quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Esse tal de Roque Enrow

Quem é ele?

13 de julho de 2023

“Um menino tão sabido, doutor, ele quer modificar o mundo”.  É assim que Rita Lee Jones de Carvalho descreve o tal do Roque Enrow. Mesmo com a certeza da sabedoria e o desejo de mudança, Rita ainda questiona a natureza desse sujeito.Uma mosca, um mistério, uma moda que passou, um planeta, um deserto, uma bomba que estourou”. Talvez ele seja tudo isso. Talvez ele faça questão de ser o contrário, assim como Rita priorizava a questão da liberdade antes de tudo, antes de qualquer realeza.

Hoje, no dia 13 de julho, comemora-se o Dia Mundial do Rock. Uma data destinada a celebrar essa filosofia de vida que tem deixado uma marca significativa ao longo da história e continua a influenciar jovens e adultos. Para homenagear o rock, destacamos a figura de Rita Lee, uma das artistas mais versáteis e influentes da música brasileira. Amplamente reconhecida como a rainha do rock brasileiro, Rita Lee desempenhou um papel fundamental na cena roqueira. No entanto, a artista rejeitava o título, considerando-o cafona. Sempre à frente de seu tempo, Rita se destacou como uma figura de criatividade e independência feminina ao longo de seus quase 60 anos de carreira. Embora o título de rainha do rock brasileiro tenha sido atribuído a ela de forma natural, Rita preferia ser chamada de “padroeira da liberdade”, refletindo seu compromisso com a expressão artística e a quebra de barreiras, tal como o rock ensina ou desensina. Em maio deste ano, Rita partiu deixando um legado duradouro na música brasileira. O rock continuou e se estendeu pela contribuição dela, dos roqueiros antes dela e dos milhões de fãs dessa filosofia de vida.

Muito maior que gênero musical, o rock é uma gênese. É originário, um princípio que influencia uma forma de viver, habitar e transformar a sociedade. Inclusive, de confrontar as “normalidades” vigentes e todo o conformismo latente no social. Se falam que “o rock é coisa do diabo”, a sonoridade despontou no gospel. A precursora do som que marcou essa origem foi Sister Rosetta, uma inovadora guitarrista que fez sucesso entre as décadas de 1930 e 1940 mesclando os estilos gospel e blues com sonoridades revolucionárias para a época. Ela, uma mulher preta, marcava as próprias canções com elementos que já gritavam Rock & Roll, como o uso da guitarra elétrica com distorção. A contribuição musical de Sister Rosetta influenciou roqueiros como Little Richards, Johnny Cash, Chuck Berry, Elvis Presley e Jerry Lee Lewis.

 

Sister Rosetta Tharpe em 1938, fotografada por James J. Kriegsmann

Menina selvagem

Os roqueiros também estão entre nós. Há décadas eles impõem novas formas de vivenciar a sociedade, batendo cabeça longe dos tradicionais centros culturais hegemônicos do Brasil, o chamado eixo Rio/São Paulo. O pesquisador Aristides Oliveira conta que, no final dos anos 80 e início dos anos 90, a música piauiense tinha como foco temas ligados ao elogio e adoração às paisagens “regionais”, típicas de um período que tinha o festival Canta Nordeste como espelho para o resto do país na busca das suas “raízes” musicais. Um disco emblemático que ilustra esse contexto é o “Teresina Canta Teresina”. Esse estilo, mais acústico, começou a ser fragmentado com os riffs das guitarras elétricas. “A música piauiense tinha uma pegada “voz e violão”, que entrou em estado de fratura com os acordes agressivos do Megahertz, que se destaca no metal brasileiro junto com Avalon e Vênus, sem falar do Grito Absurdo, com repercussão local, considerada a primeira banda de punk rock do Piauí”, conta.

Banda Avalon (Primeira formação: Ico Almendra, Thirso, Maurício Barros e Fausto Torres) na ponte metálica durante a década de 1980 (Fonte: Zenon Deolindo).

