quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Dentro do tempo de si

Enquanto a população brasileira envelhece rapidamente em uma sociedade etarista, os maiores de 60 anos mostram que a maturidade é a chance de se reinventar e resistir ao culto à juventude eterna

02 de outubro de 2023

Você acha deselegante perguntar a idade de alguém? Essa é uma questão sensível para parte da população, que a considera o tópico “idade” invasivo ou constrangedor. Mas se perguntar o nome de alguém não é indelicadeza, por que perguntar a idade seria? A dificuldade de lidar com essa questão está relacionada ao tipo de sociedade em que vivemos, onde o ideal máximo da beleza é a juventude. Uma sociedade marcada pela resistência ao processo mais natural da vida: o envelhecimento. Para essas pessoas, a idade lembra o fim e é tratada como uma espécie de defeito ou desvantagem se você tem acumulado muitos anos na sua bagagem. No entanto, a única alternativa para evitar esse sintoma de vida é, ironicamente, a morte.

Um Brasil idoso

O medo do envelhecimento é algo que muitas pessoas enfrentam, gerando um pânico em relação a esse processo natural da vida. Algumas pessoas buscam maneiras de retardar ou reverter o envelhecimento, como se fosse uma doença a ser curada. No entanto, é importante lembrar que o envelhecimento não é uma doença, mas sim uma parte do ciclo da vida. 

À medida que a população brasileira está envelhecendo rapidamente, essa compreensão fundamental sobre o processo de envelhecimento se torna ainda mais crucial. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) apontam que nos últimos 10 anos houve um aumento na proporção de idosos com 60 anos ou mais, que passou de 11,3% para 15,1%. O estudo, divulgado em junho pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também destaca que a população com menos de 30 anos diminuiu de 49,9% para 43,3%. Isso resultou em um aumento no grupo com mais de 30 anos, que passou de 50,1% para 56,7% no mesmo período. 

A cantora Rita Lee sempre foi uma referência quando o assunto é envelhecimento e frequentemente abordava o tema em entrevistas. Ela destacava que  envelhecer é um tabu, especialmente para as mulheres. No Brasil, essa é uma questão relevante, considerando que o país vive uma feminização do envelhecimento; ou seja, entre a população idosa, a maioria é composta por mulheres. Para cada 100 mulheres com 60 anos ou mais, há cerca de 78,8 homens na mesma faixa etária. E entre os idosos com 70 anos ou mais, essa diferença se torna ainda maior, com cerca de 71,4 homens para cada 100 mulheres, é o que mostra dados da Pnad. 

O medo do envelhecimento é muitas vezes associado ao medo da dependência de outras pessoas e da perda da autonomia, é o que aponta Herlane Sena, psicóloga social do Lar de Sant’Ana. Ela explica que as preocupações mais comuns associadas ao envelhecimento incluem a solidão e o isolamento social à medida que as redes de apoio podem diminuir ao longo do tempo diante das perdas. Além disso, existe o medo da morte.  “A reflexão sobre a finitude da vida é uma preocupação bastante comum no processo do envelhecimento. Muitas vezes as pessoas temem o desconhecido e se preocupam com o legado que vão deixar para trás”, conta Herlane.

Sinais de Mudança

Em sua Oração ao Tempo“, Caetano Veloso chama o tempo de “senhor”, um vocativo que evidencia o poder e a maturidade do tempo, representando essa força que opera como o “tambor de todos os ritmos” e que rege os compassos da natureza na qual o ser humano está imerso. Apesar da beleza e da gratidão presentes na música do cantor, a visão negativa em relação ao processo de envelhecer é constantemente alimentada pela cultura e pelas imagens que a sociedade constrói das pessoas idosas. Segundo Herlane, a ênfase na juventude como padrão de valor e beleza leva a estereótipos negativos em relação aos mais velhos. “Esses estereótipos podem incluir ideias de que os idosos são frágeis, incompetentes, menos produtivos ou menos capazes de contribuir para a sociedade”, explica. 

Menosprezar alguém devido a idade é uma prática chamada “etarismo”, que é uma forma de preconceito ou discriminação baseada na idade. Assim como o racismo e o sexismo envolvem discriminação com base na raça e no gênero, respectivamente, o etarismo envolve discriminação com base na idade, especialmente contra pessoas mais maduras.

