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Embaixador das minorias

Provocador, inquieto, criativo e pioneiro, Arnaldo Albuquerque era multimídia mesmo antes da criação do termo numa cidade que trata a memória com descaso

29 de setembro de 2023

Teresina sempre teve um problema com sua memória. Principalmente quando envolve os personagens que fazem cultura. Mais do que o nome de uma rua ou uma plaquinha perdida em algum ponto, grandes artistas acabaram no ostracismo, pois cresceram em uma cidade que abraça o que vem de fora e esquece o que está nas suas entranhas. Lembrado aqui e ali por textos como esse ou em alguma pesquisa acadêmica vinda de um entusiasta nostálgico do cinema ou quadrinhos, Arnaldo Albuquerque é um dos grandes artistas, na verdade multiartista, de vanguarda; o pioneiro que representa a impaciência teresinense e, mais do que isso, a resistência da criação underground e da contracultura.

Euclides da Cunha (1866-1909) na sua obra “Os Sertões” diz que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Essa talvez seja a definição que melhor se enquadre ao talento de qualquer piauiense disposto a ser artista, vista as tormentas para se produzir e, principalmente, viabilizar isso como meio de vida, de sustento. Muitos não conseguem e acabam como burocratas em repartições afogando o talento em mesa de botequim. Outros vão longe montados no dom, mas dificilmente voltam, como é o caso de alguns piauienses ilustres como Carlos Castelo Branco, Torquato Neto, entre outros. Este último, inclusive, era um dos amigos de Arnaldo Albuquerque, com quem realizou filmes experimentais através do grupo “Espectro Torquato Neto”, que produziu uma das mais puras obras do cinema marginal, o filme “O Terror da Vermelha”, de Torquato (clique aqui e assista).

Arnaldo da Costa Albuquerque nasceu em 1952 e, assim como vários outros artistas da sua época, era um desses meninos inquietos de classe média alta que gostava muito de ler. No documentário “Sem Palavras”, de Aristides Oliveira, Meire Fernandes e Bernardo Aurélio, (que você pode assistir abaixo), ele diz que seus primeiros contatos com os quadrinhos aconteceram por volta dos 5 anos, quando, coincidentemente, descobriu um problema de visão. Isso porque seu pai lhe dava algumas revistas e ele as lia junto ao rosto. Foi então enviado para Fortaleza para o tratamento, onde teve seus primeiros contatos com a TV. A partir de então, em um jogo de imitação e descobrimento de técnicas, passou a desenvolver a paixão pelo desenho.

Aos 17 anos, o jovem que era um grande consumidor de quadrinhos e se inspirava numa mistura de diversas influências, principalmente gringa, mas sempre com um consumo crítico, ganhou o seu primeiro prêmio: um salão municipal de artes. E desde então não parou mais. E foi cada vez mais profundo com seu olhar atento e pensamento vanguardista, experimentando as mais diversas possibilidades da arte e dos movimentos culturais que lhe abriam as portas devido sua capacidade criativa e sensibilidade para problemas sociais.

Em 1966, passou uma temporada no Rio de Janeiro, onde teve contato direto com diversas produções cinematográficas até então desconhecidas na sua cidade natal, como obras de Glauber Rocha, Humberto Mauro, Ruy Guerra, Godard e Truffaut, o que lhe acrescentou uma grande bagagem cultural e aguçou o interesse pela sétima arte. E lá conheceu ainda a redação de O Pasquim, um dos folhetins mais famosos do país que trazia temas vanguardistas como sexo, drogas e feminismo, que mais tarde viria a colaborar com suas ilustrações.

Albert Piauhy, o jornalista Kenard Kruel e Arnaldo na década de 80. (Foto: Arquivo)

Na década de 70, em meio à ditadura militar e com o Piauí em transformação devido a chegada da Universidade Federal, a mudança da paisagem urbana da cidade que dava os primeiros sinais de modernidade, Arnaldo pegou o bonde do que era melhor em fazer: críticas ácidas.

A historiadora Kézia Almeida estudou o artista à fundo, dedicando parte da sua dissertação de mestrado sobre quadrinhos no Piauí para Arnaldo. Em um artigo, ela o descreve como o “embaixador das minorias” em referência à sua participação no O Pasquim, de Ziraldo, sendo um artista “de uma resistência específica, que não acontecia em todos os lugares. Um exemplo é o caso do Jornal Bouquitas Rouge, cujo nome surgiu após o quadrinista e outros participantes do periódico ficarem na porta de uma casa de shows distribuindo beijos entre moças e rapazes usando batons vermelhos”, destaca.

Em 1971, Arnaldo iniciou os seus trabalhos como cartunista do jornal O Dia, onde se destacou pelo seu humor ácido e em 1972, foi o responsável pelo planejamento gráfico do Jornal Gramma, números 1 e 2, considerado o primeiro jornal mimeografado do Piauí e do Brasil, além de publicar para o “O Estado”, “Hora Fatal” e “Jornal da Manhã”. Foi ainda autor da revista Humor Sangrento, que criou em 1977, publicação que fazia crítica social e aos costumes na década de 70, Na sua primeira edição, icônica, trazia na capa os personagens da cultura norte-americana em frente a um pelotão de fuzilamento e até hoje é obra de estudo. Além disso, fez parte da lista de jornais e revistas de alcance nacional mais importantes com críticas às práticas e sujeitos durante a Ditadura Militar com o uso do humor.

