A Constituição Federal de 1988 assegura saúde, educação, segurança, moradia, trabalho, lazer e alimentação. Todas essas categorias fazem parte dos direitos sociais, previstos na lei fundamental e suprema do país, como deveres do Estado. No entanto, em um país com dimensões continentais como o Brasil, a partir da década de 70, como alternativa para driblar a escassez de recursos públicos de estados, municípios e união para a realização de obras com grandes estruturas, surgem as PPP’s: parcerias público-privadas.
Em síntese, as PPP’s são contratos de prestação de serviço de médio e longo prazo firmados entre a administração pública e empresas privadas. São contratos administrativos de concessão, que podem acontecer tanto na modalidade administrativa como patrocinada. As administrativas são aquelas em que o pagamento aos prestadores de serviço vem unicamente do dinheiro público – nas patrocinadas, uma parcela é paga com recurso público e a outra pela arrecadação com usuários. Diferentemente das privatizações – que tornam-se inteiramente gerenciadas pelo parceiro privado – nas PPP’s os projetos continuam sendo do estado, ainda que operados pelo setor privado.
A Lei 11.079/2004 determina algumas condições específicas para que uma PPP possa ser firmada. Entre elas, a duração da prestação do serviço: entre 5 e 35 anos, incluindo eventuais prorrogações. Além disso, os valores investidos não podem ser inferiores a 20 milhões, mas não há teto máximo de custo. Por fim, os serviços não devem ser celebrados em contratos cujos únicos objetivos sejam fornecimento de mão de obra, fornecimento e instalação de equipamentos ou execução de obras públicas.
Apenas em 2019, o Brasil superou o valor de R$3 bilhões de reais, ficando evidente a crescente demanda por essas parcerias e a necessidade de fomentar mais discussões sobre essa modalidade de contrato, segundo a pesquisa realizada pelo Radar PPP. Atualmente, o Piauí é o estado com maior número de projetos tocados pelo governo estadual com apoio da iniciativa privada em todo o país, apontou o levantamento feito pelo site G1. Ao todo, são 22 contratos, que correspondem a 11 projetos de Parcerias-Público-Privadas no estado, ficando acima do Ceará (14), Minas Gerais (13) e São Paulo – que possui apenas 4 iniciativas.
Uma das PPP’s realizada há quatro anos no Piauí foi reconhecida pela ONU – Organização das Nações Unidas – como um dos cinco melhores projetos do mundo. A Nova Ceasa foi o único projeto do Brasil a ser selecionado no 5º Fórum Internacional PPP da Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa (Unece) 2021. A relevância social é uma característica observada pelo prêmio, que destacou a iniciativa como uma conquista do país no combate à fome.
O projeto social destaque na Nova Ceasa (novo nome para a central estadual de abastecimento) foi o Banco de Alimentos, criado em 2018, que capta, trata e distribui alimentos do local para mais de sete mil pessoas em situação de vulnerabilidade. Desde a criação do banco, 550 toneladas de alimentos foram arrecadadas entre os permissionários do entreposto. De acordo com o 5º Fórum Internacional de PPP da ONU – responsável pelo concurso -, a iniciativa valorizava os negócios locais sem esquecer o lado social.
Antônia Lenice, permissionária da Ceasa ha 25 anos, afirma que a série de mudanças feitas após a parceria público-privada mudou a realidade do trabalho no local. “A segurança aumentou, a limpeza também, realmente houve mudanças positivas”, diz.
Para Lenice, outro ponto positivo veio durante a pandemia. Com as medidas de restrições tomadas para impedir a proliferação do coronavírus, o lugar deixou de receber visitantes – mas o projeto Piauí Conectado botou ponto de acesso público (PAP) no entreposto, com rede wi-fi liberada para todos os permissionários. Muitos feirantes adotaram, então, o sistema de entregas por delivery. “Tem dias que recebo 20, 30 pedidos e a internet daqui me ajuda”.
PPP é o presente
O programa de PPP’s no Piauí teve início em 2015, com a criação da Superintendência De Parcerias E Concessões (Suparc). A época, o plano era estruturar e capacitar equipes para a elaboração de projetos a serem desenvolvidos no Piauí – os primeiros seriam a Nova Ceasa e os terminais rodoviários de Teresina, Picos e Floriano, além do projeto Piauí Conectado, para implantar rede de fibra ótica e levar internet para mais de 100 municípios do estado.
