Durante o processo de colonização do Brasil, milhares de indígenas viram suas aldeias da antiga Pindorama receberem um símbolo, levantado como sinal de sucesso pelos invasores. Era a cruz cristã, que por um lado sinalizava a evangelização e por outro uma morte silenciosa além das provocadas pelas doenças e conflitos: a da cultura dos povos originários. Mesmo com o passar dos séculos e com a sobrevivência desvalida de alguns aspectos de tradição, hoje algumas comunidades estão sendo surpreendidas com uma nova catequese moderna provocada principalmente por igrejas pentecostais e que têm massacrado violentamente, mais uma vez, os rituais e elementos culturais. No Piauí, muitos estão trocando as danças e artesanato por orações e bíblia, deixando ainda de se autodeclarar como indígenas.
É possível afirmar que essa obsessão da igreja pelos povos originários nunca tenha cessado. Mesmo com algumas políticas públicas de preservação, sempre foram destacadas missões de catequese que traduziam seu trabalho como ajuda humanitária. Até mesmo a missionária Dorothy Stang, que tanto lutou por comunidades, pela da conservação da floresta amazônica, e foi assassinada por sua defesa de terras indígenas contra a ameaça de agricultores no Pará, também representava um grupo de missionárias, chamado de Irmãs de Notre Dame de Namur, uma congregação religiosa feminina da Igreja Católica, dedicada à educação dos mais pobres levando o evangelho.
Nos últimos anos, essas ações se intensificaram, principalmente com o fortalecimento do que é chamado de “bancada da bíblia” no congresso e que se infiltrou em ministérios, como o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), comandado então por Damares Alves, que discursava livremente sobre ações de evangelização de povos originários enquanto se mantinha omissa a várias violações de direitos humanos causadas pelos garimpeiros na comunidade ianomâmi, por exemplo, reduzindo o debate a “oposições políticas”, o que está sendo alvo de denúncias hoje pelo atual Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
Na mesma época, a ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro liderou o Programa Nacional de Incentivo ao Voluntariado, chamado Pátria Voluntária, que dedicou dinheiro público para instituições agirem, também, em comunidades do Amazonas levando cestas básicas, geralmente comandadas por pastores evangélicos, como a Missão do Céu, uma agência de aviação missionária cujo propósito é “levar a mensagem do Evangelho” à região amazônica e que na apresentação do seu site explica que “não fretamos nossas aeronaves e nem somos remunerados pelas operações. Toda atividade é voluntária e subsidiada pelos patrocinadores, mantenedores e apoiadores de forma liberal, voluntária e generosa. É a união de forças por um propósito comum”.
São diversos grupos que atuam como evangelizadores espalhados pelo país e que mantém uma fixação nos povos originários, sempre com um slogan que enfatiza o envolvimento missionário na educação, saúde e movimento indígena, atuando conjuntamente na realização de diversas atividades neste âmbito.
No entanto, mais do que evangelizar, em muitos casos essas ações mais violentas de igrejas mais radicais acabam por causar uma perda de identidade, fazendo com que milhares de pessoas deixem de praticar os seus rituais, que foram demonizados pelas instituições, e até mesmo se reconhecerem como indígenas.
O Piauí no processo
No Piauí, nos últimos seis meses, os povos originários receberam destaques com políticas públicas do governo, com valorização cultural, inauguração de museu e até centro de saúde especializado. Os dados do último censo apontam ainda que o estado teve um crescimento de 144% da população indígena autodeclarada, sendo que em 2010 eram 2.944 pessoas e em 2022 foram 7.198. Esse foi o quinto maior aumento do país, mas os números poderiam ser ainda maiores, pois muitos hoje não se declaram como.
Essa espécie de “apagamento de identidade” tem, em muitos casos, uma profunda ligação com a chegada de igrejas pentecostais mais radicais. Enquanto no passado eram fincadas estacas com cruzes em aldeias simbolizando a fé, hoje pequenos espaços com dezenas de cadeiras de plástico e um púlpito cumprem esse papel em diversas comunidades, sejam indígenas ou não. Elas estão geralmente onde o estado não está presente: nas periferias, comunidades fragilizadas e até mesmo nas prisões, servindo de suporte social com ajuda humanitária, espiritual e até mesmo psicológico.
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A cidade de Piripiri, localizada a 160 km de Teresina, é a com maior número absoluto de indígenas, com 1.370 segundo o último Censo. No entanto, os números de quem trabalha de perto com esses grupos pode ser maior, como aponta o indígena Cícero Dias, representante da comunidade Tabajaras, que nas suas contas soma cerca de 2500, tendo como base as associações dos grupos. “Temos em Piripiri cerca de 243 famílias em uma associação, 53 famílias em outra e cerca de 125 famílias em outra”, destaca.
Cícero, que usa aliança no dedo e se diz católico, destaca que sua fé cristã não lhe afasta do orgulho de suas raízes e tradições, mas afirma que em muitas comunidades as igrejas estão afastando os indígenas de suas tradições. “Infelizmente temos pessoas que não dançam mais o toré, não querem mais saber. É uma perda pra gente”, acrescenta.
A psicóloga e pesquisadora Brisana Índio estudou de perto a realidade de muitas comunidades. Ela, que carrega a coincidência da sua área de pesquisa no sobrenome, mas que hoje é um termo pejorativo para os povos originários, afirma que muitos indígenas deixaram de se autodeclarar como tal por conta da interferência de igrejas evangélicas que acabaram demonizando as práticas e saberes indígenas.
