Quando a morte de Janaína Bezerra, estudante de jornalismo assassinada e estuprada dentro da Universidade Federal do Piauí (UFPI), completou 48h, o reitor Gildásio Guedes ainda não tinha se manifestado sobre o caso. O posicionamento por parte da administração se resumia a notas institucionais divulgadas pela assessoria de comunicação do órgão. Na manhã desta segunda-feira (31), desde as sete da manhã, os alunos que faziam vigília na frente da praça da reitoria foram informados que Gildásio estava de férias, sem previsão de retorno – apesar do crime bárbaro que assolou a universidade.
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Sem reitor nem qualquer sinal de atitude por parte da administração superior, os alunos do Diretório Central dos Estudantes (DCE) rapidamente se uniram para ocupar a reitoria. “Acham que notas de repúdio vão resolver o que aconteceu aqui?”, discursou Élica Aguiar, representante do DCE. “A morte da Janaína é resultado de uma universidade que não tem segurança, não tem comida, não tem o básico para os estudantes”, finalizou. Durante o ato, servidores informaram que o reitor estava de férias. Logo depois, a UFPI declarou que ele teria sido afastado por motivos de saúde. Os estudantes tiveram que ser ouvidos pela professora Regilda Moreira, reitora em exercício.
Nos últimos dois anos, a UFPI tem declarado sucessivos cortes de gastos na instituição. Em outubro, a universidade informou que o corte seria de R$5,5 milhões em seu orçamento. O que antes era comprometedor, à época foi anunciado como caótico: no ano passado, a universidade já vinha adotando medidas de contenção das despesas de segurança, alimentação e iluminação. Enquanto os gastos aumentavam em razão do retorno das aulas presenciais, a UFPI reafirmava que o orçamento da universidade era dilapidado a tesouradas.
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O assassinato de Janaína, para os alunos presentes, foi uma tragédia anunciada. Sem policiamento suficiente para fazer a proteção do campus, casos de assédio, assaltos e agressões eram constantes na instituição. Para os estudantes da noite, era impossível se deslocar pelo campus desacompanhado. A crise no transporte coletivo municipal, somada à precariedade da universidade, deixava mais complicada a vida dos estudantes que moram longe da instituição. Sem jantar à noite, por conta dos Restaurantes Universitários (RUs) fechados, o esvaziamento da universidade se tornava mais visível no período noturno. O transporte universitário, conhecido como “fantasmão”, responsável pelo deslocamento interno na UFPI à noite, não era mais visto pelos estudantes desde o retorno presencial. “Era uma questão de tempo até alguma tragédia acontecer nessa universidade”, relatou Clara Bispo, representante do Centro Acadêmico de Comunicação Social da UFPI (Cacos).
Desde o ocorrido, a UFPI declarou que a calourada em que Janaína participava antes de sofrer a violência não tinha sido autorizada pela instituição. Porém, os estudantes afirmam que as festas e eventos universitários são promovidos semanalmente, por diferentes cursos, e não precisam de autorização para acontecer. Na calourada da última sexta-feira (27), a festa tinha o objetivo de custear a viagem para a Bienal da União Nacional dos Estudantes (UNE), que começa nesta semana. “A gente precisa que a universidade se responsabilize pelos seus erros. O sucateamento da universidade é um projeto”, destaca Clara Bispo. “Nada justifica um estuprador violentar uma mulher aqui dentro”, complementa. “Janaína não é a culpada. A culpa não é da festa. Poderia ser qualquer uma de nós. Não estamos seguras.”
O feminicídio de Janaína representa o estopim da crise da segurança no campus que se alastra desde o governo Bolsonaro e os cortes de verbas nas instituições federais. No primeiro dia de vigília pela vida da estudante de jornalismo, alunas e professoras denunciaram que assédios e tentativas de abuso fazem parte do cotidiano das mulheres na universidade. A manutenção do campus, desde a locomoção comprometida pelo gradeado nas portas que ligam os centros até o mato que se alastra nas vias de passagem e interferem no dia a dia de quem estuda ou trabalha pela UFPI. “Bem pior do que isso é saber que existem alunos e professores colecionando denúncias de assédio e a universidade nunca se mobilizou”, declara Brenda Pires, estudante de Nutrição, à reportagem.