O rock tem uma natureza versátil e ao longo dos anos se mistura com diversas sonoridades, resultando em subgêneros. No Piauí não é diferente, desde as décadas passadas reverberam canções que dissolvem o óbvio. Aristides fala sobre esse hibridismo sonoro da cena roqueira nas terras piauienses. “Outra banda importante em pleno anos 90 é Narguilé Hidromecânico, reverberando as ondas no mangue beat no estado e tornando-se ponto de referência para as novas gerações que tocam hardcore por aqui: Obtus e Káfila”.

Banda Káfila no Diretório Central dos Estudantes da UFPI (Foto: Arquivo pessoal. Fernando Castelo Branco)

Teresina também é uma menina selvagem, e conta com uma discografia potente, cheia de ondas sonoras distorcidas e vocais intensos. Aristides relembra esse histórico e destaca bandas que integraram a cena contracultural da cidade. “Gosto de lembrar da banda Asseclas, que trouxe uma proposta de trabalhar performances poéticas nas letras com o peso das guitarras. […] Outras bandas orbitaram a cena rock da cidade nos anos 90, mas com baixo raio de reverberação foram a Fator RH, Citoplasma e suas Mitocôndrias Malucas, Prós e Contras e outras que se perderam no caminho. Tivemos Noigandres, Anti-Depressivo, Verme Noise, Machados e Perdidos e por aí vai… Como diria Kelma Gallas, uma verdadeira “galeria de desaparecidos”, relembra. 

Festival “Rock no Velho Monge” nas coroas do rio Parnaíba em Teresina durante os anos 80. (Fonte: LUSTOSA FILHO, 2015).

Mas não só de história vive o rock. Aristides diz que as formas de expressão inspiradas nesse som estão rompendo barreiras e oferecendo perspectivas desafiadoras para lidar com os desafios do presente. Essas mudanças transcendem gerações e podem se tornar um caminho promissor para transformar a realidade atual, evitando repetir os padrões do passado e viver à sombra das gerações anteriores. “Quando se diz que “rock é atitude” não é clichê, pois a potência desse gênero mobiliza a juventude a tomar partido, a propor novas leituras sobre seu papel social e cultural no meio que habitam e assim buscam reivindicar nas letras, desde os anos 60, a quebra dos tabus e conservadorismos”, diz o pesquisador.

O traje contradiscurso

O rock inspira as gerações para além da vibração sonora, chacoalhando diferentes expressões artísticas. Sua influência extravasa na estética e atinge o social. Assim como as letras das músicas transmitem ideologias e atitudes, as roupas também são capazes de traduzir visualmente esses mesmos ideais. Junto ao rock, a moda se tornou um meio para expressar os valores dos roqueiros e o  pensamento contracultural e transgressor intrínseco à origem dessa  nação. De acordo com o especialista em moda, Yuri Ribeiro, quando o movimento do punk rock despontou no final dos década de 60 e início da 70, a moda se tornou uma aliada importante. Naquela época, as pessoas que faziam parte desse movimento estavam desafiando a cultura dominante e transgredindo comportamentos estabelecidos. Eles encontraram uma forma de expressar essa rebeldia visualmente, através das suas escolhas de roupas. “Os primeiros punks e roqueiros que existiram usavam roupas de brechó. Eles eram totalmente contra o consumo desenfreado imposto pelo mercado. Portanto, eles não compravam roupas, adotavam roupas de segunda mão ou reinventaram peças. É assim que começa esse flash entre o movimento punk rock e a moda. Ela se torna uma aliada na expressão da rejeição à cultura vigente e na afirmação de sua posição”, afirma.

As contribuições do rock para a moda se popularizaram e hoje marcam presença nas coleções de diversas marcas e lojas. Elementos como jaquetas de couro, estampas de bandas, jeans rasgados, tachas, rebites, coturnos e botas de estilo militar são alguns elementos que remetem à estética roqueira. A popularização dos visuais andróginos também faz parte dessas contribuições. Eles surgiram no rock como uma forma de desafiar as normas de gênero estabelecidas. Artistas como David Bowie, Freddie Mercury e Mick Jagger incorporaram elementos andróginos em suas apresentações, desafiando os estereótipos tradicionais de masculinidade e feminilidade.

