O Parque Rodoviário amanheceu nublado na manhã daquela quinta-feira, dia 4 de abril de 2019. Na Rua 3, o vento ameno e as nuvens fechadas significavam que o calor do segundo semestre não estava perto de chegar. O rio Poty, a menos de um quilômetro das casas, estava abundante, mas não gerava medo. A maioria dos moradores da região estava ali há mais de 30 anos e ver as águas do rio tão altas nunca foi motivo de preocupação. Por lá, na verdade, a água nunca tinha sido um problema.
O taxista Agnelo Mendes havia se mudado há 14 anos para o Parque Rodoviário. A filha, Vitória, tinha apenas um ano quando, junto à mãe, Antônia Maria, sairam de Picos, no sul do Piauí, para Teresina. A ideia era morar próximo ao bairro Morada Nova, onde a cunhada e a esposa poderiam trabalhar em um ateliê de costura localizado na zona Sul. Agnelo passou alguns meses procurando casas para comprar, até que chegou a uma residência na Rua 3. Gostou do terreno por ser espaçoso – um lote de 16 por 26 metros quadrados. Havia até uma casa no terreno, mas a família fez questão de reformar. A ideia era ter um lugar amplo para os três viverem tranquilamente. “Nossa casa era enorme, na garagem havia espaço para caber seis carros”, conta. “Era uma maravilha”, relembra Agnelo.
A Rua 3 parecia ideal para construir o sonho da família Mendes. Se um dia as chuvas torrenciais do primeiro semestre do ano viessem a ser um problema, a parte mais baixa da região é que seria um problema. Para os moradores, o rio poderia transbordar e invadir as casas – mas no Parque Rodoviário, não era esse o caso. Jamais passou pela cabeça dos que ali moravam, que o perigo estava na parte mais elevada do bairro. Na noite daquele 4 de abril, a enxurrada ficou represada dentro do terreno de um clube desativado, o Clube da Telemar, em um ponto mais elevado que as casas. Nos dias anteriores, uma lagoa com águas das chuvas se formava por conta do terreno irregular, atrás da rodoviária de Teresina. A água foi se acumulando no muro do Clube, que acabou cedendo e rompeu, rumo ao rio Poti. Tudo o que havia pela frente foi arrastado..
Minutos antes da tragédia, a família de Agnelo assistia à televisão, por volta das oito e meia da noite, quando ouviu um estouro quase camuflado pelo barulho da chuva. Não deu tempo de correr. Quando se deram conta, os três haviam sido empurrados pela correnteza da água para o último cômodo da casa. O desespero tomou conta da família, que já quase totalmente coberta pela água, começou a se despedir. “Pensei que seria nosso último momento juntos”, conta Agnelo. “A minha família ia morrer afogada”. A força da correnteza derrubou a parede do cômodo, antes que todos ficassem submersos na água barrenta. Agnelo, a esposa e a filha foram arrastados por quase 20 metros com tudo o que havia dentro da casa. Não fosse pelos galhos de árvores da rua, onde conseguiram se segurar, teriam sido levados para dentro do rio. Hoje, no lugar, só resta a única coisa da casa que a correnteza não levou: o piso de cerâmica.
Foi a pior madrugada da vida de Agnelo. Depois de se salvar, tentava desesperadamente resgatar tudo o que pudesse: roupas, móveis, documentos, pertences pessoais. Ninguém conseguia convencer o taxista a parar. Os seus últimos 14 anos de esforços tinham sido levados pela chuva. Foi preciso os bombeiros conversarem com Agnelo, prevenindo sobre o risco de descargas elétricas no lugar, para que ele finalmente saísse da lama. “Sai depois de meia-noite, desesperado e sentindo muita sede”, relatou à reportagem. Da mesma forma que chegou, inesperada, a água também foi embora. Não era mais possível distinguir o que era casa ou rua.. Tudo virou água e lamaçal.
A vida de Agnelo e a família mudou drasticamente. O carro que usava para fazer corridas de táxis precisou ser vendido devido aos danos causados pela chuva. No bairro Ininga, ele divide hoje uma kitnet com Antônia e Vitória. Tem tentado reconstruir a vida, com ajuda de doações, e trabalhando em plataformas de entrega. “A vida não tem sido fácil mesmo”, resume. Agora, ele faz parte das 33 famílias que estão esperando uma moradia digna pela Saad Sul (Superintendência das Ações Administrativas Descentralizadas). As obras começaram apenas em março deste ano e tem o prazo de 12 meses para serem entregues. Em outras palavras, ainda falta um ano para que Agnelo e sua família possam ter um novo lar.