Essa visão distorcida é uma barreira principalmente quando pessoas mais velhas buscam empregos. Uma pesquisa de 2022 realizada pela Ernst & Young e pela agência Maturi em 191 empresas brasileiras revelou que a maioria delas tem apenas de 6% a 10% de funcionários com mais de 50 anos. O estudo também mostrou que 78% das empresas se consideram etaristas e têm obstáculos na contratação de trabalhadores nessa faixa etária.

Para evitar estereótipos e expectativas culturais que contribuem para a ideia de que o envelhecer é negativo, é preciso alterar as formas como o envelhecimento é representado e percebido. Nesse movimento, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) implementou em junho de 2022 uma mudança na imagem das placas de trânsito que identificam vagas de estacionamento exclusivas para idosos. A nova placa representa uma pessoa em pé, com postura reta, e inclui a inscrição “60+” para indicar que se destina a idosos. Embora o prazo para a substituição das placas seja de cinco anos, algumas cidades no Brasil já adotaram o novo modelo. A representação visual das pessoas idosas em placas de trânsito, assentos reservados e outros locais têm como objetivo combater o estigma associado à idade e à saúde debilitada. Anteriormente, a imagem de uma pessoa idosa curvada com uma bengala transmitia a ideia de fragilidade, o que poderia contribuir para o preconceito e a discriminação contra os idosos. 

 

Nova representação das placas de estacionamento exclusivas para idosos destaca uma visão menos etarista do envelhecimento

 

Um acordo com o tempo

A sociedade também exerce influência na percepção da auto-imagem durante o processo de envelhecimento. Durante essa fase da vida, as pessoas enfrentam mudanças físicas, tais como aumento das rugas, perda de cabelo, alterações no peso e na aparência em geral. Essas mudanças podem afetar a autoestima. Uma forma de lidar com essas mudanças com naturalidade é buscar práticas saudáveis. “Priorizar o autocuidado é fundamental. Diante desse autocuidado a gente pode estar incluindo práticas regulares de exercício, uma alimentação saudável, um sono adequado, atividades prazerosas, hobbies e a busca sempre do apoio e conexão social”, explica.

Maria do Carmo Paixão está na flor da idade e sabe bem a importância de se movimentar. Ela tem 72 anos e, entre risos, diz que tem meninas com 20 e poucos anos que não tem a metade da coragem e disposição que ela possui.Toda segunda-feira e quarta-feira, às 10 da manhã, ela tem um compromisso inadiável: dançar. A aposentada descobriu que mexer o corpo na cadencia da música é uma forma de ser um par com a própria maturidade para manter a vida mais energética e divertida. “Eu me sinto ótima quando danço. Participar desse tipo de atividade é maravilhoso. Eu acordo feliz nos dias em que vou, e não tem nada que atrapalha os meus dias de atividade”, relata.

Para Maria do Carmo, a melhor idade é aquela em que a experiência se transforma em uma jornada de autodescoberta e alegria (Foto: Arquivo pessoal Maria Ducarmo)

Assim como as mudanças físicas, é preciso estar atento aos reflexos do envelhecimento no emocional. Herlane comenta que é necessário aprender a ser gentil e compassivo consigo mesmo à medida que os anos passam e o corpo muda. “Cultivar a atitude de aceitação em relação às mudanças físicas e emocionais que ocorrem durante o envelhecimento pode ajudar a reduzir a autocrítica e promover uma maior autoestima”, relata. 

75% das mulheres com 45 anos ou mais encaram expectativas e desafios adicionais durante o processo de envelhecimento. 72,7% delas relatam sentir-se desvalorizadas à medida que envelhecem, seja em relação à sua família, ao mercado de trabalho ou à sociedade em geral.

Para a aposentada Maria do Carmo, a dança também é uma forma de cuidar da própria saúde mental. Durante a atividade, ela conseguiu conhecer novas pessoas e expandir o próprio ciclo social. “A dança é realmente uma forma de fazer amizades. Conheci muitas pessoas e construir muitas amizades genuínas” conta.

O grupo de dança de Maria Ducardo mostra que a idade certa para realizar objetivos é a que se tem (Foto: Arquivo pessoal Maria Ducarmo)

A tal flor da idade

O envelhecimento é mais difícil para as mulheres. As atitudes e mentalidades em relação ao envelhecimento têm evoluído durante esse longo tempo, mas as expectativas sociais em relação ao envelhecimento ainda diferem entre elas e elas. Uma pesquisa desenvolvida pela consultoria estratégica Eixo aponta que 75% das mulheres com 45 anos ou mais encaram expectativas e desafios adicionais durante o processo de envelhecimento. 72,7% delas relatam sentir-se desvalorizadas à medida que envelhecem, seja em relação à sua família, ao mercado de trabalho ou à sociedade em geral.