Mick Jagger em concerto do Rolling Stones na Holanda em 1976 (Fonte: Nationaal Archief)

A relação entre a androginia e o rock foi profunda: ambos desafiaram as convenções sociais e promoveram uma liberdade de expressão que reverberou em gerações e resiste até hoje, marcando a forma de ser. Yuri explica que os estilistas também contribuíram para fortalecer a relação entre a moda e o rock. “No surgimento do movimento punk rock nas décadas de setenta e oitenta, há uma estilista chamada Vivienne Westwood que se destaca como precursora desse enlace entre moda e rock. Ela surge dessa cultura underground e do movimento da contracultura, passando a criar peças direcionadas para esse universo do rock. Com isso, ela alcança reconhecimento e se estabelece como uma das principais referências na moda do estilo punk rock”, explica.

 

Fachada da loja Let It Rock de Vivienne Westwood em 1972, fotografada por Masayoshi Sukita para a revista An An.

 

O papel de um roqueiro

Para além do que é posto sobre o corpo, o rock também surge sobre a folha de papel a4. O estudante Juan Carlos, de 16 anos, sabe bem disso. Citando Raul Seixas, um dos pioneiros do rock brasileiro, ele fala sobre alcançar pelo desenho o mesmo padrão de liberdade que os músicos experimentavam nas músicas e ser um tipo de “metamorfose ambulante”.

Inspirado por bandas como Black Sabbath, Iron Maiden, King Diamond, Sepultura, The Doors e Pink Floyd, o adolescente constrói narrativas que refletem o universo musical do rock. “As letras contribuem muito para o processo criativo, principalmente para a ambientação e construção dos personagens e da história. O rock tem uma capacidade escrita muito sensual nas letras. Músicas como ‘Hey You’ (Pink Floyd) ou ‘Nothing Else Matters’ (Metallica) já serviram como muitos roteiros para a construção psicológica dos personagens. Eu acredito que o rock tem essa capacidade de construção quase tão alta quanto a própria literatura”, ressalta.

Juan se inspira em bandas de Heavy Metal para criar personagens (Fonte: Douglas Gomes)

A estética roqueira, com sua fusão inspirada pela contracultura e pela autenticidade da expressão artística, permeia cada traço da arte de Juan. É pelo desenho que ele encontra a liberdade para se expressar, desafiando as convenções em busca da originalidade em suas obras. Juan se inspira especialmente no heavy metal, um subgênero musical derivado do rock marcado pela sonoridade vocal potente, aguda e gutural. “Como a maioria dos meus desenhos tem uma estética ‘sombria’ quase tudo ali eu recorro à música. Os cabelos longos, as roupas escuras, as posturas rígidas. Um modelo mais Peter Steele, do Type O Negative”, conta o adolescente.

Corpse paint, estilo de maquiagem preta e branca usada principalmente por bandas de black metal, nos desenhos de Juan (Fonte: Douglas Gomes)

O rock também pode ser um refúgio, um espaço para as pessoas se libertarem das tensões e frustrações do cotidiano. A conexão com a música e com as mensagens transmitidas pelas bandas e artistas de rock ajudam a estabelecer um sentimento de pertencimento e compreensão. Foi assim com Juan. Ele relata que, ao se mudar de Brasília para Teresina, o rock desempenhou um papel fundamental nessa readaptação de realidades. Foi no rock que ele achou um suporte tanto para o desenvolvimento artístico quanto para o crescimento pessoal. “O rock sempre teve muita coragem de seguir os próprios caminhos, [os roqueiros] nunca buscaram uma aceitação nem recompensa. Eu não acho que os desenhos devam ser compreendidos ou aceitos, eles devem ser identificados. O rock foi feito para pessoas que querem se expandir além dos padrões, os desenhos apenas seguem o rastro já traçado dele”, confessa.

Como cantava Rita, “Desconfio que não há mais cura para esse tal de Roque Enrow”. Ele se alastra e se fortalece com a bagagem construída pelos roqueiros ao longo dos anos, e essa herança é transmitida para as novas gerações. Depois de contaminados, basta expressarem um sintoma: a contestação ao que limita as existências autênticas. O rock se torna um QG para os espíritos inquietos que encontram nessa sonoridade uma maneira de se libertarem das amarras impostas pela sociedade. O rock, como já apontava Rita Lee Jones, é um veículo de  liberdade para ser quem se é.🤘🏻 

 

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