Brisana traz como exemplo a comunidade Canto da Várzea, em Piripiri, que recebeu impacto com a chegada de uma igreja, cujo algumas famílias começaram a participar dos cultos e ações sociais. “Na medida que essas famílias foram se engajando nesse movimento pentecostal houve uma diminuição e uma fragilização relacionada ao processo de autodeclaração dessas famílias e ao processo de se sentir pertencente ao grupo indígena. Elas não começaram mais a querer se autodeclarar indígena, não quiseram mais participar das atividades relacionadas ao grupo indígena na comunidade, as práticas espirituais, começaram a ver determinadas práticas como algo relacionado ao demônio”, lamenta.
Para a pesquisadora, nessas situações, é possível enxergar a ação violenta contra a cultura dos povos, que integra uma tentativa moderna de apagamento da cultura em diversos recortes. “E aí, com isso, a gente consegue ver nessas situações uma reprodução relacionada ao racismo, a intolerância, a violação de direitos, a atualização de um processo de catequização relacionada a esses novos grupos e povos indígenas com o Piauí”, destaca.
Cultura forte
O Pajé Chicão, o Akangatchaua, que hoje mora na zona urbana de Piripiri, olha com carinho para sua produção de artesanato. Em meio a cocares, colares, chocalhos, pendurados na parede, uma estátua de Padre Cícero faz um contraste que representa o sincretismo religioso de grupos indígenas, que hoje na sua maioria já estão catequizados mas que tentam não perder um bem ainda mais valioso para eles: a sua cultura.
Talvez sem perceber, Chicão, tem sua fé cristã fortemente associada à cultura indígena. Isso porque, apesar da estátua de Padre Cícero na parede, sua devoção é por São Francisco de Assis, que na Igreja Católica é considerado protetor dos animais e padroeiro da ecologia. Em sua fala, consegue destacar sua fé ao mesmo tempo que declara o amor pela natureza. “A gente tem que cuidar do que está ali, na floresta, que foi nos dado por Deus, e proteger”.
Em um ponto de demonstração de sabedoria popular, Akangatchaua, destaca que a fé de cada pessoa não deve ser algo imposto, mas sim encontrado e respeitado. “Não importa se ela é isso ou aquilo, ela deve se prender ao que lhe faz bem, ao que lhe faz ser melhor pro mundo”, acrescenta enquanto exibe orgulhoso uma espécie de cajado que se assemelha a uma ave e usa para apontar para a estátua na parede.
Chicão relata tristeza ao saber que muitos do seu povo hoje deixaram de lado os alimentos da sua cultura, mas teme ainda mais pela possibilidade de abandono da terra e desprezo pela natureza. “A gente tem que tirar só o que a natureza nos dá e temos que saber disso. Se continuar assim, vão tomar tudo que a gente tem”, enfatiza.
Políticas públicas
A pesquisadora Brisana Índio destaca que, apesar de algumas ações de conservação da cultura dos povos, ainda são necessárias políticas públicas mais incisivas, voltadas à garantia do direito à terra, à saúde, à educação e às questões sociais.
“Há um processo de vulnerabilização desse território, que já se encontra nesse estado de precarização e de vulnerabilização. E aí quando não tem retaguarda, não tem um processo de gestão, de mobilização e de garantia, de acesso à esses direitos ainda se tem muito mais um aumento da vulnerabilização, da desigualdade social, das precarizações, das condições de vida. E aí, com esse território mais vulnerabilizado, as igrejas evangélicas têm os seus impactos, porque por meio das ações sociais, por meio das mobilizações também políticas e religiosas, nesse território ela acaba ganhando força. Há um processo cada vez mais de instalação e de uma certa expansão do mecanismo e das igrejas evangélicas nesse território. Então esse processo acaba sendo acentuado sim, à ausência das políticas públicas de forma geral”, explica.
A pesquisadora reforça que essa realidade não é apenas no Piauí, mas que vem ocorrendo em outras comunidades, como as quilombolas também e até mesmo nas periferias. “Primeiro destacamos o avanço do movimento evangélico no país nas últimas décadas e, sobretudo, o crescimento do movimento bolsonarista no país, que acentuou esses movimentos de evangelização. E aí com os ataques do governo aos povos indígenas, aos seus territórios nesses últimos anos, a fragilidade no processo de demarcação das terras, a autorização também dos garimpos, das invasões a esses territórios e a esses grupos indígenas, tem aumentado sim esse processo de crescimento [de igrejas] dentro das comunidades e, sobretudo, também a adesão de determinados grupos indígenas também a esses movimentos”, enfatiza, destacando que o processo de apropriação e transformação cultural desses povos acontece de forma lenta e gradual em forma do bom discurso da evangelização.
Assim como para a pesquisadora e para Chicão, é necessária uma discussão mais aprofundada sobre a intensidade e propósito das ações desses grupos religiosos. Brisana, frisa que “principalmente diante do histórico de silenciamento e de invisibilização desses grupos no Piauí. Por muito tempo se acreditou, se reproduziu que não existia mais grupos indígenas no cenário piauiense, que o Piauí não contava com esses povos. Então, a gente já vê também, historicamente, todo o processo de silenciamento, de epistemicídio, de etnocídio, de invisibilização diante das necessidades desse grupo. Então, é preciso olhar e pensar nos impactos dessa chegada das igrejas pentecostais nesses grupos. Até que ponto ela acaba não sendo também um fator que pode vir a fragilizar e a reproduzir. Cada vez mais essas histórias de silenciamento, de invisibilização e de extermínio relacionado a esses grupos, relacionado às suas práticas, as suas culturas e os seus saberes”, destaca.
Já para Chicão, tudo tem uma fórmula simples, que deve ser aplicada para tudo o tempo todo: “Todo mundo pode ter sua fé, mas tem que ter respeito”, finaliza.
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