Em março deste ano, a empregada doméstica Mara Célia Siqueira, 52 anos, estava sem conseguir uma casa para fazer faxina. Com a dificuldade ocasionada pela pandemia, os bicos como pedreiro também ficaram escassos para seu marido, Carlos Alberto Marques, 57 anos. Sem renda, a família não teve escolha: saíram da casa em que moravam de aluguel e foram para debaixo da ponte.
“A gente estava ficando sem serviço e para não ficar devendo o aluguel, devolvemos a casa”, explica Dona Mara. Junto com eles, levaram apenas os móveis. Para Dona Mara, a maior dificuldade foi lidar com a fome. “A gente quase não tinha mais nada para poder se alimentar. Foi aí que me aperreei, porque a gente que é adulto fica até dois, três dias sem comer. Mas a minha menina não aguenta”, conta, ao lembrar de sua filha de 14 anos.
Após três dias dormindo embaixo da ponte Juscelino Kubitschek, em Teresina, a situação começou a ser compartilhada por um perfil local nas redes sociais. A postagem contando a história de Seu Carlos, ganhou visibilidade e mobilizou algumas pessoas que se prontificaram em ajudar a família com doações em dinheiro e alimento. Com a repercussão, a família conseguiu uma nova casa para morar e o dinheiro arrecadado ajudará a família a se manter.
A fome e o acesso precário à alimentação são uma realidade que aumentou de forma considerável em meio à pandemia da Covid-19. Segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, publicado pela Rede Penssan, entre 5 e 24 de dezembro de 2020, a fome voltou aos patamares de 2004. Cerca de 116,8 milhões de brasileiros estão sem acesso pleno e contínuo ao consumo de alimentos. Além disso, metade da população está em situação de níveis leves, moderados e graves de Insegurança Alimentar. O estado grave aumentou 19% nos domicílios formados por moradores que haviam perdido o emprego ou adquirido algum endividamento em razão da pandemia.
Além disso, os dados apontam para as desigualdades regionais, ao considerar que as regiões Norte e Nordeste são as mais afetadas pela fome. O Nordeste apresentou o maior número absoluto de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, quase 7,7 milhões, número que ultrapassa a população estimada do estado do Maranhão para 2020, que, segundo o IBGE, seria de 7,1 milhões de habitantes.
Se considerarmos o recorte de gênero e raça, chegaremos ao perfil mais atingido pela fome: lares chefiados por mulheres. Segundo os dados de 2020, em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres seus moradores estavam passando fome, contra 7,7% quando o chefe de família é um homem. Em relação ao recorte de raça, a fome se mantém presente em 10,7% das casas pertencentes às pessoas pretas e pardas, enquanto entre pessoas brancas esse percentual chega a 7,5%.
No Piauí, os dados de insegurança alimentar são alarmantes desde antes da pandemia. Segundo dados do suplemento de Segurança Alimentar da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, divulgados no ano passado, 46% dos domicílios piauienses sofrem com a insegurança alimentar, o que corresponde a cerca de 468 mil lares. O estado é o 12º com a maior proporção do país, ultrapassando a média nacional, de 36,7%.
Falta de acesso a alimentação saudável agrava a fome no país
A insegurança alimentar está ligada a problemas históricos do nosso país. No dia a dia, aparece nas telas dos noticiários, nas correntes de pedidos de ajuda em redes sociais ou com pessoas na rua pedindo dinheiro para comprar comida.
Reflexo da estrutura de problemas sociais, essa questão possui dimensões complexas, entre elas a desnutrição, a produção alimentar e o acesso à água potável e alimentos saudáveis. Os caminhos para diminuir a fome precisam trilhar percursos já conhecidos e outros, reimaginados.
