O funcionário do caixa do supermercado pergunta para a cliente se quer CPF na nota. A senhora saca os trocados da bolsa, olha desconfiada e responde constrangida que não. Paga a conta e vai embora cabisbaixa. Ela usa a conta do banco emprestada da sobrinha para receber dinheiro, sempre sacado logo em seguida, não recebe benefícios sociais e atendimento médico é sempre um grande martírio. Ela é uma personagem fictícia, talvez distante da bolha de boa parte dos piauienses, mas representa uma da taxa dos 5,4% de piauienses que não possuem documentos e estão no quadro de sub-registros.
De acordo com os dados do último Censo Demográfico do IBGE, o Piauí apresentou crescimento da sua população, passando de 3,195 milhões (2014) para 3.269.200 milhões de habitantes em 2022. Com um dos maiores territórios do nordeste, o estado passou a ter a densidade demográfica de 12,99 habitantes por quilômetro quadrado e uma média de ocupação de domicílios de 3,5 moradores. No entanto, nesta casa piauiense existe um morador escondido em um dos cômodos, à sombra, invisibilizado e fora das estatísticas por não ter documentos e acesso à cidadania plena.
Essa pessoa integra os casos de subnotificação do IBGE, um mecanismo novo e experimental que cruza dados de nascimentos e óbitos, com base no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos – SINASC- e no Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM-, do Ministério da Saúde, para traçar uma média de quantas pessoas não possuem registros de nascimento e, consequentemente, CPF e RG. Ou seja, não possuem a cidadania e não são reconhecidas como cidadãos para o Estado. De acordo com o relatório do órgão, a estimativa é que existam pouco mais de 45 mil pessoas em todo o Piauí sem documentos, o que representa 5,24% dessa população destacada acima.
Os dados colocam o Piauí como o segundo estado com maior número de casos no Nordeste, perdendo apenas para o Maranhão, que conta com 5,36%, da população, representando cerca de 107 mil pessoas. O Nordeste, no geral, possui cerca de 777 mil pessoas sem acesso aos serviços básicos pela falta de documentação.
A defensora pública Patrícia Monte lidera a Diretoria de Primeiro Atendimento da Defensoria Pública do Estado do Piauí e lida diariamente com casos de pessoas, principalmente idosos, que tiveram o acesso à cidadania somente agora. Ela explica que, por nunca terem tirado a documentação básica, viviam às sombras do estado. “A falta da documentação civil básica implica em invisibilidade, pois eles não aparecem em dados para a construção de políticas públicas. Ele sofre. Não é só a pessoa que fica sem votar, sem estudar, sem trabalho formal. Até para morrer é difícil, porque será enterrado sem nome e isso é um constrangimento imenso”, destaca.
A dificuldade para dar entrada na documentação é bem semelhante em todo o país e descrita na apresentação dos dados do IBGE, que traz como principais fatores as vulnerabilidades sociais e econômicas, os gastos com transporte, e as grandes distâncias entre as comunidades locais e os Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais. Já a defensora pública Patrícia Monte acrescenta ainda que o perfil dessas pessoas também é parecido e que, em muitos casos, elas vivem em situação de risco. “Perde toda a sociedade, pois são pessoas que vivem em condição de vulnerabilidade. Em muitos casos, nunca tiveram inclusão social e acabam na criminalidade”, explica.
No Piauí, cidades como Pavussu, apresentaram um percentual bastante elevado e que pode ativar um alerta para o estado de vulnerabilidade de cerca de 55,60%, de acordo com os números de sub-registros do IBGE. Fundada em 1989, no Censo 2022 a cidade apresentou uma população de 3.269.200 com um aumento de 4,81% comparado ao Censo anterior.
Já a capital, que hoje conta com a maior população do Piauí, com 866 mil habitantes, a 19ª cidade mais populosa do Brasil, não fica de fora com relação aos números de sub-registro. A cidade apresenta uma estimativa de 12.216 pessoas sem documentos, segundo os dados do IBGE.
Diante desses problemas, diversos órgãos têm unido esforços para garantir o acesso à cidadania de piauienses sem documentos. No entanto, mesmo com as campanhas constantes, os números ainda preocupam e o trabalho de conscientização ainda é fundamental. “Nós na defensoria fazemos inúmeras ações de suprimento de terceiros civil. Faço palestras para as assistentes sociais, tento articular a melhoria de serviços, mas isso também depende muito da justiça e cartórios. Orientação e educação das pessoas também é importante porque o sub-registro está associado a pobre”, explica.
O Tribunal de Justiça do Piauí, responsável pelos cartórios, vem fazendo campanhas para dar acesso à cidadania a milhares de piauienses. A Corregedoria do Foro Extrajudicial mantém, há 20 anos, a Justiça Itinerante, que leva diversos serviços de garantia de direitos e cidadania à população do Estado. Entre os serviços, está a expedição de 1ª e 2ª vias de registro civil de nascimento. As ações são feitas em parceria com a Secretaria de Segurança, INSS, Receita Federal, Defensoria Pública e Fundação Municipal de Saúde de Teresina.
Além disso, o TJ realiza ainda outras ações como a Semana Nacional do Registro Civil (Registre-se), que já aconteceu em Teresina e está com data para ser realizada em Picos (agosto) e em Parnaíba (setembro). A ação terá duração de uma semana em cada um desses municípios e abrangerá também as cidades circunvizinhas.
Outro destaque é o Capilarizar, um projeto modelo em parceria entre a Corregedoria do Foro Extrajudicial do Piauí, as serventias extrajudiciais de Piracuruca e a Prefeitura de São José do Divino. Nele, servidores dos cartórios de Piracuruca se deslocam uma vez por semana a São José do Divino, para sala cedida pela Prefeitura, com a finalidade de realizar os serviços cartorários e resolver as demandas da população, reduzindo a necessidade de deslocamento das pessoas até a sede da serventia extrajudicial. A intenção é replicá-lo em todo o Piauí.
A Secretaria de Segurança do Piauí, órgão expedidor do Registro Geral, também participa das ações em diversas cidades. O serviço, que antes era pago, passou a ser gratuito depois de uma portaria assinada em março de 2023, garantindo a emissão da nova Carteira de Identidade Nacional para milhares de pessoas. Somente em 2022, foram mais de 200 mil documentos emitidos nas cidades de Bom Jesus, Floriano, Oeiras, Parnaíba, Picos, São Raimundo Nonato e Teresina, que são as que possuem o equipamento para impressão.
A gerente de ação social do Instituto de Identificação Digital Félix Pacheco, Lívia Queiroz, explica que uma das principais ações têm como foco a aproximação do órgão com a comunidade tendo em vista as dificuldades das pessoas em chegarem ao instituto. “Realizamos mutirões indo para comunidades, em parceria com associações, com coletivo de moradores. Temos ainda um setor de visitas sociais com ações na casa das pessoas, em hospitais para pessoas enfermas que não conseguem acessar o SUS por causa de documentos desatualizados”, explica.
Numa das ações, no Residencial Camboa, na zona rural de Teresina, a dona Maria Zélia conseguiu, finalmente, tirar os documentos, podendo ter acesso à cidadania: “Tem muitas dificuldades (pra tirar o documento), ônibus e dinheiro pra gente tirar. A gente só tem a agradecer porque é muito importante. É muito difícil pra gente”, comemora.
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