“Vi o chão da minha casa rachado, e depois o muro começou a estalar. Chamei a minha mãe e quando a gente voltou, viu que a rachadura no piso ficou maior. A minha mãe começou a gritar que o barranco ia deslizar. Logo depois, ele caiu”.
O desespero vivido pela família de Júnior Juvenal, homem negro morador de uma área de encostas na Vila Jerusalém, na zona sul de Teresina, é um retrato de como as cidades são construídas de maneira desigual e expõem comunidades e parcelas vulneráveis da população a riscos ainda maiores. Em junho de 2022, durante as intensas chuvas na capital, o barranco atrás da casa de Júnior cedeu, causando um deslizamento de terra que afetou a comunidade.
A situação vivida por Júnior é uma das faces do racismo ambiental, que mostra como as construções urbanas expõem comunidades periféricas, frequentemente habitadas por pessoas negras, a riscos que podem resultar em perdas de vidas. Felizmente, a família de Júnior não sofreu essa fatalidade. No entanto, mesmo sem feridos, a Defesa Civil constatou que a estrutura das residências afetadas estavam comprometidas e que havia risco de novos deslizamentos durante as chuvas. “A gente construiu um paredão para impedir que tenha mais deslizamentos, mas nenhum dos órgãos públicos ajudou a gente com doação de tijolo, de pedra, nada não”, comenta o morador da Vila Jerusalém.
O deslizamento de terra gerou impactos que ultrapassaram as perdas materiais. A segurança que se sente ao estar dentro de casa se transformou em um terror para a família de Júnior. “Como a minha irmã tem um quarto aqui atrás, ela ficava com medo. Ela não dormia direito. Porque ela tinha medo de o resto da casa ir junto de novo”, relata.
Ainda mais vulneráveis
“Racismo ambiental e climático seria algo contra animais pretos? Nuvens negras?”. Esse é um dos muitos comentários que têm circulado na internet nas últimas semanas após a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, abordar essas formas de racismo em uma postagem nas redes sociais. Na ocasião, a ministra ressaltou que a tragédia causada pelas fortes chuvas na zona norte da região metropolitana do Rio de Janeiro no início deste ano estava relacionada aos efeitos do racismo ambiental e climático. A declaração gerou discussões, críticas e piadas, principalmente por parte da oposição conservadora. Posteriormente, o Governo Federal reagiu à controvérsia e publicou um texto explicativo sobre o significado da expressão “racismo ambiental”. O comunicado, divulgado pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), abordou como a tragédia causada pelas chuvas estava associada à desigualdade na cidade em termos de acesso a serviços como saneamento básico e moradia digna.
Embora o termo não seja recente, visto que a expressão “racismo ambiental” tem sido usada desde a década de 1980, a discussão ganhou popularidade apenas recentemente. Para entender o racismo ambiental, pense na palavra “vulnerabilidade”. Pessoas socialmente vulneráveis enfrentam dificuldades extras para se protegerem dos impactos do clima e terem acesso a diversos serviços. Isso envolve especialmente aqueles que vivem em áreas propensas a deslizamentos de terra, locais sem investimentos em saneamento básico ou comunidades onde não há esforços para preservar a cobertura vegetal, investir em arborização e oferecer serviços de saúde e lazer. A vulnerabilidade dessas pessoas, especialmente em zonas periféricas, está relacionada a um ciclo que afeta predominantemente parcelas mais pobres da população. O racismo e os efeitos persistentes de uma sociedade racista continuam a dificultar que esses indivíduos tenham melhores oportunidades na vida, mantendo a pobreza e até preservando essa vulnerabilidade social ao longo das gerações.
Grupos vulneráveis, principalmente compostos por pessoas negras, indígenas, quilombolas e ribeirinhas, liderados em sua maioria por mulheres, enfrentam crises de maneira mais acentuada. Isso ocorre devido à sua concentração em periferias urbanas e rurais, enquanto regiões elitizadas, habitadas predominantemente por pessoas brancas de classe média alta, desfrutam de melhor qualidade de vida e infraestrutura. Essa disparidade reflete a influência desses grupos dominantes nas esferas política, jurídica e econômica do país.