Além de serem a maioria idosa, a expectativa de vida das mulheres brasileiras é maior. Esse é só um dos motivos que refletem a urgência de se falar mais sobre o envelhecimento feminino. Segundo um estudo do IBGE, a expectativa de vida dos homens brasileiros é 73,6 anos, enquanto para as mulheres, a expectativa de vida foi de 80,5 anos. Apesar da maior longevidade, elas sofrem com mais cobranças ao envelhecer. Herlane comenta que os padrões de comportamento e aparência são mais violentos com elas. No caso das mais maduras, existe uma forte pressão social para que se mantenham jovens, bonitas e fisicamente atraentes. Enquanto o envelhecimento feminino é associado a um declínio na atratividade e a diminuição do “valor” social dado à mulher idosa, os homens não enfrentam essa realidade do mesmo modo. “Eles são menos pressionados a se preocupar com a aparência física e são valorizados por sua experiência, sabedoria e sucesso profissional. A aparência física dos homens pode ser menos enfatizada em comparação com as mulheres. Então, há uma discrepância de julgamentos”, relata. 

A aposentada Maria do Carmo explica que percebe essa diferença nas cobranças desde muito cedo, mas esses comentários se intensificam principalmente a partir dos 40 anos. “Quando as mulheres chegam aos 40, 45 anos, elas já são consideradas “velhas” e todos cobram que elas façam ajustes aqui e ali, realizem diversos procedimentos estéticos. É uma expectativa bem intensa, especialmente para nós. Enquanto os homens, eles não são tão pressionados assim; e afinal, eles também envelhecem, né?” 

“Eu não me considero frágil, nem um pouco. Sinceramente, eu me sinto muito é forte. Tem hora que eu digo “”meu Deus, eu acho que agora que eu tô começando a viver””.  Eu me acho muito forte, forte demais. Se Deus quiser, vou continuar ainda por muito tempo ainda desse jeito”

A aposentada explica que, apesar dessa cobrança, se sente feliz com a idade e fisionomia que possuí. “Eu não procuro aparentar 20, 30 anos se eu tenho mais de 60. Eu tenho o meu rosto, a minha fisionomia e o meu corpo – e estou feliz”, fala. Para Maria do Carmo, além da cobrança social de aparentar uma juventude eterna, as pessoas atribuem aos idosos a imagem de incapacitados, algo que ela recusa e mostra como é bobagem. “Eu não me considero frágil, nem um pouco. Sinceramente, eu me sinto muito é forte . Tem hora que eu digo “”meu Deus, eu acho que agora que eu tô começando a viver””. Eu me acho muito forte, forte demais. Se Deus quiser, vou continuar ainda por muito tempo ainda desse jeito”, conta.

Oportunidade de mais vida

Apesar dos estereótipos e preconceitos que existem na sociedade em relação à idade madura, envelhecer pode ser um período de crescimento pessoal e uma oportunidade de apreciar a vida de uma maneira única. “Com o passar dos anos, as pessoas tendem a adquirir maior autoconhecimento e desenvolvimento emocional. Elas têm a oportunidade de refletir sobre suas experiências de vida, aprender com os desafios enfrentados e desenvolver uma maior compreensão de si mesmas”, reflete Herlane.

Com o envelhecimento, muitas pessoas também desenvolvem uma maior resiliência emocional e uma maior capacidade de lidar com estresses e se adaptar às mudanças.  Afinal, envelhecer é um grande processo de resistência. “As pessoas mais velhas aprendem a resistir à dificuldade ao longo da vida e a superá-las, o que lhes confere uma maior capacidade de enfrentar os desafios emocionais”, comenta.

Apesar dos desafios emocionais associados ao envelhecimento, muitas pessoas experimentam um aumento geral do bem-estar emocional. É uma das fases em que as pessoas têm tempo para se redescobrir. “Elas podem valorizar mais as relações e encontrar maior satisfação em atividades significativas. Além disso, o envelhecimento pode trazer uma maior sensação de liberdade, autenticidade e aceitação de si mesma”.

