Quantos professores pretos, pardos ou indígenas você teve na pós-graduação? A ausência ou presença de professores pertencentes a esses grupos étnicos é sintomática e reflete as desigualdades presentes em uma sociedade na qual mais da metade da população, cerca 56% dos brasileiros, se autodeclara como preta ou parda, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar da representatividade desse número, a presença desses grupos é reduzida em diversas posições de poder: ainda é uma tarefa difícil observar professores negros lecionando no ensino superior, especialmente em determinadas áreas do conhecimento. Para alunos de graduação das chamadas “ciências duras”, como as ciências exatas e naturais, essa tarefa pode ser ainda mais complicada. É o que aponta o estudo Desigualdades Raciais na Ciência Brasileira, desenvolvido pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) em parceria com o Instituto Serrapilheira.
A pesquisa, feita a partir dos dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), destaca que os cientistas brancos em programas de pós-graduação das “ciências duras” superam em 12 vezes a presença de pretos, pardos ou indígenas. Brancos representam 90,1% dos professores, enquanto pretos, pardos ou indígenas totalizam apenas 7,4%, e amarelos, 2,5%. O pesquisador Solimar Oliveira, membro do Núcleo de Pesquisas sobre Africanidades e Afrodescendencia – IFARADA/UFPI e professor do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Sociedade e Cultura da UESPI, ressalta o desafio da contínua afirmação e representação de pessoas não brancas em todas as áreas do conhecimento. “Nas chamadas áreas de ponta, associadas às tecnologias avançadas e forças mercadológicas, a presença de negros é quase insignificante”, comenta. Para ele, a diversidade racial pode influenciar positivamente uma variedade de diferentes perspectivas sociais. “Na chamada Ciência de ponta, o que existe é pouca mão de obra, mais ainda e especialmente negra, sem falar na indígena neste campo. Contudo estes poucos servem de referência e representatividade no rastro do “sonho americano”, ajudam a construir o mundo das possibilidades para todos”, relata.
Em relação ao gênero, a pesquisa mostra que a taxa masculina de professores e cientistas no ensino superior é de 67,1%, enquanto as mulheres representam 32,9%. Ao considerar também a interseção entre gênero e raça, observa-se que homens brancos compõem a maioria esmagadora, representando 60,9% dos professores em posições estáveis nas pós-graduações, enquanto homens pretos, pardos ou indígenas representam 4,9%, e homens amarelos cerca de 1,3%. Solimar explica que as consequências da sociedade pós-escravidão ainda limitam o acesso da população negra a diversas oportunidades. Para ele, a desigualdade material originada desse passado persistente ainda dificulta essas pessoas a alcançarem posições de poder. “Estruturalmente, o que impediu durante séculos a diversificação, e impede contemporaneamente a ampliação dessa diversificação, é, sem dúvida, a base material. A desigualdade pavimentou as trajetórias dos sujeitos não brancos no processo educativo”, explica.
Grupos raciais historicamente marginalizados podem ter mais dificuldades em romper os ciclos de pobreza devido às barreiras estruturais. A desigualdade enraizada na estrutura da sociedade brasileira frequentemente cria obstáculos que reduzem a chance de pessoas negras alcançarem posições no serviço público. Isso pode se manifestar em oportunidades de emprego limitadas, acesso desigual à educação de qualidade e discriminação no sistema de justiça, o que, por sua vez, contribui para a reprodução da pobreza em certos grupos raciais. Segundo uma pesquisa desenvolvida pela Liga de Ciência Preta Brasileira mediante dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pessoas negras constituem uma minoria nos cursos de pós-graduação em universidades públicas. A representação é de 82,7% para alunos brancos, 12,7% para alunos pardos, enquanto pretos representam apenas 2,7% dos estudantes. Essa realidade também se repete no nosso estado, conforme Solimar. “Entre nós, falo do Piauí, vemos poucos fenotipicamente identificados negros nas salas de aula das pós-graduações. A necessidade material chama pobres e negros para o trabalho, para a garantia da sobrevivência”, relata. Se a quantidade de pessoas pretas com acesso à universidade e ensino superior já é restrita, essa proporção é um indicativo que reforça a ainda mais reduzida presença de negros na pós-graduação e em cargos de professores ou cientistas.
