“A política não se situa no polo oposto ao de nossa vida. Desejemos ou não, ela permeia nossa existência, insinuando-se nos espaços mais íntimos”. A frase mencionada faz parte do livro “Mulheres, Cultura e Política”, publicado em 1989 por Angela Davis. O livro aborda como as questões políticas e econômicas influenciam a vida pessoal das mulheres negras. Ao longo dos anos, as mulheres foram conquistando mais espaços e trazendo a luta política e o feminismo para o centro do debate, evidenciando que a violência de gênero, por sua vez, é um tema que precisa ser levado aos holofotes.
O aumento no número de denúncias de violência de gênero pode ser entendido como um resultado do avanço dessas lutas e das políticas públicas que têm buscado conscientizar a sociedade sobre esse problema e fornecer suporte às vítimas. Não se trata de “mimimi”, mas sim de um reconhecimento de que a violência de gênero é uma questão política que afeta profundamente a vida das mulheres, e que as políticas públicas desempenham um papel crucial em abordar esse problema.
A pesquisadora e gerente de enfrentamento à violência contra as mulheres da SEMPI, Malena Alves, fala que violência contra a mulher sempre existiu, mas ao longo do tempo, a sociedade passou a reconhecê-la como um problema público que precisa ser discutido e enfrentado. Ela relata que as normas e valores que naturalizaram a subjugação feminina, perpetuadas pela família, igreja, escola e mídia, foram questionadas e desafiadas por mulheres determinadas a mudar a narrativa de suas vidas. “As mulheres só conseguiram o espaço que tem hoje por conta dos movimentos feministas que reivindicaram lá atrás que a sociedade nos visse como seres humanos capazes de produzir, não só de reproduzir”, conta.
As políticas públicas desempenham um papel fundamental na proteção das mulheres contra a violência e na quebra do ciclo de abuso. Essas políticas representam uma rede de apoio formal que oferece diferentes formas de assistência, como Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, centros de referência especializados com serviços psicossociais, projetos sociais que fornecem abrigo e oportunidades de capacitação profissional. Malena conta que as vítimas se sentem mais encorajadas a buscar ajuda e sair de situações abusivas quando percebem que tem esse suporte para apoiá-las. Para isso acontecer, é necessário que as políticas públicas levem informação e conscientização a toda a sociedade. “O que costumo dizer quando as pessoas ficam “chocadas” de como a violência e as denúncias aumentam é: “que bom que elas estão denunciando”. Porque isso quer dizer que elas estão procurando ajuda, estão se conscientizando que ninguém pode maltratá-las, as denúncias são os pedidos de socorro pelas suas vidas”, ressalta.
A importância da rede de apoio é vital para acolher e contribuir com o encerramento dos ciclos de violência de gênero. Essa rede pode incluir amigos, familiares, profissionais de saúde, terapeutas, grupos de apoio e organizações especializadas. Ela fornece um espaço seguro para compartilhar experiências, orientação para buscar ajuda e recursos para enfrentar a violência. No entanto, Malena fala que muitas vezes as pessoas próximas podem agir de forma oposta, contribuindo para perpertuar essas violências. “A falta da Rede de Apoio muitas vezes começa pela família que, por conta da criação machista e preceitos religiosos, não apoia e acolhe aquela mulher que decide sair do ciclo de violência, com a crença de que “casamento é pra sempre”, “é só um pouco de paciência, ele muda”, “homem é assim mesmo”, discursos ditos e não ditos que fragilizam a potência da mulher”, alerta.
A compreensão da violência de gênero requer a consideração de sua diversidade. Cada forma de violência é única, e as mulheres a experimentam de maneiras variadas devido a fatores como contexto cultural, racial, relações pessoais e histórico individual. Não se restringe apenas a maridos ou namorados: pais, avós, irmãos, tios e amigos também podem ser agressores. Reconhecer essa ampla gama de experiências é essencial para abordar eficazmente a violência de gênero e fornecer o apoio necessário.