Para Dayse Batista, professora do Instituto Federal do Piauí – IFPI de Campo Maior, pesquisadora e ativista da Agroecologia e Soberania Alimentar, a mudança dessa realidade está associada à implantação de políticas públicas. “As políticas públicas são necessárias para promoção de educação de qualidade e saúde”, pontua. “Essas ações envolvem agricultura local e agroecológica, com diversidade, sustentabilidade, respeitando o território e as cadeias produtivas locais. Programas para transferência direta e condicionada de renda como o Bolsa Família também são fundamentais para combater a pobreza e promover segurança alimentar e nutricional em um país com tantas desigualdades como o nosso”, acrescenta.
O modo como é estruturada a distribuição dos alimentos, do plantio até a comercialização, a má qualidade nutricional do que é consumido, como embutidos e refrigerantes e os hábitos alimentares insalubres estão entre os outros riscos da insegurança alimentar. Sobre essas dimensões, Dayse esclarece que a forma como a cadeia agroalimentar se organiza atualmente vem afastando gradativamente quem produz de quem consome. “Isso gera perda de autonomia, tanto das agricultoras e agricultores quanto dos consumidores. Essas causas também fazem com que as pessoas comprem produtos baratos e menos nutritivos, com altos teores de açúcares e gorduras saturadas. A má alimentação provoca muitas vulnerabilidades que, muitas vezes, se traduzem em doenças como a obesidade e, junto com a fome, se configuram como fatores da insegurança alimentar”, continua a pesquisadora.
Entre outros fatores agravantes, está o desemprego. Segundo a agência de crédito Austin Rating, com base no Fundo Monetário Internacional (FMI), o índice de desemprego no Brasil deve ser de 14,5% neste ano, levando o país a ser a 14ª taxa de desocupação no mundo.
O desemprego é uma realidade há seis anos para Pandia Raissa, 29 anos. O sustento da família atualmente depende da pensão dos dois filhos, 13 anos e 10 anos, e dos serviços de sua mãe, 50 anos, que atua como cuidadora de pacientes internados. Sem renda fixa, falta comida na mesa para ela, seus filhos e sua mãe, sobretudo com a chegada da pandemia da Covid-19, onde a situação ficou ainda mais apertada. “Antes da pandemia, nós tínhamos uma alimentação que considerava muito boa, a gente quase não comia carne, mas comíamos muitos legumes, verduras e frutas”, relembra. Com a redução da oferta de trabalhos para sua mãe nesse período, a família precisou contar com a ajuda de doações. “Familiares e amigos nos ajudam com alimentos e doação de cestas básicas”, explica Pandia.
Auxílio Emergencial é insuficiente para reduzir efeitos da crise
Ainda que o auxílio emergencial tenha sido aprovado para reduzir os efeitos da crise sanitária, os dados da Rede Penssan afirmam que o recurso é insuficiente para tirar as famílias da fome. E muitas delas nem sequer conseguiram ter acesso a ele. A burocracia exigida tornou inviável a solicitação do auxílio de Dona Mara. “Desde a primeira vez não consegui, por conta do cadastro. Ano passado tentei duas vezes e meu cadastro não foi aprovado. Este ano fiz de novo e estou na expectativa de conseguir”, explica a empregada doméstica.
Na primeira fase do programa o valor do auxílio foi fixado em R$600, contemplando quase 70 milhões de pessoas. Neste ano, após três meses de suspensão do auxílio ocorrida em dezembro, o governo federal decidiu reduzir o benefício, que varia entre R$ 150, R$ 250 e R$375, em um momento em que o preço dos alimentos e do gás de cozinha, por exemplo, aumentaram. Enquanto o preço dos alimentos subiu 15% no país neste ano, quase o triplo da taxa oficial da inflação, o gás de cozinha segue aumentando o valor, chegando a 39% mais caro comparado ao último semestre.
Os altos valores reduzem substancialmente o poder de compra das famílias, enquanto as regras para recebimento do auxílio deste ano excluem cerca de 22,6 milhões de pessoas. Isso se dá em razão da Medida Provisória nº 1.039/2021 do Governo Federal, determinando que apenas aqueles que já receberam o pagamento do auxílio em 2021 e, portanto, está cadastrado no sistema, podem receber o benefício este ano.