Ao todo, 82 casas foram atingidas pela enxurrada. Uma delas foi a do casal João Félix e Maria das Chagas. O casal de idosos não tem filhos, apenas dois cães vira-lata. Estavam sozinhos na hora que o muro do Clube do Telemar rompeu. Todos os eletrodomésticos e móveis foram perdidos, menos o carro. Pela manhã, o automóvel deu um problema no motor e precisou ser levado à oficina. O veículo é uma Pampa que ocupa toda a garagem e uma parte da sala. Se estivesse em casa, no momento, teria sido arrastado dentro da moradia causando mais estrago – ou até a morte dos donos. João e Maria conseguiram ir para o fundo da casa, juntaram as últimas forças e subiram em uma goiabeira no quintal para fugir da enxurrada. Ficaram por lá, pendurados, até a chegada do Corpo de Bombeiros.
A estrutura da casa foi uma das poucas que não saiu do lugar. João atribui isso ao fato da construção ter sido feita com colunas resistentes e instalação de radier. A pintura precisou ser refeita e novos móveis foram doados ao casal, entre fogão, geladeira, ventilador e televisão. “Eu não teria condições de comprar”, conta à reportagem. “Parecia que o mundo tava se acabando, tava tudo debaixo do barro”, finaliza. O casal, que mora há 30 anos no Parque Rodoviário, agora tenta seguir em frente, na esperança de um dia o lugar voltar a ser o que era: um bairro onde o medo não faça morada. “Não tem uma noite que eu durma que não lembre do que aconteceu”, diz Maria.
Passados três anos da tragédia que, à época, fez três vítimas e mais de 30 feridos, a rua ainda reflete traços de destruição. No lugar das casas levadas pela correnteza, há mato e escombros nos terrenos. Entulhos têm obstruído as passagens de esgotos. As poças dão espaço para mosquitos e proliferação de doenças. O odor de animais mortos e comida estragada predomina no local. É difícil andar na rua sem precisar se equilibrar a cada passo.
Além das casas prometidas, a Prefeitura de Teresina se comprometeu a revitalizar o espaço. Em março deste ano, a Saad Sul disse que seria implementado um Canal do Parque Rodoviário, ciclovias, pavimentação, academia popular e anfiteatro na região. Inicialmente, a PMT informou que seriam construídas 63 casas – 19 delas, imediatamente para as famílias afetadas pela tragédia do Parque Rodoviário – As outras serão destinadas às famílias desabrigadas pelas chuvas deste ano, que estão acolhidas pelo Programa Cidade Solidária da prefeitura. Até o momento, não parece ter nenhuma expectativa de reforma ou construção na rua.
Enquanto isso, tem gente que pretende, em breve, ir embora do Parque Rodoviário. No portão da casa de Antônia Aquino, a placa de “vende-se” foi colocada desde quando a tragédia aconteceu. Ela dorme à base de ansiolíticos e faz terapia gratuita com as psicólogas da paróquia do bairro. Das três vítimas do episódio, uma delas era Maria Graça dos Reis, uma senhora de 70 anos que não conseguiu se proteger a tempo da chegada da água barrenta na Rua 3. O menino Josiel, brincava no terraço de casa, na Rua Atlântica, quando se afogou na enxurrada. A última vítima era o marido de Antônia, Raimundo Aquino. Ele tinha problemas no coração, e ficou muitas semanas intoxicado pela lama e lixo trazidos pela correnteza. Foi internado no Hospital de Urgência de Teresina (HUT) e, alguns meses após a tragédia, não resistiu. A vida dela nunca mais foi a mesma.
Ela, seu filho e o neto, querem voltar para a cidade de Pimenteiras, a 257 km de Teresina. Antônia é uma mulher negra, pequena e magra, com os cabelos brancos e olhos constantemente marejados. Usava um vestido colorido, no qual limpava as mãos constantemente após roer as unhas. O olhar triste mirava para a rua e, por alguns segundos, parecia estar distante do que acontecia ao redor. Enquanto o neto de nove anos brincava e corria com os brinquedos espalhados pelo terraço da casa, o barulho da panela de pressão vinha de dentro da residência. Parecia que ela queria tanger as lembranças, para que essa memória nunca tivesse existido. Quase não dava para ouvir a voz baixa de Antônia enquanto narrava aquele dia. Ela ficou presa no portão da casa tempo suficiente para não ser arrastada pela água. “Foi como se a mãe de Deus tivesse me segurado”, conta à reportagem.
Da porta, ela conversa com a vizinha da frente, e parecem ser bastante íntimas. Trocavam acenos e atualizavam sobre a rotina do filho e do neto. Ela desce com dificuldade, lentamente, os degraus da calçada – chuta uma garrafa pet e segue caminhando pela rua. Apontando com o dedo refaz todo o trajeto da lama naquela noite. Conta as casas que foram derrubadas, as reconstruídas por iniciativa própria e os vizinhos que foram embora e nunca mais voltaram – assim como ela deseja fazer. O cheiro dos esgotos a incomoda bastante, e ela tampa o rosto, protegendo o nariz. Passados três anos da tragédia, a falta de revitalização do lugar dá margem ao abandono. Antônia não acredita que um dia verá a rua diferente. “Morreu gente aqui, ficamos debaixo da lama, tá tudo destruído e não aparece ninguém pra fazer nada”, reflete. “Aqui é um lugar esquecido, minha filha”, declara.
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