Toda a estrutura da sociedade se movimenta com elas
O racismo acrescenta uma dimensão à violência enfrentada pelas mulheres não brancas, gerando uma combinação de violência de gênero e racismo. De acordo com o Mapa da Violência de Gênero, negras representam 82% das mulheres vítimas de estupros no Piauí entre 2014 e 2017. A pesquisadora, ativista e professora da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Iraneide Silva, relata que as mulheres pretas vivenciam a violência de gênero de maneira distinta e complexa devido à interseção de múltiplas formas de opressão. Ela ressalta a importância de reconhecer como essas diferentes formas de opressão e violência são enfrentadas por certos grupos de mulheres, entendendo que elas se somam e se entrelaçam, aumentando a complexidade das dores que essas mulheres vivenciam. “Para além da questão de gênero, as mulheres pretas estão inseridas nos grandes bolsões de miséria, de pobreza, de desigualdade; ou seja, na cadeia social, na esfera social, elas estão em último lugar em tudo, em acesso ao mercado de trabalho, em acesso ao sistema de saúde, em acesso à educação de qualidade, enfim. E, sobretudo, ela está mais exposta a todo tipo de violência por conta desses fatores”, destaca.
Um levantamento do Elas Vivas – Laboratório de Estudos da Violência Contra a Mulher, mostra que mulheres de 25 a 44 anos são as principais vítimas de feminicídio no estado. Em relação a questão racial, mulheres pretas representam 83% das vítimas de assassinatos por questões de gênero no Piauí. Essas mulheres, que enfrentam situação de maior desigualdade social e econômica ocasionada por uma estrutura de gênero e racismo, muitas vezes acabam presas em ambientes onde a violência ocorre. “Por estarem nesse patamar de maior desigualdade, elas também ficam reféns da própria casa, da própria relação, da própria família, do próprio espaço onde a violência é gerada. E, muitas vezes, elas ainda experienciam essa violência de modo tão contínuo e durante tantos anos de suas vidas que elas não conseguem nem perceber aquele ato de violência”, ressalta Iraneide.
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Para a maior eficácia de políticas públicas que busquem proteger todas as mulheres, a pesquisadora explica que é necessário entender que esses tipos de violências ocorrem sobre diferentes tipos de mulheres, e que é necessário considerar essas particularidades. “Pensar no combate a essas violências é pensar em políticas públicas que reconheçam esses corpos e suas individualidades. Se não for pensado e visto a partir dos sujeitos e das suas experiências, essas políticas não serão totalmente eficazes e não darão conta desses aspectos; e as mulheres negras continuam sofrendo um pouco mais o processo de violência”, diz.
Iraneide também ressalta a necessidade reconhecer que existem formas de violência, como as psicológicas e patrimoniais, que não deixam marcas visíveis, mas têm um impacto profundo e prejudicial na vida das mulheres. Essas violências, que também se associam a violências raciais, marcam questões históricas ainda pouco discutidas, pensadas ou acolhidas. “Quando chegamos aos espaços públicos, somos estereotipadas, nossos corpos são colocados como objeto de desejo, objeto sexual, não como uma mulher. Esse tratamento desigual, esse olhar naturalizado de que nós, mulheres negras, somos fortes, podemos pegar peso, que aguentamos mais dor, isso é uma violência histórica e bastante arraigada na sociedade brasileira”, relata.
Violências que se estendem
A violência contra as mulheres muitas vezes se estende para além da sua vida, deixando um rastro de impunidade e injustiça mesmo após suas mortes. Nos julgamentos dos agressores, é comum ver a culpabilização das vítimas, a minimização dos atos de violência e, em alguns casos, a absolvição dos agressores. Isso não apenas perpetua a dor das famílias das vítimas, mas também envia uma mensagem perigosa de que a sociedade não leva a sério a violência de gênero. A falta de responsabilização adequada dos agressores não apenas falha em garantir justiça para as vítimas, mas também cria um ambiente em que a violência de gênero pode continuar a prosperar impunemente.
Descasos e erros como os cometidos no julgamento de Thiago Mayson da Silva Barbosa, acusado de abusar e assassinar a estudante Janaína Bezerra. O julgamento foi suspenso devido a um equívoco na convocação dos jurados por parte da Universidade Federal do Piauí. A UFPI admitiu o erro de encaminhamento de convocações para os servidores que deveriam compor o júri popular. Como resultado, o julgamento, originalmente marcado para o dia 17 de agosto de 2023, foi adiado para o dia 1º de setembro de 2023. A suspensão do julgamento gerou protestos por parte da família da vítima e entidades em frente ao Fórum.