“A inflação para as classes mais baixas tem sido muito elevada e tudo isso está ligado ao câmbio. Como o real se desvalorizou muito, o dólar desvalorizou mais ainda e isso significa trazer inflação de fora para cá”, explica Samuel Filho, professor de Economia na Universidade Federal do Piauí (UFPI). “Tudo isso vai impactar justamente nas pessoas que ganham menos e estão desempregadas”, acrescenta.
Pandia recebeu o auxílio emergencial do Governo Federal na primeira fase, em 2020. Nesta nova fase do benefício, conta que o valor a receber não vai ser suficiente para suprir as necessidades da família. “As dificuldades desse ano estão bem maiores do que no início do ano passado. Meus amigos e minha família que conseguiram nos ajudar também estão com dificuldades. Muitos com salários atrasados, outros foram demitidos e, com os preços absurdos dos alimentos e outras despesas, ficou muito mais difícil”, lamenta. Quando questionada sobre como seguir, desabafa: “Eu sinceramente não consigo enxergar um futuro bom, não. Hoje mesmo tive que mandar meus filhos para as casas dos pais durante alguns dias porque estamos praticamente sem comida em casa”.
Para Samuel Filho, existe uma relação direta entre o impasse e a demora da disponibilização do auxílio emergencial e o aumento dos índices de segurança alimentar no país durante a pandemia. “O auxílio emergencial é necessário para dar condições mínimas para que as pessoas possam aguentar uma situação de excepcionalidade na questão da sobrevivência. Nessa pandemia, os mais prejudicados são os trabalhadores que não têm outra forma de subsistência que não seja a sua força de trabalho, e muitos estão desempregados nesse período”, acrescenta o economista.
No contexto piauiense, essa situação se agrava. “A economia piauiense não é tão dinâmica em termos de atividade econômica em relação ao restante do país. A capital piauiense, por exemplo, depende do setor público ou dos empregos no comércio, que foi grandemente afetado porque precisou fechar vários dias e isso resulta na falta de atividade econômica e, consequentemente, em agravamento do nível de pobreza maior em comparação a outras regiões do país”, considera Samuel.
“Muitos brasileiros não sabem o que vão comer no dia seguinte”
A constituição descreve a alimentação saudável e adequada como um direito de todos. Porém, com o aumento da fome, muitas ações independentes de doações e ajuda às famílias em vulnerabilidade surgem e ocupam o espaço de políticas públicas que deveriam possibilitar o acesso a condições de vida melhores.
Diante do contexto de fome e desemprego, muitas famílias contam apenas com a doação de refeições e cestas básicas realizadas por grupos e coletivos. Inúmeras iniciativas se somam e atuam no sentido de combater o aumento da fome no país. “Muitos brasileiros não sabem o que vão comer no dia seguinte”, diz Lucineide Soares, que mora no assentamento Lisboa, localizado em São João do Piauí (462 km da capital, Teresina) e faz parte da direção nacional do Movimento Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo estado do Piauí. Ela relata que, desde o início da pandemia, o MST tem se organizado com bandeiras de lutas norteadas pela solidariedade em todo o país.
Do início da ação para cá, mais de 4 mil toneladas de alimentos foram distribuídas no Piauí, através de cestas básicas e marmitas, principalmente em periferias ou em locais com famílias em situação de vulnerabilidade ou que estejam passando fome.
Em Teresina, foram distribuídas cerca de 350 cestas e mais de 4 mil marmitas com produtos agroecológicos, alimentos livres de agrotóxicos, produzidos nos assentamentos. “A gente consegue perceber a necessidade das pessoas por não ter alimento, não ter comida dentro de casa e sem ter a quem recorrer”, relata emocionada.
Na pandemia, ações como a integrada por Lucineide nutrem dias menos doloridos e a possibilidade de continuar seguindo. A valorização da alimentação como um direito humano básico, o incentivo à construção de políticas públicas e subsídios que assegurem o bem estar da população, podem construir uma rede de proteção que contemple a todas e todos, mantendo assim o prato cheio, saudável e diverso.
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