A dança promove saúde física e mental e proporciona diversão, especialmente para as pessoas na melhor idade (Foto: Arquivo pessoal Maria Ducarmo)

Maria do Carmo diz que ao envelhecer, aprendeu o prazer de realizar atividades como dança, costura, crochê e leitura. Essas atividades, além de serem os passatempos favoritos dela, também são essenciais para manter o corpo e a mente da aposentada ativa. No entanto, a maior alegria que os anos de experiência trouxeram a ela foi aprender a compartilhar momentos significativos com os entes queridos. “Felicidade é acordar todos os dias e apreciar tudo de maravilhoso que existe neste mundo, especialmente a minha família. Isso é de extrema importância. Acordar e perceber que estou no meio das pessoas que amo, minha família, é o que realmente me traz felicidade. Ver todos eles ao meu redor todos os dias me enche de alegria”. Para Maria do Carmo, envelhecer é o sinal de que a felicidade pode resistir junto a passagem do tempo.

Antes da idade chegar

As crenças sobre a desvalorização das pessoas ligadas à sua utilidade no contexto do trabalho e da produtividade têm um impacto profundo na maneira como vemos os idosos, é o que explica Glenda Moreira, médica geriatra do Clube da Longevidade. “Nós vivemos um tempo onde a juventude é muito propagada como algo produtivo. É uma era onde a nossa sociedade ocidental é extremamente produtiva e individualista. E economicamente você não estando tão ativo como antes, aparentemente cresce essa sensação de inutilidade”.

Se “o tempo não para” como cantava Cazuza, um dos pontos importantes para acolher a idade madura de forma mais leve é se preparar o quanto antes. Preservar a massa muscular e óssea, gerenciar eficazmente as doenças crônicas, adotar uma alimentação saudável, estimular o cérebro através de atividades mentais, e buscar o crescimento pessoal ao longo do processo de maturidade são ações essenciais para cuidar da nossa saúde e bem-estar ao envelhecer. Sem esses cuidados, o envelhecimento pode ser mais difícil.  “Cuidando mais cedo dessas questões que envolvem a modificação do estilo de vida, uma vida saudável e equilibrada, onde promovemos o autocuidado em relação ao nosso corpo físico, mental e espiritual, podemos envelhecer de forma mais saudável e independente”, explica Glenda.

“Existe uma indústria anti-envelhecimento extremamente agressiva, onde a gente tem que saber ponderar o que é autocuidado, o que é promover uma saúde, desde a sua parte estética, da sua parte funcional”

É fundamental discernir entre cuidar de si mesmo de maneira saudável e buscar uma aparência jovem e atraente a qualquer custo. É uma chamada à reflexão sobre as escolhas que fazemos em relação ao envelhecimento e aos cuidados que buscamos para nos manter bem ao longo dos anos. “Existe uma indústria anti-envelhecimento extremamente agressiva, onde a gente tem que saber ponderar o que é autocuidado, o que é promover uma saúde, desde a sua parte estética, da sua parte funcional”, explica Glenda.

Ao mesmo tempo, a geriatra enfatiza a importância de fazer escolhas precoces para alcançar um envelhecimento mais ativo e saudável, preservando a reserva dos órgãos e sistemas do corpo. Isso permite evitar a dependência excessiva da indústria farmacêutica e de procedimentos que podem, em muitos casos, representar um prejuízo tanto psicológico quanto financeiro para as pessoas que estão envelhecendo. Glenda destaca a importância da autonomia sobre realizar procedimentos estéticos, enfatizando que essa liberdade deve ser incentivada. No entanto, é crucial discernir se o cuidado representa um ato de amor próprio ou uma pressão social excessiva sobre a aparência das pessoas idosas. “Nós precisamos elogiar e renovar essa postura de que nossas rugas, nossos cabelos brancos, são bem-vindos. Se quisermos modificá-los, existem ferramentas para isso. Se você quer seus cabelos na cor que me faz sentir melhor, isso faz parte da decisão de cada um”, relata a geriatra. 

A resistência em relação ao envelhecimento reside, precisamente, na capacidade de exercer a autonomia que se adquire durante a fase mais madura da vida. Essa resistência não se trata de evitar o processo de envelhecimento, mas sim de aproveitar ao máximo essa fase da vida. Essa fase se refere à capacidade de resistir às pressões sociais e aos estereótipos negativos associados aos idosos em uma sociedade que muitas vezes os considera incapazes. O envelhecimento representa essa força de resistência, uma demonstração da capacidade de desafiar o etarismo. 

 

 

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