Além do acesso à educação, Solimar destaca a importância das instituições acadêmicas de promover a permanência de indivíduos de diversas origens étnicas para consolidar sua posição como entidades comprometidas com a diversidade. Para ele, essas medidas têm o potencial de transformar a realidade e a situação de pobreza persistente vivenciada por uma parcela da população. “As pessoas negras que tem acesso a essas oportunidades têm chances de facilitar outros processos de mudanças familiares, por exemplo, o que se chama de “quebrar ciclos”, afirma.
Para elas, mais entraves
No caso das mulheres, a pesquisa desenvolvida pelo GEMAA destaca que a quantidade de professoras brancas totaliza 29,2%, as pretas, pardas ou indígenas somam 2,5%, e as amarelas representam 1,2% do total. A análise aponta para uma hierarquia desfavorável, especialmente para as mulheres pretas, pardas ou indígenas, dado o baixo percentual de cargos ocupados por esse grupo em contraste com a população. A representatividade de cientistas classificados como “amarelas” é limitada, mas é importante levar em conta a baixa incidência populacional desse grupo no Brasil, que representa 0,4% da população segundo o IBGE.
A pesquisadora Iraneide Soares da Silva, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História e Memória da Escravidão e do Pós-Abolição da UESPI, explica que o primeiro desafio enfrentado por pessoas negras é o acesso às comunidades científicas. E, uma vez superado esse obstáculo, surgem novos desafios, como a garantia ao acesso a bolsas, a participação em intercâmbios e eventos científicos. “Esse processo todo é atravessado pelo racismo institucional, que estrutura as instituições. Esse racismo exclui, mata sonhos, adoece”, destaca. Segundo Iraneide, as barreiras para o acesso, permanência e sucesso das pessoas negras nas instituições formativas e nos espaços de produção de ciência e tecnologia moldam essa realidade de exclusão. “Nossas experiências perpassam pela escassez de colegas professoras negras com uma formação sólida (mestrado e doutorado), tanto nos cursos de graduação quanto nos programas de pós-graduação e laboratórios. Além disso, observamos a escassez de mulheres negras bolsistas de produtividade do CNPq e a ausência delas em cargos de poder nas instituições científicas e universidades”, comenta.
Para a pesquisadora, o papel das instituições acadêmicas e científicas na promoção da diversidade racial, tanto em termos de estudantes quanto de professores, envolve proporcionar uma educação antirracista desde a educação básica até o ensino superior. “Além de cumprir o que preceitua o conjunto da Legislação Antirracista vigente, é importante firmar compromisso de combate ao racismo nas suas diversas faces e decolonizar o currículo dos cursos para conceber a diversidade cultural como algo positivo e importante parte constitutiva importante da sociedade brasileira”, explica.
Em relação aos tipos de programas de ensino, pretos, pardos e indígenas são minoritários em todas as áreas, mas estão em maior proporção em “Matemática/Probabilidade e Estatística” (12,2%) e “Química” (11,7%). Em contraste, “Geociências” possui apenas 3,5% de docentes desse grupo, seguida por “Ciência da Computação” (5,1%), “Biodiversidade” (5,2%), “Ciências Biológicas” (6,5%), “Astronomia/Física” (7,1%) e “Ciências Exatas e da Terra” (7,7%).
A presença de cientistas de diversas origens ajuda a desmistificar a noção equivocada de que o mérito está ligado a determinados grupos. Os cientistas negros, assim como qualquer outro grupo, são parte integral do panorama científico global. Incluir de maneira mais representativa os talentos e perspectivas destes cientistas na comunidade científica é um passo essencial para garantir uma ciência mais robusta, aberta e reflexiva, alinhada com as realidades e desafios variados do mundo em que vivemos. Portanto, além de uma responsabilidade coletiva, é de responsabilidade institucional promover a inclusão e garantir que todos os talentos possam contribuir plenamente para o avanço do conhecimento científico. A representatividade impacta não apenas a experiência individual na pós-graduação, mas também molda o futuro da educação superior e sua capacidade de abraçar a pluralidade de vozes e histórias.
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