terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Elas com a Terra

Comunidades tradicionais unem liderança feminina à agroecologia, inspiradas pelo ecofeminismo, para preservar a natureza e defender os direitos das mulheres

27 de dezembro de 2023

As folhas arqueadas, que atingem até oito metros, se destacam entre o verde da mata pelo formato pontiagudo. Entre cachos longos, flores creme-amareladas desabrocham e crescem até nascer um fruto ovalado durante os meses de agosto e dezembro: o coco babaçu. Além da imponência de carregar até cinco cachos, que podem produzir entre 200 e 300 cocos cada, a árvore se destaca por sustentar comunidades inteiras sob suas copas. No conhecimento ancestral partilhado pelas quebradeiras de coco, a palmeira do babaçu é considerada uma figura materna. São mais de 300 mil mulheres, espalhadas pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Pará, que reverenciam a planta como uma árvore-mãe. Para as quebradeiras de coco, o babaçu é responsável por dar vida e sustento. Em reciprocidade, as mulheres que dependem desse recurso atuam como guardiãs da natureza, protegendo as áreas dos babaçuais.

A coleta e quebra do babaçu é um ofício historicamente de mulheres. Nos movimentos feministas ligados à preservação ambiental, as quebradeiras de coco se destacam como um grupo comprometido com a conservação de tradições e de um estilo de vida conectado à natureza. É a partir do cenário de união entre a pauta da luta de gênero aliada à proteção do meio ambiente que surge o ecofeminismo. A ideia do movimento busca entender e abordar as interconexões entre a opressão de gênero e a degradação ambiental. O ecofeminismo argumenta que existem paralelos significativos entre a forma como a sociedade trata as mulheres e a natureza, sugerindo que ambas são frequentemente vistas como recursos a serem explorados e dominados. No Piauí, mulheres de comunidades tradicionais trazem a força do ecofeminismo à prática diária, como as quebradeiras de coco.

As mulheres dessa comunidade tradicional não apenas quebram cocos, mas também quebram barreiras, trazendo a conscientização sobre a importância de preservar a natureza aliada aos direitos e a dignidade da população feminina. Elas representam um exemplo de como a união entre a luta de gênero e a proteção do meio ambiente pode criar impactos positivos em busca de uma sociedade mais justa e sustentável. O Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) surge como uma potencia na Mata dos Cocais, agindo para consolidar o protagonismo dessas mulheres no cenário rural. Presente nos estados do Piauí, Maranhão, Pará e Tocantins, o MIQCB se destaca como uma organização engajada na representação dos interesses sociais, políticos e econômicos de mulheres como Marinalda Rodrigues, a coordenadora executiva do MIQCB na Regional Piauí. Foi aos sete anos de idade que Marinalda, hoje uma das forças do MIQCB, aprendeu a arte da quebra de coco para enfrentar as dificuldades financeiras da própria família. Na época, ela não imaginava como essa atividade também poderia preservar a natureza. Além de ser uma fonte de renda, a coleta e a quebra tradicional do coco, reconhecida como patrimônio cultural do Piauí em 2022, desempenha um papel crucial na preservação dos territórios dos babaçuais contra a destruição causada em grande parte pelo agronegócio. Apesar das palmeiras resistirem a chuvas intensas e ao fogo, se o coco ou as folhas não forem removidas das árvores com cuidado, a palmeira pode morrer. Mas o tato das quebradeiras com a coleta do coco é feito com afeto. Elas cuidam das árvores assim como cuidam umas das outras. “Coletamos apenas os cocos que estão caídos. A gente não derruba os cachos que estão em cima. Não deixamos que as outras pessoas cortem os cachos de coco das palmeiras para que a gente e a árvore continue resistindo”, afirma Marinalda. 

Em 2022, as quebradeiras de coco babaçu da comunidade de Vila Esperança, nas regiões de Esperantina, Campo Largo do Piauí e São João do Arraial, conquistaram uma vitória significativa ao receberem do governo do Piauí o Título Definitivo de Propriedade Coletiva do Território Tradicional para 67 famílias.

A luta das quebradeiras de coco babaçu da comunidade de Vila Esperança, nas regiões de Esperantina, Campo Largo do Piauí e São João do Arraial, levou o governo do Piauí o dar o Título Definitivo de Propriedade Coletiva do Território Tradicional para 67 famílias da região em 2022 (Imagem: MIQCB)

A expansão do agronegócio tem afetado o cerrado e seus habitantes, principalmente com a ampliação da fronteira agrícola do Matopiba e o aumento da produção nacional de monoculturas. Constantemente, elas enfrentam os obstáculos representados pelas cercas eletrificadas dos pequenos grileiros e as patrulhas armadas dos grandes fazendeiros para ter acesso ao babaçu. Em contrapartida, os conhecimentos tradicionais dos povos do cerrado têm sido fundamentais para preservar o equilíbrio natural desse bioma. Para Marinalda, o saber ancestral compartilhado entre as mulheres quebradeiras de coco também fortalece o protagonismo de outras mulheres em suas comunidades e incentiva um convívio harmonioso em respeito à natureza. “A gente faz reuniões nas outras comunidades, com as outras mulheres. Forma lideranças para que a tradição possa se fortalecer em várias regiões, não só na nossa”, relata. O cuidado com as palmeiras se estende entre as quebradeiras de coco, fluindo das crenças e do fruto dessa ligação com as comunidades que dependem da árvore. Ao juntar o coco, elas se juntam, formando uma relação ambiental marcada pela afetividade.