Para Viviane Moura, superintendente de Parcerias e Concessões do Estado, os principais benefícios das PPP’s giram em torno da modernização, reforma e melhoria na prestação dos serviços. Além disso, ela aponta como uma vantagem a economia dos recursos públicos. “A Nova Ceasa gastava em torno de 4 milhões por ano dos cofres públicos, atualmente, não há mais nenhuma despesa”, exemplifica.
No Piauí, a Suparc age como um regulador, que fiscaliza e monitora todos os contratos. Viviane reforça que esse programa é essencial para executar as PPP’s como alternativa encontrada entre a colaboração pública e privada – e não como uma forma de eliminar a responsabilidade do Estado. “São colaborações que já deviam estar funcionando há um tempo, principalmente porque alguns projetos têm mais afinidade com a atuação privada do que o governo”, frisa.
O principal objetivo das PPP’s é realizar uma mudança de paradigma com a tecnologia e inovação dentro dos serviços ofertados para a sociedade – fato que, para a superintendente, seria inviável apenas com os recursos públicos, uma vez que os estados trabalham com receitas e orçamentos limitados. Com as parcerias, o setor privado assume o lugar do governo com as despesas e a administração, tomando a obrigação de serem eficientes.
De acordo com Viviane, a tendência é que a União precise cada vez mais de apoio para diminuir um déficit de infraestrutura. Com a pandemia da Covid-19, a crise econômica se evidenciou e estados como São Paulo, Minas Gerais, Bahia Sergipe, Alagoas e Maranhão estão apostando cada vez mais nesse modelo. “No Piauí, as propostas cresceram por estarem calçadas em inovação”, descreve a superintendente ao evidenciar a projeção estadual e nacional. “Isso não é mais o futuro, é o presente”, frisa Viviane, que também preside a Rede Nacional de PPP’s.
PPP pra quem?
Para o professor coordenador do Observatório Fundo Público, doutor em políticas públicas, Osmar Gomes, as PPP’s representam uma forma do Estado transferir a responsabilidade de serviços públicos para a iniciativa privada. O professor aponta que um dos cuidados necessários para o contrato de uma PPP é que haja mais transparência quanto a aplicação de recursos firmados e que haja evidências de que o projeto vai atender ao interesse público – tanto em acesso quanto em satisfação da população.
Osmar destaca que uma PPP segue a linha do setor privado e que tem como objetivo o lucro, enquanto o setor público objetiva atender as demandas da sociedade – e esses interesses, muitas vezes podem divergir. Desse modo, se forem firmadas cada vez mais parcerias privadas dentro de um estado, haverá cada vez menos serviço público disponível para população.
Sem acompanhamento rígido de avaliação e monitoramento das PPP’s, Osmar aponta que o impacto pode ser extremamente negativo, uma vez que a redução dos serviços públicos tem implicação direta no mercado de trabalho local. Ao contrário da ideia de desenvolvimento, discurso comumente utilizado na defesa dos projetos, o professor aponta que as parcerias público-privadas geram cada vez uma “oligarquização do estado do Piauí”, aumentando a desigualdade de renda e econômica.
Segundo ele, quanto mais PPPs existirem, menos serviços públicos básicos à população se sustentarão – como saúde, educação e seguridade social. “O governo vai criar apenas políticas compensatórias para as minorias enquanto a elite dominante, financiada pelo governo, recebe dinheiro através das parcerias”, declara.
As PPP’s também provocariam o fenômeno conhecido como precarização do trabalho. Isso porque, as instituições extinguiriam os concursos e os trabalhadores passariam a ser contratados pela iniciativa privada. Com isso, o quadro de funcionários seria reduzido para dar espaço à tecnologia, prevê o pesquisador. “Isso gera desemprego e sobrecarga do trabalhador, uma vez que o objetivo das empresas é aumentar o lucro e diminuir despesas”, pontua.
Para citar um exemplo desastroso, Osmar aponta as gerências de hospitais públicos no Rio de Janeiro, atribuídas às organizações sociais em contratos de concessão. No ano passado, um levantamento mostrou que o governo do estado pagou quase 8 bilhões de reais para as OS’s desde 2016 – o serviço, no entanto, é apontado como caro e ineficiente, e está sob suspeita de irregularidades nos contratos e esquemas de fraude e corrupção. Das eficiência privada ao setor público parece cada vez mais um objetivo bem distante. “Mesmo assim, essas organizações continuam recebendo milhões de reais transferidos pelo orçamento público”, pontua Gomes.
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