Para mudar, resistir e transformar radicalmente o mundo
“Você tem que agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E você tem que fazer isso o tempo todo”, diz Angela Davis. Essa missão deve envolver o maior número possível de pessoas capazes de contribuir para essas transformações. A implementação de políticas públicas é um dos caminhos para alcançar esse objetivo. A secretária de Estado das Mulheres, Zenaide Lustosa, explica que o enfrentamento à violência de gênero também começa pela autonomia econômica e financeira das mulheres. Esse é um dos caminhos para libertá-las dessas amarras que as tornam mais vulneráveis. “Percebemos que muitas mulheres, além de não se reconhecerem dentro desse ciclo de violência, têm dificuldade em sair dele devido à falta de autonomia e oportunidades de trabalho e renda. Portanto, desenvolvemos o projeto “Elas Empreendem” para capacitar mulheres na área de negócios e fortalecer sua autonomia”, fala.
O projeto qualifica mulheres para o mercado de trabalho, sobretudo como empreendedoras, fornecendo oficinas temáticas sobre estratégias de negócios, atendimento ao cliente, vendas via Instagram e WhatsApp, gestão financeira, elaboração de planos de negócios, técnicas de vendas e criação de lojas virtuais. Além de buscar a prevenção, Zenaide conta que a SEMPI possui iniciativas para acolher e dar abrigo às mulheres que sofrem violências de gênero. “Temos uma central de acolhimento que atende mulheres de todo o estado do Piauí. Essas mulheres, em situação de ameaça, recebem abrigo provisório por até quinze dias, enquanto trabalhamos para resolver sua situação. Esse projeto é chamado “Acolhe” e é realizado em parceria com o Instituto Avon”, diz.
Não é apenas a capital que está na rota desses projetos. O projeto “Ônibus Lilás” oferece orientação e atendimento gratuito sobre prevenção da violência contra a mulher, visando especialmente aquelas que residem em áreas rurais, comunidades quilombolas e indígenas – que sofrem com limitado acesso à internet e serviços especializados. A iniciativa é resultado da parceria entre a Coordenadoria Estadual de Políticas para as Mulheres (CEMP-PI) e a SMPM, sendo que o município assume a programação e execução das atividades. “O projeto foi criado durante o governo da Presidenta Dilma em resposta às demandas das Margaridas, buscando fortalecer as políticas nas escolas rurais. Ele é direcionado às comunidades rurais, onde as mulheres têm mais dificuldade em denunciar e acessar políticas públicas. Durante este mês de agosto, já visitamos mais de dez municípios, realizando uma rota semanal para dialogar com as mulheres e levar serviços às comunidades rurais”, explica.
Não se cale!
No Piauí, várias medidas estão em vigor para apoiar mulheres vítimas de violência doméstica. Para denúncias ou assistência, estes são os contatos importantes:
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- “Ei mermã, não se cale”: 0800 000 1673
- Através do WhatsApp, você receberá informações sobre a delegacia mais próxima e onde encontrar uma rede de apoio para aguardar ajuda em casos de violência.
- Ligue 190 (Urgência)
- O número de telefone da Polícia Militar para situações de emergência e socorro rápido. Disponível em todo o território nacional e, no Piauí, também por aplicativo. Os policiais fazem uma avaliação rápida das ligações para priorizar intervenções imediatas.
- Centro de Referência Francisca Trindade: 86 99433-0809
- Patrulha Maria da Penha: 86 99414-8857
- Delegacia de Flagrante de Gênero: 86 3216-5038 ou 86 3216-5042
- APP SALVE MARIA
- O aplicativo “Salve Maria” é uma ferramenta gratuita para combater a violência contra as mulheres. Ele permite que vítimas ou qualquer pessoa acionem a Polícia Militar pressionando o “Botão do Pânico” ou relatem incidentes de agressão (física, verbal, psicológica) através do botão de denúncias. O aplicativo também possibilita incluir fotos, vídeos e fornecer detalhes sobre o caso.
- “Ei mermã, não se cale”: 0800 000 1673
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