Durante a ocupação na reitoria, os estudantes destacaram a necessidade do Hospital Universitário (HU) atender casos de urgência e emergência da comunidade estudantil. No dia em que Janaína foi encontrada desacordada, ela precisou ser encaminhada a outro hospital, na zona Norte da cidade. Os estudantes também pediram a presença de seguranças do gênero feminino, com formação em combate ao racismo e LGBTfobia. “Não adianta ter policiamento para a gente ter medo, tem que existir um policiamento que proteja as mulheres e o povo preto da universidade”, frisou o DCE. Outra medida, em caráter de urgência na reivindicação dos estudantes, é que seja revogada a medida que proíbe calouradas na instituição.
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A professora de Filosofia e coordenadora de Avaliação e Regulação Acadêmica, Edna Magalhães, informou que será realizado um protocolo de combate à violência contra a mulher. O documento irá nortear alunos, professores e servidores para agir em casos de violência e assédio, além de fiscalizar e dar um encaminhamento mais célere às denúncias de assédio e violência na universidade.
Indenização à família de Janaína, a construção de um dossiê que leve o nome da estudante e o dia 28 de janeiro reservado à memória da jovem foram também algumas das reivindicações dos alunos à reitora em exercício. “Esse caso não pode ser esquecido”, pontua Clara Bispo. “Janaína era uma estudante, jovem, mulher negra, que via nessa universidade a chance de um futuro melhor”, segue dizendo. “Infelizmente, por conta do descaso, ela não terá mais esse futuro.”
Ao todo, 24 propostas dos estudantes foram entregues à administração superior.
A culpa não é do lugar
Desde o primeiro dia de vigília, estudantes, professoras e ativistas têm acompanhado, estarrecidas, como grupos divergentes aos movimentos sociais culpabilizam os eventos promovidos pelos estudantes como pivô do feminicídio cometido contra Janaína. Para a delegada Eugênia Villa, essa reação faz parte do machismo sintomático vivido pela sociedade. “O feminicídio tem um grande aliado: o silêncio e a omissão”, declarou a delegada. “A desigualdade de gênero acentua a vulnerabilidade feminina em nossa sociedade e se materialliza em estupros, espancamentos, palavras cruéis e degradantes e, por fim, o assassinato.”
Na manhã desta quarta-feira (01), a delegada e membros da Polícia Civil estiveram realizando palestras com alunos do curso de Matemática. Segundo o Diretório Central dos Estudantes, foram realizadas ações ao longo dos últimos dias para chamar atenção da comunidade estudantil. Conforme o grupo, dentro da universidade, os alunos dos cursos que contemplam as Ciências Exatas são os que menos participam das discussões sociais oferecidas pelas instituições.
“A roupa, tampouco o local, importa nesse ou qualquer outro caso de violência contra a mulher”, explicou a delegada. “A discussão que devemos levantar neste caso está em volta das relações de poder que alguns homens acreditam ter sobre o corpo e a vida das mulheres”, pontuou. “O machismo persistente e assassino é a raiz do problema na nossa sociedade”, finalizou a delegada.
Thiago Mayson Barbosa, preso preventivamente pelo estupro e assassinato de Janaína, tem 28 anos e era aluno na pós-graduação de Matemática. Segundo o departamento do curso, foi aberta uma sindicância para o cancelamento da sua matrícula, mesmo que ele venha a ser inocentado. Segundo Humberto Soares, chefe do departamento de Matemática, a sala em que aconteceu o crime não deveria estar sendo utilizada no momento da calourada. Thiago e outros 13 estudantes compartilhavam uma chave que dava acesso ao espaço. Um colchão, encontrado na sala, foi colocado também sem autorização e possui origem desconhecida. “Estamos colaborando para que esse crime não fique sem punição”, declarou o chefe. “Sabemos que a culpa não é de uma festa, nem da vítima”, frisou.
Três dias após a morte de Janaína, um grupo de estudantes realizou manifestação e paralisação das avenidas que dão acesso à Universidade Federal do Piauí. O ato, segundo eles, é para que as autoridades prossigam com a investigação do crime e a universidade tome as medidas necessárias para evitar outro caso de assédio ou feminicídio na instituição. “Janaína era só uma estudante querendo se divertir”, declara Juliana Teixeira, professora de jornalismo da UFPI. “Não há nada de errado em uma menina em uma festa. Errado é uma cultura machista, misógina e feminicida”. Juliana era professora de Janaína e, desde 2021, orientava ela e outros alunos em pesquisas sobre jornalismo, inovação e igualdade. Agora a professora guarda na lembrança o palpite que a jovem, como ela, se tornaria professora um dia.
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