Um estudo divulgado em janeiro deste ano mostra que entre 2000 e 2018, aproximadamente 48 mil brasileiros morreram devido aos aumentos bruscos de temperatura, superando as mortes por deslizamentos de terra. Pesquisadores de sete instituições brasileiras e portuguesas, incluindo a Universidade de Lisboa e a Fiocruz, publicaram dados inéditos na revista científica Plos One. A pesquisa destacou a vulnerabilidade de grupos específicos, como pessoas pardas, pretas e com menor escolaridade nas 14 áreas metropolitanas mais populosas do Brasil, onde vive 35% da população nacional. A falta de recursos de adaptação nessas comunidades, combinada com condições socioeconômicas precárias, as torna mais suscetíveis aos eventos climáticos extremos, evidenciando a disparidade no impacto desses eventos, que afetam de maneira desproporcional aqueles que têm menos acesso a condições adequadas de moradia, saúde e prevenção.
As discrepâncias na arborização dos bairros de Teresina também revelam uma manifestação do racismo ambiental, marcado pela distribuição desigual de espaços verdes e recursos relacionados ao meio ambiente. Comumente, áreas periféricas habitadas por comunidades racialmente marginalizadas enfrentam restrições de acesso a ambientes arborizados e seus benefícios. Bairros mais privilegiados desfrutam de maior quantidade de árvores, parques e infraestrutura verde, proporcionando vantagens como melhoria da qualidade do ar, redução das temperaturas urbanas e bem-estar geral.
Além do aumento das temperaturas, pessoas negras também estão mais vulneráveis a outros desastres ambientais. Uma pesquisa do Instituto Pólis realizada nas cidades de Belém, Recife e São Paulo revelou que as moradias lideradas por mulheres negras e de baixa renda são as mais prejudicadas por esses desastres. O instituto mapeou áreas de risco nessas capitais, mais propensas a inundações ou deslizamentos de terra, e correlacionou esses dados com o perfil socioeconômico das famílias nessas regiões.
Os resultados indicam que populações negras e de baixa renda são as mais afetadas pelos desastres ambientais nas capitais brasileiras, devido à ocupação de territórios onde serviços básicos de saneamento não são garantidos. Isso acontece porque o risco de desastres é resultado da combinação da propensão de uma área a eventos geológicos (como enchentes, deslizamentos e secas), a exposição das pessoas e da região a esses eventos, e a vulnerabilidade da população afetada. Quanto mais vulnerável for uma população, maiores serão as dificuldades enfrentadas por ela para lidar com esses desastres.
O racismo ambiental não está ligado apenas a desastres naturais, mas também a políticas públicas que ampliam as desigualdades ambientais. Essas políticas frequentemente prejudicam de forma desproporcional comunidades racialmente marginalizadas, intensificando as disparidades socioambientais.
Os dados coletados pelo Instituto Pólis revelam uma situação de vulnerabilidade entre os negros, que compõem a maioria da população no Brasil e geralmente residem em bairros periféricos ou de menor poder aquisitivo. Isso sugere que, na maioria dos casos, a cor da pele e o local de moradia exercem influência determinante na vida social e econômica dos indivíduos. Assim, o descaso infraestrutural com esses espaços é um dos aspectos que constitui o racismo ambiental. A territorialidade é um grande desafio para o acesso à saúde da população negra. A organização da cidade entre centros e periferias, impulsionada pela dinâmica do capital e da raça, resulta na concentração da população branca no centro e da população negra nas periferias. Essa divisão territorial impacta significativamente o acesso ao direito essencial e o bem-estar da população.
A infraestrutura racista
A pesquisadora piauiense Thaíla Dália observou os impactos sociais e ambientais desse tipo de racismo na periferia da cidade de Picos. Ela explica que o racismo ambiental está relacionado a políticas ou práticas que prejudicam pessoas ou comunidades com base em sua cor ou raça, seja de propósito ou não. Essas práticas podem ser reforçadas por instituições governamentais, jurídicas, econômicas, políticas e militares. “Os vulneráveis sociais sofrem com os maiores descasos socioambientais, pois são atingidos pela desaceleração da atividade econômica que agrava o nível de empobrecimento. Essas pessoas estão sempre à mercê de políticas que mais dificultam que ajudam. Isso faz com que quem reside em zonas periféricas fique exposto à escassez de serviços públicos essenciais”, comenta.