Para além do papel

Arnaldo era artista multimídia mesmo antes de inventarem a palavra. Era um quadrinista, cartunista, fotógrafo, pintor e ainda teve destaque com uma de suas paixões: o cinema, sendo realizador dos curtas-metragens “Vã-pirações”, “Um mergulho” e “Carcará, pega mata e come”, [que você pode assistir abaixo] de 1979, a primeira animação produzida no Piauí, que lhe rendeu diversos prêmios pelo país e na Argentina. De forma geral, sempre se mantendo como um grande crítico à realidade de injustiças. Mas acima de tudo um dos nomes mais fortes da contracultura no Piauí.

Para o também historiador e quadrinista Bernardo Aurélio, que foi responsável por reeditar uma das obras de Arnaldo, além de uma vasta produção multimeios sobre o artista, a sua principal característica é o pioneirismo. “E em várias artes: primeira revista em quadrinhos publicada no Piauí, primeiro desenho animado do Estado (em super 8), primeiro jornal alternativo mimeografado do Brasil (Gramma) e, provavelmente, o primeiro show alternativo de música de Teresina (o show Udi-grudi). Também foi, provavelmente, um dos primeiros artistas performáticos da cidade, fazendo instalação de estátuas e bustos de gesso na avenida e depois destruindo-as a marteladas diante de um público atônito”, descreve.

Capa do jornal Gramma, o primeiro mimeografado do Brasil

Todo esse potencial e inquietude de Arnaldo lhe renderam diversos prêmios pelo Brasil, Argentina e México, além de dezenas de exposições pelo país e, principalmente, um nome a ser lembrado pelos mestres da canetada com humor.

Apesar de tudo isso, nunca foi um artista com o devido reconhecimento em vida e acabou sendo açoitado pelo álcool, que lhe afastou das telas, do papel, por vários anos, deixando-o esquecido, sozinho, em uma casa simples, abarrotada de obras sem o devido cuidado. Amigos e entusiastas da sua obra tentaram lhe recolocar no caminho de luz das artes e por alguns momentos, ainda conseguia ânimo e inspiração do artista para criar. Uma das suas últimas obras foram as caricaturas dos personagens da reedição do livro “História da Imprensa no Piauí”, de Celso Pinheiro Filho.

Diabético, aos 62 anos, Arnaldo mantinha um olhar triste e ainda curioso, mas, vítima de complicações de uma cirurgia, preencheu seu último pedaço de papel de vida numa tarde de clima ameno de 8 de janeiro de 2015 em Teresina, data em que é comemorado no Brasil o Dia Nacional da Fotografia e do Fotógrafo. 

Parte do seu acervo hoje segue guardado com carinho pelo sobrinho e arquivista Bruno Baker, que tenta recolher outros retalhos de sua obra perdidos.

Autoretrato de Arnaldo para uma edição de jornal impresso de Teresina

Artista na cidade sem memória

Arnaldo Albuquerque, assim como outros piauienses que se destacaram com suas obras, está sendo esquecido. Seu nome ainda ventilou como proposta para nomear o Museu da Imagem e do Som, obra que guardará o acervo da cidade, mas que se arrasta há anos e segue sem previsão concreta de inauguração. No mais, sempre é lembrado em seminários, eventos acadêmicos ou em rodas de artistas com conversas saudosistas.

Para Bernardo Aurélio, a falta de um público consumidor de verdade, de mídia especializada, de uma curadoria mais eficiente, do tratamento mais respeitoso com a memória e a arte são fatores que contribuem para a morte do legado de um artista. “Tudo isso afunda bons e importantes artistas quase no anonimato, como é o caso do Arnaldo. Entretanto, o Arnaldo tem uma coisa que deve ser sempre lembrada: o selo pelo qual ele realizou seu “Humor Sangrento”, ou mesmo sua animação “Carcará” chama-se “publicações suicidas” e a imagem é de alguém atirando em sua própria cabeça. Então, intimamente, acho que o Arnaldo tinha uma questão com sua arte. Não digo que ele poderia ter intenções suicidas, não sei sobre isso, mas não negaria a ideia. Acredito que o “suicidas” em questão poderia ser um tipo de autossabotagem” acrescenta.

Fonte: ALBUQUERQUE, Arnaldo. Humor Sangrento. Carcará. 1ªed. Teresina: Nossa. 1977, p. 11-12.

Já a historiadora Kézia Almeida destaca que a falta de reconhecimento da obra de Arnaldo é algo a se repensar, pois ele era e ainda é idolatrado por um grupo. “Eu acho a palavra ‘reconhecido’ uma faca de dois gumes, sabe? Porque ele foi reconhecido, mas por um nicho. Quem é/era fã dele, era apaixonado pelo que ele fazia. Mas infelizmente o Piauí como um todo não o conheceu como o artista multifacetado que ele era”, explica.

