas. A ideia de punir tem sido enxergada de forma sintomática – dos noticiários, a figuras públicas, até o cidadão comum. “E mais uma vez, percebemos como a ideia de enjaular pessoas é vista como ‘pagar na mesma moeda’, mas não educar”, finaliza. 

Presos que menstruam** 

Pauline***: − Eu, sinceramente, morri e falta só enterrar. Aqui dentro eu não sou nada. Eu não me sinto mulher. Nem mulher e nem ser humana. Me sinto mais um animal trancado.

Pesquisadora: − Pra você, o que é se sentir mulher?

Pauline: − Ah, pra mim, eu me sentir mulher é eu me arrumar, sair, cuidar dos meus filhos, poder levar e trazer, dar autoridade para eles sair e determinar a hora que ele tem que chegar. É poder ver minha mãe, é poder ir na casa da minha mãe, é ela ir na minha casa. Quando a pessoa é mulher, ela é independente. 

Pesquisadora: − E o que é o ser animal aqui dentro?

Pauline: − É tá trancado. É querer uma coisa e não poder. É como se fosse uma pessoa inválida. Eu quero beber, o bebedouro tá bem ali. Eu tô de frente pro bebedouro, mas não posso pegar água. Tenho que beber água quente porque eu tô presa, trancada. 

Esse diálogo foi extraído da dissertação de mestrado da pesquisadora Caroline Cabral Nunes, que investigou como as instituições prisionais produzem mudanças nas subjetividades e nos corpos de mulheres presas, em específico, as encarceradas na Penitenciária Mista Juiz Fontes Ibiapina, em Parnaíba. 

Dos quase 4.927 presos no Piauí, cerca de 200 menstruam, sendo mais de 80% mães e negras. Em torno de 60% das detentas estão cumprindo pena pelo envolvimento com o comércio de entorpecentes. A idade média das detentas é de 20 a 35 anos e, em geral, elas cumprem de quatro a oito anos de pena em regime fechado. Além da penitenciária de Parnaíba, elas estão divididas na Penitenciária Feminina de Teresina e na Penitenciária Adalberto Santos, em Picos. 

Em uma unidade de caráter misto, uma das mais comuns adotadas pelos sistemas penitenciários, Caroline apresenta como as mulheres sofrem ainda mais com o confinamento. Os espaços pensados para homens também possuem rotinas majoritariamente masculinas e masculinizantes. Prisões para mulheres ainda é um assunto relativamente novo no Brasil e, por conta disso, ou  são construídas adaptações de presídios masculinos ou como anexos de presídios masculinos. 

A insalubridade e acesso aos serviços de saúde afetam presos e presas no geral, mas dentro dos presídios femininos, Carolina destaca que a restrição de itens básicos da higiene menstrual, mais acesso à maquiagens e acessórios, acaba violentando a própria identidade das presas. Particularidades femininas como consultas ginecológicas ou mastologia acabam contribuindo para o cotidiano de ausências vividas por essas mulheres. “Falta de materiais básicos para cuidado íntimo, como absorventes e contraceptivos. Geralmente, no período menstrual, o estado disponibiliza um pacote de absorvente, que sabemos não ser suficiente” aponta Caroline. 

Mulheres trans que são levadas ao sistema prisional ainda são tratadas como homens. Assim que adentram o sistema prisional, são tratadas pelo gênero masculino e dentro dos procedimentos gerais: precisam raspar o cabelo e voltar a se vestir como homens. Até a pesquisa de Caroline, essa era a realidade das mulheres trans no sistema prisional piauiense, apesar de já haver em algumas unidades, celas separadas para elas. “Essa separação, embora ajude a minimizar alguma violência que poderiam sofrer nas celas comuns, não deixa de sinalizar o quanto ainda permanece uma invalidação da identidade dessas mulheres”, aponta Caroline. “E o quanto a lógica masculina e heteronormativas se mantém nesses espaços”, finaliza.

*nomes fictícios para preservar identidade da fonte

**Título do livro reportagem publicado por Nana Queiroz (2015, Record) sobre o cotidiano das prisões femininas no Brasil

***nome fictício para preservar identidade da fonte

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