quinta-feira, 21 de novembro de 2024

A educação que não libertou

A primeira escola de negros do país, que originou a cidade de Floriano, desempenhou um papel controverso de criar uma mão de obra barata para a burguesia

21 de novembro de 2023

A semana do dia 20 de novembro é lembrada, principalmente pelos movimentos civis, por celebrar o Dia da Consciência Negra. Entre comemorações em todo país, nomes que representam lutas são homenageados, o orgulho é exaltado, mas também é preciso recordar de fatos lamentáveis para que a escravidão, que se apropriou de novas tecnologias, nunca volte.

O Piauí abriga eventos importantes e controversos na sua história acerca da luta por direitos humanos, principalmente por pessoas que passaram pela escravidão. Além ter a primeira mulher advogada do país, uma mulher negra, título reconhecido há pouco tempo a Esperança Garcia, o estado também esteve na vanguarda da época com a primeira escola para negros do país. No entanto, o projeto bonito que se espalhou por todo o país no século XIX, a escola agrícola que foi a pedra fundamental para a criação da cidade de Floriano, sustenta hoje a ideia de que o país sempre esteve escorado nos trabalhos forçados, sendo esta criada como ferramenta de controle social, responsável por manter uma mão de obra barata de recém libertos. Uma adaptação improvisada para manter a burguesia da época.

Na metade do Século XIX, em um país em crescimento e com a necessidade de povoamento, com a economia rural e com forte dependência do trabalho escravo, foram necessárias algumas políticas para a ocupação de territórios para a defesa da nação, ainda mais em um período marcado pela Guerra do Paraguai, o maior conflito armado internacional ocorrido na América Latina. Entre os diversos projetos do governo imperial e provincial da época, estão a criação de colônias militares e agrícolas, com vistas a atender soldados egressos dos campos de batalha, bem como disseminar núcleos nacionais em vazios demográficos, trazendo o estado para essas regiões remotas.

O professor e doutor em história, Jhony Santana, estudou à fundo a criação dessas escolas e explica que nessa época, a única grande representação do Estado Imperial no sul da Província do Piauí era exatamente a de um Comando Superior da Guarda Nacional, onde poderiam ser aproveitados os militares reformados da Guerra do Paraguai, que tinham o papel de povoar a região e manter longe os indígenas da tribo Xerentes, que foram expulsos para a província de Goiás. Apesar de muitos planos no papel, aliado a um certo desinteresse que se mesclava com a burocracia, nenhuma colônia chegou de fato a ter sucesso.

Em artigo, Jhony destaca que em 1873 surgiu mais uma vez a possibilidade de criação de um empreendimento agrícola na Província do Piauí, desta vez encabeçado pelo engenheiro agrônomo Francisco Parentes, que havia concluído os estudos na França e, devido sua proximidade com o presidente da província, conseguiu colocar em prática o projeto, que  por  meio do Decreto Imperial n° 5.392 de 10 de setembro de 1873, recebeu  autorização para  a  sua fundação, levando o nome oficial de Estabelecimento Rural de São Pedro de Alcântara. “Essa colônia tornou-se viável graças ao trabalho feito pelo engenheiro Gustavo Dodt ainda durante o governo do Presidente Augusto Olímpio Gomes de Castro em 1868. Gustavo Dodt havia sido contratado para realizar um extenso trabalho de levantamento do rio Parnaíba ao longo de seu curso, cujo propósito maior era indicar qual o melhor local para instalação de uma futura colônia agrícola, o seu trabalho prosseguiu até o ano de 1873”, explica.

Os nomes citados por Santana são conhecidos dos livros de história do Piauí, personagens importantes para o povoamento do Sul da então província. Entretanto, apesar das boas intenções, a burguesia da época, juntamente com o governo, mantinha um interesse oculto alimentado pelo capitalismo. Com o mundo em campanha pelo fim da escravidão, o Brasil foi obrigado a tomar um posicionamento progressista quanto à legislação anti-escravidão, decretando, em 1871, a Lei do Ventre Livre, que determinou que a partir daquela data (28 de setembro) as crianças nascidas eram livres. Quinze anos depois, os escravos foram libertos pela Lei Áurea, uma história que todo mundo já conhece.

