Os casos suspeitos de “furar a fila” de prioridades para tomar a vacina contra a Covid-19 estão sendo constantes em todo o país desde o início das campanhas de vacinação. Segundo levantamento realizado pelo programa Profissão Repórter, da Rede Globo, com base nas reclamações recebidas pelos Ministérios Públicos Estaduais e pela Ouvidoria Nacional do Ministério Público, o Brasil registrou pelo menos 4,7 mil denúncias de fura-filas desde o início da vacinação contra a Covid-19, em janeiro deste ano. O levantamento ainda apurou que este número pode ser ainda mais alto, visto que as denúncias também podem ser feitas em outros órgãos, como nas ouvidorias dos governos dos estados e nas secretarias de saúde.
No Piauí, a identificação de casos suspeitos de furar a fila já está sendo feita desde o início da campanha de vacinação. Em fevereiro, o Ministério Público instaurou procedimentos para apurar possíveis casos de desobediência à fila de vacinação em 32 cidades. Dois casos emblemáticos aconteceram no interior do estado, onde o prefeito de Guaribas, Joercio Matias, e o prefeito de Uruçuí, Wagner Coelho, foram denunciados à Justiça por terem sido vacinados fora do período de vacinação que, à época, estava destinado a pessoas maiores de 90 anos.
O Relatório de Levantamento sobre a Vacinação em Teresina, do Tribunal de Contas do Estado do Piauí (TCE/PI) identificou 2.778 casos com indícios da prática no estado. Foram levadas em conta 101.974 doses das vacinas distribuídas pelo Ministério da Saúde para a capital do estado, Teresina. Entre os casos suspeitos, foi possível identificar trabalhadores de saúde que não possuíam registro ativo no respectivo Conselho de Classe e que estariam realizando atividades sem qualquer relação com a saúde.
As análises partiram do cruzamento de dados do Sistema de Informações do Plano Nacional de Imunização (SI-PNI) com o Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES). O relatório constatou que 51% dos vacinados pelo critério “trabalhadores de saúde” não possuem registro do SCNES. Dos casos suspeitos, os servidores e funcionários de órgão públicos (CMT, ALEPI, Executivo Estadual, TCE, TJ e MP) que constam na lista do TCE correspondem a 23% (644) do total.
Outro fato que chama atenção na lista é a presença dos próprios órgãos fiscalizadores, como o Ministério Público do Piauí, Tribunal de Justiça do Piauí e o próprio TCE-PI, com 30 membros citados. O Tribunal de Justiça informou que entre os nomes mencionados na lista constam o de três servidores da área de saúde, sendo que um deles não trabalha mais na instituição e os outros dois exercem suas funções em outras instituições no enfrentamento direto à pandemia e, por essa razão, foram vacinados. “Já os demais membros listados, caso tenham conseguido se vacinar fora da fila estabelecida em atenção às prioridades, não contam com o apoio do Tribunal. E só cabe à Instituição acompanhar e monitorar as ações de seus servidores relacionadas às obrigações com o trabalho no Tribunal. As atitudes tomadas por cada servidor fora do âmbito profissional são de responsabilidade individual de quem as praticou”, informou.
Para o secretário de controle externo do TCE-PI, Luís Batista, é possível que o número de pessoas suspeitas de terem furado a fila da vacina seja ainda maior. “Com o máximo de prudência chegamos àqueles números, mas existem outras bases de dados que ainda não foram cruzadas e também aquelas informações que dizem respeito apenas à capital. Ainda iremos fazer essa análise em outros municípios do estado. Certamente o número pode ser bem maior”, explica.
Entretanto, após a grande repercussão do caso, o acompanhamento público de relatórios técnicos de auditoria do TCE, como o dos casos suspeitos de furar a fila, foi limitado. Isso ocorreu após decisão unânime proferida pelos conselheiros do TCE-PI durante sessão plenária em 27 de maio de 2021, que determinou que os relatórios de auditoria somente serão publicizados ao final do julgamento dos processos, e isso pode levar anos. A medida afeta diretamente a transparência pública e burocratiza o acesso a informações que, até então, estariam públicas à população e que, agora, para serem acessadas por um cidadão comum, devem ser solicitadas via Lei de Acesso à Informação (LAI).
