Apenas 28 anos separam o Paulo, filósofo, patrono e defensor da educação como forma de libertação e igualdade, do Paulo, ministro da economia que, em meio à pandemia do coronavírus, sem perceber que estava sendo gravado, expressou há poucos meses que o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) é um “desastre” e que “levou até filho de porteiro que tirou zero para faculdade”. O relato aconteceu durante a reunião do Conselho de Saúde Complementar. Mal colocada, a frase tentava explicar a facilidade para fraudar o sistema de financiamento.
O FIES é um fundo que financia as despesas mensais de estudantes da graduação com juros mais baixos, em instituições de ensino superior privadas, até a conclusão do curso. Para conseguir o benefício, o estudante deve preencher requisitos como: possuir renda familiar de até três salários mínimos e ter a média no Ensino Nacional do Ensino Médio (ENEM) igual ou superior a 450 pontos, além de não ter zerado a redação. Os critérios para adequação ao benefício, por si só, contradizem a afirmação feita pelo ministro.
Nos últimos anos, no entanto, o FIES tem sido alvo de investigações por fraudes e irregularidades. O caso mais recente, noticiado pelo Ministério da Educação (MEC), investiga o repasse de recursos para faculdade com dívidas tributárias.
Para João Benvindo, professor da UFPI e analista de discursos, a colocação do ministro reflete um incômodo direcionado às classes e não ao problema real. “Se o ministro toma conhecimento de que alguém burlou as regras, deve imediatamente fazer a denúncia aos órgãos competentes, sob pena de prevaricação”, afirmou. “Ainda que isso tenha realmente ocorrido, o ideal seria corrigir o problema e punir os responsáveis, não extinguir o FIES que, nestes mais de 20 anos, já beneficiou mais de 3 milhões de brasileiros”, diz o docente, relembrando ainda que outros membros do atual governo já externaram pensamentos similares ao do ministro.
No início de 2019, o ex-ministro da educação Ricardo Vélez declarou que a universidade não deveria ser para todos, mas “somente para algumas pessoas”. O próprio presidente Jair Bolsonaro declarou, em agosto de 2018, que, no Brasil, “filho de pobre tem ‘tara’ por diploma do ensino superior”. Discursos que para o professor Benvindo “reproduzem uma formação típica da extrema direita”. “Aos ricos, o ensino superior e o acesso ao conhecimento; aos pobres, um curso técnico e acesso precoce ao mercado de trabalho, para servir como peça de reposição.”, conclui.
“Essa situação é triste, pois eles querem que os pobres fiquem em áreas de serviço”
A análise sobre quem deve ocupar o ensino superior também é compartilhada por Jairo Moura que, na busca por mais oportunidades e uma melhor remuneração em 2007, tentou entrar no ensino superior através do Programa Seriado de Ingresso na Universidade (PSIU). O jovem conseguiu financiamento parcial pelo FIES para matricular-se no Centro de Ensino Unificado de Teresina (CEUT), onde quatro anos depois se formou como publicitário.
Na época, apesar de trabalhar como designer gráfico e receber apoio dos pais, a renda não era suficiente para cobrir os gastos relativos à mensalidade integral de R$580,00 (quinhentos e oitenta reais), além dos gastos com locomoção e material de estudo. “Acredito que, se não fosse pelo FIES, não tinha conseguido me formar. Quando eu e minha família soubemos que tinha conseguido o benefício comemoramos muito, porque foi um alívio para todos”, explicou.
Jairo, junto aos primos mais velhos e o irmão, faz parte da primeira geração da família com ensino superior que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), representa apenas 19,7% da população entre 25 e 34 anos. Uma estimativa baixa quando observado o panorama médio mundial que possui uma margem estatística de 36%, de acordo com a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCED).
Em 2018, ao fazer o mesmo cruzamento de dados em relação à prospecção de carreira e remuneração, o IBGE apontou que o crescimento salarial nacional das pessoas diplomadas no país é de até 2,5 vezes maior, enquanto a média dos outros países estava em torno de 1,6 vezes.
Discrepância que Jairo presencia cotidianamente no mercado de trabalho. “Tenho alguns amigos que não têm o curso superior e trabalham na mesma área que eu, mas ficam limitados a serem artes finalistas”, comenta. Depois de uma formação você amplia a sua visão e possibilidades, pois há um leque de oportunidades dentro da publicidade”, explica. “E, nas seleções, as pessoas sempre priorizaram quem fez o curso superior”, destaca o publicitário.
“É graças ao meu trabalho que pago minha faculdade”
Em dupla jornada para conciliar estudos e trabalho se encontra Thiago Barbosa, 33 anos. Entre as 7 da manhã e as 7 da noite ele trabalha como coveiro no cemitério Jardim da Ressurreição e, à noite, cursa Engenharia Civil com auxílio do FIES na Faculdade Santo Agostinho (FSA). Thiago sempre quis ser engenheiro por ter facilidade com desenho e ver, quando criança, as atividades que o avô desempenhava como pedreiro em canteiros de obras.
Entretanto, logo após completar o colegial – como era chamado, na época, o ensino médio – ele precisou entrar no mercado de trabalho para auxiliar nas despesas da casa. Mesmo após 10 anos afastado das salas de aulas, ele tem procurado estabilidade financeira para a família através da formação superior. “Tenho achado tudo super interessante. É difícil, mas daqui a três, cinco anos eu pretendo me formar”, avisa. “Será muita luta porque a vida do trabalhador da família de baixa renda é difícil, mas se a gente coloca dificuldade em tudo a gente não vai pra frente”, segue falando. “Uma forma que vi para crescer na vida desde a minha infância é através do estudo, e é este caminho que eu estou querendo seguir agora”, e complementa: “É graças ao meu trabalho que vou colher os frutos lá na frente”. Thiago se considera um aluno esforçado e aponta como um benefício a seu favor a facilidade em poder pesquisar e revisar o que esqueceu através de aulas extras na internet.
Para ele, a principal dificuldade não está relacionada aos conteúdos das disciplinas, mas à rotina cansativa de trabalho que acontece em meio ao sol e com aumento na carga horário por conta do grande número de enterros na cidade, em decorrência da Covid-19. Ainda assim, a vontade de realizar o sonho de sua avó, Josefá Maria, que trabalhou anos até se aposentar como lavadeira, de vê-lo na colação de grau é combustível para banir o sono e o cansaço ao fim do dia.
“Acredito que a educação reflete positivamente na sociedade”
Do outro lado do mundo, na França, uma conterrânea de Thiago, também formada pelo FIES, colhe os frutos do ensino superior. Gláucia Nielle nasceu e morou na cidade piauiense de Cristino Castro até os 12 anos. Mudou-se para o Pará onde fez a graduação e se formou em 2013. Hoje é advogada e mestra em mediação e trabalha no órgão de seguridade social da França. No percurso para graduar-se, no entanto, a renda familiar diminuiu e o pagamento das mensalidades, na metade do seu curso de Direito, ficou comprometido – o FIES foi o recurso encontrado para garantir que ela conclui-se os estudos.
Ela conta que não sentia discriminação por ser bolsista, mas que o nível de vida e o acesso a recursos eram diferentes e, por esses fatores desiguais, defende a permanência de recursos que oportunizem o acesso ao ensino superior para a transformação social. “Eu acredito que a educação é um vetor de mudança para a melhoria da vida pessoal e profissional e isso reflete positivamente na sociedade”. diz, destacando que as bolsas de ensino oportunizam abertura cultural e realização de sonhos que, por vezes, são negados à maioria dos brasileiros.
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