Leia mais: Para o cerrado não se encerrar

Da árvore que é conhecida como palmeira-mãe, as quebradeiras de coco transformam as palhas das folhas em cestos, a casca do coco em carvão, e a castanha em azeite e sabão. A organização do grupo de mulheres em cooperativas ajuda a produzir e vender diversos produtos derivados do babaçu, incluindo farinha, azeite, sabonete, entre outros. No entanto, os resultados do trabalho para preservar a Mata de Cocais também é essencial para outros seres que dependem da árvore. “Se não tiver a palmeira de babaçu em pé, os animais não conseguem sobreviver. É por isso que a gente sempre busca esse equilíbrio de preservar a natureza, para que a gente e outros tipos de vidas continuemos a resistir”, ressalta.

A força das margaridas

“Olha, Brasília está florida! Estão chegando as decididas! Olha, Brasília está florida! É o querer, o querer das Margaridas”. O verso, entoado a partir do ano 2000 quando elas, as margaridas, marcharam por Brasília pela primeira vez, marca a luta feminina por políticas públicas que defendam e preservem os direitos das mulheres do campo, da floresta e daquelas que retiram a sobrevivência dos rios e mares. Realizada sempre em agosto, em memória ao mês do assassinato da ativista e camponesa Margarida Alves, a Marcha das Margaridas mobiliza milhares de mulheres de diversas regiões do Brasil, marchando pelas avenidas da capital do Brasil. A ação luta pela sustentabilidade para humanos e natureza, além de fortalecer a mobilização e formação sindical e feminista das mulheres trabalhadoras rurais. O poder do movimento ajuda a consolidar outras iniciativa ao longo dos anos, ajudando a mudar a realidade do país.

Um dos movimentos impactados pela marcha é o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), uma iniciativa camponesa de alcance nacional dedicada a resgatar a identidade e cultura camponesa, além de promover a agroecologia e alimentação saudável. Alinhado com a valorização da agricultura camponesa, o movimento incorpora a luta pela igualdade de gênero em seus princípios. Sonia Costa, da direção estadual do MPA no Piauí, destaca o papel crucial das mulheres na luta e organização do movimento: elas contribuem para a segurança alimentar, autonomia da comunidade e território camponês, principalmente através do trabalho na preservação ambiental e na luta contra a fome. “Nós, mulheres camponesas do MPA, com nossas determinações históricas em defesa da vida, temos pautado essa construção de colocar a agroecologia no centro da economia política e, assim, permitir que ela seja de fato, uma ferramenta estratégica de enfrentamento ao agronegócio e a construção da contra hegemonia”, relata.

MPA Piauí promove mutirões de doação de toneladas de alimentos agroecológicos para escolas e comunidades tradicionais do Piauí (FOTO: MPA PI)

Desde a pré-história, o trabalho feminino foi fundamental para as primeiras economias agrícolas, deixando um legado vivo. No MPA, as mulheres se mobilizam para estabelecer novas relações de gênero e superar o patriarcado, tanto dentro do campesinato quanto na maneira como os seres humanos exploram a natureza. Sonia destaca que é necessário que elas compreendam e percebam a importância que possuem na lógica de produção. “As mulheres sempre tiveram papel fundamental na agroecologia através das suas práticas e descobertas. Na questão do cuidado das sementes, da terra e na produção de alimentos, sempre gerando vida”, relata.

Ao adotar princípios agroecológicos e promover o protagonismo feminino, MPA incentiva práticas agrícolas sustentáveis e reconhece a força das mulheres na agricultura e na manutenção da segurança alimentar (FOTO: MPA PI)

A participação ativa das mulheres na agroecologia, além de fortalecer a segurança alimentar local, também desafia as estruturas de poder patriarcais. Transformar a vida das mulheres requer uma transformação no mundo que as rodeia, e o ecofeminismo é uma das formas de convergir mudanças a partir da natureza. Também é uma caminho para fortalecer a defesa dos saberes ancestrais, que podem levar a práticas mais sustentáveis de conexão com o meio ambiente. É conservando essas raízes que o futuro poderá alcançar um destino sem discriminação de gênero e mais sustentável, em equilíbrio com a vida em seu estado mais livre.

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