sábado, 23 de novembro de 2024

A cidade na mira do tiro

Registros de arma no Piauí cresceram mais de 70%; em Teresina, prefeito institui “semana do tiro esportivo”

25 de agosto de 2022

Edição Luana Sena

“Se quisesse, ele teria exterminado todo mundo”, contou a esposa de Daniel Flaubert, motorista de aplicativo envolvido em uma briga de vizinhos que tirou a vida de três pessoas, incluindo a dele. A tragédia aconteceu no dia 30 de julho, mas seria consequência de algo que ocorreu no dia anterior: o filho de Felipe Guimarães é diagnosticado com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e chorava bastante, durante toda a noite. O choro incomodou Daniel que, no dia do crime, teria ido tirar satisfações com a família para conter a criança. A discussão logo evoluiu para xingamentos e ameaças. 

O instrutor voltou para casa, mas retornou com uma arma de fogo. A confusão acabou acertando Felipe com um tiro na perna. Os homens entraram em uma luta corporal e Daniel foi atingido na cabeça. A terceira vítima, Juliana da Silva, babá da criança, também foi baleada e morreu dias depois no Hospital de Urgência de Teresina (HUT) onde ficou internada em estado grave.

Tragédia familiar no bairro São Pedro – Foto: TV Clube/Reprodução

Todos moram em um pequeno prédio com apartamentos e uma casa no mesmo terreno, no bairro São Pedro, zona Sul de Teresina. Lá viviam três famílias: Felipe e a esposa, Daniel e a esposa (irmã de Felipe) e os pais de Felipe. Daniel não era policial ou qualquer profissional da segurança, mas era filiado a um clube de tiros e tinha registro de CAC (Colecionador, Atirador Desportivo e Caçado), além de possuir três armas. Ele aguardava a chegada de um fuzil – a arma é capaz de perfurar objetos em até 800 metros de distância, utilizada em combates militares. 

A mulher nunca entendeu bem a admiração do homem pelas armas de fogo, mas aceitava o gosto peculiar do marido. “Ele costumava dizer que as armas não eram para proteger a vida dele, ele que protegia as armas”, relembra. Daniel não era policial ou qualquer profissional da segurança. Em horário comercial, ele trabalhava como motorista de aplicativo. Após a tragédia, todas as armas foram apreendidas. 

O caso retrata uma banalização da posse de arma no Brasil, comenta o delegado Francisco Costa, responsável pela investigação do caso. “A arma não defende nem protege ninguém”, afirmou à reportagem. “As pessoas falam tanto em tolerância e resiliência e cometem um ato desses”. Um mês antes da tragédia, a categoria dos CAC’s, a qual Daniel pertencia, lançava um abaixo-assinado contra o veto da governadora Regina Sousa (PT) que dificultava o porte de armas no estado. Os representantes estiveram na Alepi (Assembleia Legislativa do Piauí) em manifestação, para reverter a ação da governadora. 

A autorização para o porte de arma, em todo o país, é feita pela Polícia Federal, após aprovação do Sistema Nacional de Armas (Sinarm). Apesar dos critérios dos órgãos, os CAC’s têm a possibilidade de solicitar o registro, mas eles precisam comprovar a necessidade para o exercício da atividade profissional de risco.

No governo Bolsonaro, o presidente tem criado brechas na lei que facilitam o acesso dos CAC’s ao porte de arma não legalizado. Por meio de decretos, em alguns estados, por quantias de até R$1.500, entre 15 e 180 dias, é possível obter o certificado em clubes de tiros. O registro dá o direito de, por uma década, adquirir até 60 armas de fogo – desde revólveres de baixo calibre a fuzis de repetição – e até 180 mil cartuchos de munição anualmente. 

Segundo o Instituto Igarapé, em abril de 2021, estavam abertos 347.161 pedidos de registros ativos pelos CAC’s, enquanto o Exército expediu, no começo do ano passado, 896 autorizações por dia. Neste ritmo, pode haver, atualmente, mais de 830 mil caçadores, atiradores e colecionadores em todo o país.

Como resultado, desde a publicação do decreto, a venda de munição dobrou: de 28,5 milhões de unidades em 2020, saltou para 61,3 milhões em 2021. Ainda no ano passado, o decreto 10.629/2021 permitiu que os indivíduos registrados como CAC pudessem trafegar com armas carregadas entre o domicílio e os locais de treinamento. De acordo com o especialista em segurança pública, Rômulo Novaes, esse livre trânsito de armas coloca pessoas comuns manejando armas carregadas em locais públicos. Um cidadão que  esteja registrado como CAC’s, poderia até mesmo transitar entre municípios com armas utilizando a justificativa do deslocamento. “Essa basicamente seria uma brecha na lei”, aponta Rômulo. Vale lembrar que, no país, existem mais de 2.070 clubes e estandes de tiros. 

Em 2019 e 2020, os brasileiros registraram 320 mil novas armas na Polícia Federal. Para se ter uma ideia, este número é maior do que o registrado em um intervalo de seis anos, entre 2012 e 2018 (303 mil). No Piauí, a Polícia Federal registrou um aumento de 73,3% nos registros de posse de armas concedidas. 

Em resposta ao ato, no Piauí, Regina Sousa explicou que os CAC’s deveriam possuir porte de arma normal, sem facilidades, e relembrou o caso do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, assassinados em Atalaia do Norte, no oeste do Amazonas. “Foi um caçador que matou os dois. Não é possível que as pessoas andem com essas armas para cima e para baixo”, respondeu. “Porte de arma não é uma meta minha”, finalizou à imprensa. 

Final de semana de pólvora

Pouco menos de um mês após a tragédia da família no São Pedro, o prefeito Doutor Pessoa (Republicanos), sancionou o “Final de Semana Municipal do Tiro Esportivo”. Com isso, ele reconhece a prática esportiva do tiro como lazer. Curiosamente, a lei também vem como um mecanismo para “desenvolver os valores morais, sociais e de aprendizado pátrios”. O vereador Leonardo Eulálio (Partido Liberal) é o autor da lei.

O evento será comemorado no primeiro final de semana de agosto – mês em que se celebra o aniversário de Teresina. A lei prevê que, durante a festividade, o Poder Executivo Municipal possa realizar uma série de atividades e/ou projetos relacionados ao tiro esportivo. A lei prevê que durante a festividade, o Poder Executivo Municipal, junto aos clubes de tiro e congêneres, poderá realizar uma série de atividades ou projetos relacionados ao tiro esportivo. 

Tragicamente, em 2023, enquanto a família do bairro São Pedro estiver lamentando um ano da perda de dois familiares pelo uso arbitrário do posse de arma, o poder público municipal estará se organizando para a primeira semana de homenagem aos tiros – ironicamente, em nome dos valores morais.

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Categorias: Especial

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