Versão original da Lei do Ventre Livre, assinada pela princesa Isabel. Fonte: Arquivo do Senado

No entanto, apesar da Lei ter sido festejada pela mídia da época como um grande feito [o que de fato foi], não foram pensadas políticas públicas eficazes para inclusão no mercado desses novos cidadãos, seja com a Lei do Ventre Livre ou a Áurea. Na primeira, por exemplo, foram criadas as escolas para negros libertos, filhos de escravos, que acabaram sendo incluídos forçadamente, atendendo uma necessidade burguesa carente de mão de obra. “Não necessariamente [educar], em seus estatutos previa a partir de uma política emancipacionista a ideia de não ter trabalho escravo e dar educação. [Mas era] uma espécie de controle social”, destaca Jhon.

A primeira a ser implementada com sucesso no Brasil foi a escola do estabelecimento rural de São Pedro de Alcântara, inaugurada em 1874, que hoje teve seu espaço transformado posteriormente em terminal turístico da cidade de Floriano, localizada no cais. Apesar de ter ostentado orgulho por anos, hoje os pesquisadores já encontram controvérsias na sua fundação.

O espaço, hoje tombado, onde funcionou a escola que originou a cidade de Floriano

O professor, mestre e doutorando em educação, Jalinson Rodrigues, pesquisa sobre a relação dessas escolas com os escravos. Em seu livro “A escola do estabelecimento rural de São Pedro de Alcântara: projeto educacional no Piauí para negros libertos pela lei do ventre livre” [disponível para compra aqui], ele destaca que os jovens recém libertos eram colocados em situação precária na escola, forçados a aprender um ofício que mais tarde lhe serviriam para atender a classe burguesa. “A burguesia nunca trabalhou. Sempre foi assim. Eles precisavam manter alguém pra fazer as coisas por eles depois que a escravidão acabou”, destaca o professor.

No seu livro, ele aponta que muitos dos filhos de escravos beneficiados pela Lei do Ventre Livre acabaram sendo desviados da escola e foram parar nas fazendas nacionais para trabalho “forçados”, uma justificativa para manter os recursos do projeto, enquanto os demais foram submetidos a condições precárias, amontoados em uma sala e com um ensino duvidoso. Num documento encontrado pelo professor no Arquivo Público, elaborado em 2 de janeiro de 1876, que registra a matrícula de 53 libertos na escola, ele verificou que somente parte dos libertos constante na lista acima foram encaminhados para a escola e o restante, 37, foram para o trabalho nas fazendas de gado e lavoura.

“Se hoje temos uma educação de má qualidade no ensino público, imagine naquele tempo para quem tinha acabado de ser escravo? Não tinha um professor de verdade”, questiona Jalinson. “São dois empreendimentos: o estabelecimento rural, muito usado para povoar, e a escola do estabelecimento, que foi um álibi para encaminhar projeto de colônia agrícola, mas a escola funcionava de forma incipiente e com vários problemas como rapto de alunos, que tiveram aproveitamento sofrível”, acrescenta.

Segundo o professor, apesar da imprensa da época tratar como um projeto conciliador e de desenvolvimento, a escola não era um espaço para a educação aos moldes do que trata hoje como ensino, de se aguçar o pensamento, mas apenas de ensinar um trabalho. “Os libertos tiveram resistência. Imaginavam a escola como nova modalidade de escravidão. O próprio agrônomo Parentes usou de autoridade policial para levar as pessoas para lá”, explica.

Após a morte precoce de Agrônomo Parentes aos 37 anos, vítima de uma misteriosa febre a caminho de atendimento em Amarante, o projeto ainda seguiu por vários anos com nomeação de outros diretores, ampliação de números de funcionários e professores, mas definhou ao longo dos anos, enquanto o seu entorno recebia comerciantes e imigrantes, que foram ficando e mantendo residência para mais tarde formarem a cidade de Floriano, pela lei n. 144 de 08 de julho de 1897, que aos poucos foi apagando a tentativa infeliz de dar oportunidade aos novos cidadãos, massacrada pelo desejo de governos que se sustentavam pela mão de obra escrava. “Atrás de todo grande feito tinha a mão de escravo. Era assim nessa época. A construção de Teresina usou-se de escravos dessa fazenda”, finaliza o professor.

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

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