Bernardo lembra que o conheceu quando produziu o documentário e que muito da forma que vivia era o reflexo de como a cidade lhe tratava, mas que hoje está revisitando seus artistas. “Ele já era senhor na casa dos 50 anos, morando sozinho, que empilhava seus desenhos e trabalhos sem receio de desgastes provocados pelas intempéries do tempo ou pela fome de cupins. O que quero dizer, é que acredito que ele tinha certo descaso consigo mesmo e com sua arte e isso dificulta para que o público, ou críticos, ou mesmo futuros pesquisadores cheguem até ele. Mas sim, ele merecia mais [reconhecimento] e acredito que está acontecendo uma crescente de interesse por sua figura e produção. E o bom para novos pesquisadores é que há muito há se revelar: fotografias, telas, cartazes, capas, filmes, quadrinhos e ilustrações, muita coisa desconhecida que precisa ser visitada”, destaca.

Arnaldo no documentário “Sem Palavras”, de Meire Fernandes, Bernardo Aurélio e Aristides de Oliveira.

Kézia também enxerga um novo movimento de valorização da obra do artista, que, mesmo tímido, ainda deixa viva a chama da sua memória. “E eu acredito que, pelo menos no universo acadêmico, ele permanece como uma fonte. Ao mesmo tempo, eu acho que é preciso que os professores de universidades usem e discutam sobre ele. Então, basicamente, não acho que a memória dele vá morrer, mas seria melhor ter mais pessoas alimentando essa memória”, explica.

Bernardo lembra que geralmente essas buscas pela história e obra de Arnaldo se dão por um acaso de estudos sobre o contexto histórico de Teresina nos anos 70, o que é impossível não mencionar o movimento e o estilo de vida que representou. “No cinema, ele é referência porque fez as primeiras animações do Piauí, trabalhos premiados em festivais de cinema por aí. E também tem seus trabalhos que estão sendo redescobertos muito recentemente, que são os super 8 que estão sendo tratados e digitalizados e isso é incrível”, relata, acrescentando que “uma coisa é evidente: não se pode fazer uma pesquisa séria sobre contracultura e sociedade dos anos 70 no Piauí sem citar o nome do Arnaldo, esse artista multifacetado que fez com excelência várias expressões de sua arte e, isso, de alguma forma, significa o Piauí, mesmo que não seja reconhecido em sua identidade”.

Mas uma coisa é evidente: não se pode fazer uma pesquisa séria sobre contracultura e sociedade dos anos 70 no Piauí sem citar o nome do Arnaldo, esse artista multifacetado que fez com excelência várias expressões de sua arte e, isso, de alguma forma, significa o Piauí, mesmo que não seja reconhecido em sua identidade.

Referência

Talvez Arnaldo não tenha influenciado tantos artistas com seu traço hoje, mas certamente sua crítica, seu humor ácido e inteligente abriram portas e são referência para outros, como Jota A, cartunista do jornal O Dia há décadas e um dos mais premiados do país, com centenas de troféus de salões de todo o mundo. 

Outro exemplo é o artista plástico, designer, gráfico e quadrinista Antônio Amaral, que já faturou o Prêmio HQ Mix 2000 com sua revista Hipocampo, além de participação em diversas exposições pelo mundo. E seria até desonesto deixar de citar o próprio Bernardo Aurélio, o entusiasta de Arnaldo hoje, que além de historiador é quadrinista e responsável, juntamente com Caio Oliveira, pela publicação “Foices e Facões”, um quadrinho histórico sobre a Batalha do Jenipapo, reunindo um potente material didático que, infelizmente, ainda subutilizado por professores.

Com isso, é possível constatar que mais do que influência do traço, ele segue como referência de produção como um todo de sua multmidialidade. “Já escutei desenhistas como Albert Piauí ou o músico Assis Bezerra ou até mesmo o professor Cinéas Santos elogiando o trabalho do Arnaldo. Outros artistas da sua geração ou posteriores, como Durvalino Couto, Paulo Machado, Antonio Amaral, todos fazem alguma reverência”, lembra Bernardo.

Educação cultural

Para que a memória do artista permaneça viva, é preciso trabalhar a cidade com mecanismos que abram as portas para o conhecimento das obras, com escolas incentivando a busca por produções locais, que atiçam a curiosidade do jovem e crie novos consumidores de cultura ou talvez fazedores. “O que estou querendo dizer é que, se uma cidade sofre da síndrome do apagamento, não há muito o que se possa fazer senão o trabalho individualizado da referência que apenas a pesquisa e a curiosidade permitem. Ou seja, se a cidade (e aqui entenda a cidade como esse organismo político-econômico hegemônico) não preserva sua memória, que os cidadãos valorizem-na pessoalmente, ou em grupos, em classes. Eu sempre fiz minha parte, gritando da importância de Humor Sangrento para os quadrinhos do Piauí, assim como o Hipocampo do Amaral e as tirinhas e cartuns do Jota A também”, finaliza Bernardo.

E sobre o descaso da cidade, ainda se mostrando à frente do seu tempo, o próprio Arnaldo sinalizou em uma das suas obras em que retrata uma Teresina futurista:

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

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