Após essa decisão, a 42ª Promotoria de Justiça de Teresina expediu recomendação ao TCE para que esta fosse revogada. Na recomendação, o promotor de Justiça Francisco de Jesus Lima argumenta que “a Lei Geral de Proteção de Dados determina que a disponibilização dessas informações pelas pessoas jurídicas de direito público especificadas deverá ser realizada para o atendimento de sua finalidade pública em veículos de fácil acesso, preferencialmente em seus sítios eletrônicos, na perseguição do interesse público, com o objetivo de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço público”.
Casos suspeitos de fura-fila estão sendo apurados
A lista dos suspeitos que consta no Relatório de Levantamento Vacinação em Teresina do Tribunal de Contas do Estado do Piauí (TCE/PI) já foi recebida pelo Ministério Público do Estado. A investigação das irregularidades na vacinação contra a Covid-19 em Teresina está em trâmite na 29ª Promotoria de Justiça, que integra o Núcleo de Defesa da Saúde do MPPI .
A conselheira do Conselho Regional de Psicologia (CRP/PI), Juliana Maia, explica que a lista dos profissionais da categoria está sendo avaliada pelo órgão junto ao jurídico para posteriormente ser enviada uma resposta ao Ministério Público. Segundo o presidente do CREFITO/PI, Rodrigo Amorim, a lista dos fisioterapeutas suspeitos de terem se vacinado de forma irregular foi recebida pelo órgão e enviada ao Ministério Público. “Dos nomes que recebemos, dois tinham direito à vacina porque estão inscritos no Conselho e estão atuando corretamente. Portanto, informamos essa correção para o MP. Os demais, confirmamos que estavam inativos”, esclarece Rodrigo.
São 76 as pessoas registradas no Conselho Regional de Odontologia do Piauí (CRO-PI) apontadas no relatório como vacinadas irregularmente no primeiro, quarto, quinto e sexto ciclos de vacinação. O conselheiro Sérgio Pires confirma que há pessoas da área que foram vacinadas inadequadamente, mas que o levantamento do TCE possui falhas. “Não sabemos o porquê, mas alguns profissionais foram dados como inativos sendo que estão ativos. Agora vamos enviar as informações para o TCE-PI e Ministério Público”, explica Sérgio.
Entretanto, outros órgãos que possuem servidores que constam na lista do TCE informaram, por meio de nota, que não foram comunicados oficialmente sobre a situação, conforme explicou a assessoria de comunicação da Assembleia Legislativa do Piauí (ALEPI), que reforçou ainda que é “importante lembrar que o Poder Legislativo não é responsável pela vacinação, mas apoia as fiscalizações e, caso as denúncias venham a ser confirmadas, aqueles que tenham cometido alguma irregularidade devem responder aos órgãos competentes como qualquer outro cidadão”, acrescenta a nota. A assessoria do Conselho Regional de Medicina (CRM/PI) afirma que o órgão “não tem responsabilidade ou gestão sobre vacinação e não está respondendo perguntas sobre”, acrescentando que, quanto ao caso, “o presidente do CRM não responde sobre essas questões”.
Considerando a quantidade de casos suspeitos de “furar fila” no Brasil, o ato pode se tornar crime no país. A medida está em tramitação no Senado. O ato de “furar fila” pode ser incluído como um delito no Código Penal Brasileiro, através do Projeto de Lei nº 25/2021. A PL tem o objetivo de punir casos de fura-fila, bem como o desvio de vacinas e insumos médicos ou terapêuticos. A proposta está em tramitação no Senado Federal. Em seu texto, prevê detenção de um a três anos e multa para pessoas que buscam infringir a ordem de prioridade da vacinação estabelecida. A pena pode aumentar um terço se o agente falsificar atestado, declaração, certidão ou qualquer documento.
No Piauí, a proposição do indicativo de projeto de lei nº 03, de 25 de fevereiro de 2021, que dispõe sobre penalidades a serem aplicadas pelo não cumprimento da ordem de vacinação dos grupos prioritários, foi aprovada pelo plenário da Assembleia Legislativa do Estado (ALEPI) em 28 de abril de 2021, e segue para a Diretoria Legislativa. São passíveis de penalização o agente público responsável pela aplicação da vacina e a pessoa imunizada. As penas previstas serão aplicadas por meio de multas. Além das multas, o agente público poderá ser afastado de suas funções até durar o processo administrativo.
0 comentário