Durante a pesquisa, Thaíla analisou especificamente duas regiões da cidade Picos, os bairros Canto da Várzea e Louzinho Monteiro. Segundo ela, a diferença de investimos nessas regiões apontam a necessidade de um projeto de cidade mais democrática. “A dinâmica nos bairros são desiguais na distribuição dos serviços de equipamentos coletivos, com a concentração e centralização do capital apenas em pontos específicos da cidade. Um custo grave para a sociedade é não oferecer serviços mínimos de saúde em áreas onde predomina vulnerabilidade social”, explica.
“A necropolítica e o racismo ambiental andam juntos. É possível detectar ambos no processo de urbanização das cidades. Nem todas as pessoas que integram a sociedade conseguem desfrutar do processo de desenvolvimento. A população vulnerável vive em regiões que passam por problemas na infraestrutura básica. Eis que o planejamento de políticas públicas urbanas na maioria das cidades privilegia apenas algumas classes sociais com maior poder aquisitivo”
No Bairro Louzinho Monteiro, identificado na pesquisa de Thaíla como uma área vulnerável, além da ausência de uma linha de ônibus que conecte a região ao centro da cidade, há descaso com a saúde dos residentes da região, o que foi observado durante a campanha de vacinação contra a Covid-19. “Ficou demonstrado a falta de compromisso institucional do poder estatal sobre os locais de distribuição dos postos de vacinação. Os locais dentro do município foram justamente os bairros que apresentavam uma infraestrutura adequada. Ou seja, os bairros vulneráveis não apresentaram ponto, tampouco, a gestão pública demonstrou preocupação de oferecimento de transporte coletivo para levar aquela população aos pontos de acesso à vacina”, relata.
Além desses problemas, Thaíla destaca a ausência de outras infraestruturas para o bem estar social dos habitantes do Louzinho Monteiro. “O bairro selecionado como vulnerável foi entregue à comunidade em 2017, sendo que somente em 2024 foi entregue sua primeira Unidade Básica de Saúde. Até a presente data não possui outros equipamentos públicos como praças, escolas ou creches”, explica.
Os efeitos dos desastres naturais nas áreas urbanas também são resultado de ações sociais, não sendo apenas causados por eventos climáticos imprevisíveis. Para Thaíla, o aspecto mais crítico nas políticas públicas existentes que dificultam a redução do impacto do racismo ambiental é naturalização da necropolítica. Segundo a pesquisadora, a necropolitica é uma política institucionalizada orientada pelo Estado para exercer o poder de escolha de “quem deve viver ou quem deve morrer”, uma vez que o Estado possui o poder de gerenciamento sobre a qualidade de vida e segurança da coletividade. “A necropolítica e o racismo ambiental andam juntos. É possível detectar ambos no processo de urbanização das cidades. Nem todas as pessoas que integram a sociedade conseguem desfrutar do processo de desenvolvimento. A população vulnerável vive em regiões que passam por problemas na infraestrutura básica. Eis que o planejamento de políticas públicas urbanas na maioria das cidades privilegia apenas algumas classes sociais com maior poder aquisitivo”, relata.
Thaíla destaca a urgência repensar modelos econômicos, distribuição de recursos e ocupação do solo urbano para reduzir desigualdades e injustiças socioambientais. “Um custo grave para a sociedade é não oferecer serviços mínimos de saúde em áreas onde predomina vulnerabilidade social. É detectar as consequências devastadoras ocasionadas às famílias residentes que sofrem pela ausência de políticas públicas de saúde”, alerta.
As agendas do direito à cidade e justiça ambiental requerem não apenas o apoio das lutas sociais e das comunidades, mas também representatividade nos espaços institucionais. Ouvir pessoas que vivenciam essas vulnerabilidades e que possam advogar por essas causas é crucial para promover cidades mais justas, democráticas e ambientalmente equilibradas, combatendo as injustiças socioambientais e o racismo ambiental.
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