quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Este número não existe

No Piauí, números de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher não recebem chamadas; fragilidade no atendimento aumenta índices de feminicídio

12 de dezembro de 2022

Quando saía no portão de casa, Marilena Pereira costumava olhar para todos os lados da rua. Mesmo em saídas curtas, a mulher pedia a companhia de parentes ou dos filhos. Estava divorciada do marido, com quem viveu por duas décadas há cerca de 15 anos. Por conta da cobrança de uma pensão alimentícia para o filho adolescente, que tramitava na justiça, Pedro José de Oliveira, o ex-companheiro, começou a ameaçá-la. Amigos e família sabiam do histórico de violência sofrido pela mulher e, por isso, ela foi orientada a buscar uma medida protetiva fundamentada na Lei Maria da Penha. 

Marilena tinha a sensação de estar sempre sendo seguida. Em um domingo de manhã, saiu de bicicleta para fazer compras. Não conseguiu chegar ao final da Avenida Prefeito Freitas Neto, no bairro Mocambinho, zona Norte de Teresina – foi empurrada do transporte pelo ex-marido. Ali, à luz do dia e à queima-roupa, o tenente reformado da Polícia Militar tirou a vida da mulher, aos 59 anos, com uma arma de fogo. 

Testemunhas detalharam que Pedro entrou tranquilamente no carro após alvejar a mulher. Três horas depois ele foi encontrado, dentro de casa, no bairro Dirceu. “Naquele dia ela não teve tempo de ligar para ninguém, nem para a polícia, nem para a família”, conta Yaslane Rocha, filha do casal, à reportagem. 

Negra, desempregada, divorciada, moradora da Zona Norte de Teresina, assassinada por arma de fogo pelo ex-companheiro, Marilena faz parte do perfil de mulheres que mais são alvos de feminicídios no Piauí. No mesmo ano em que foi assassinada, em 2021, o número de boletins de ocorrência (B.O.s) em Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAMs) alcançou 6.629 registros – o maior número nos últimos quatro anos, segundo levantamento realizado pelo Laboratório de Estudos da Violência contra a Mulher no Piauí (Elas Vivas Lab). 

Foi também o ano com mais casos de feminicídios: esse tipo de crime correspondeu a 42,31% dos casos de mortes violentas intencionais contra  mulheres. Dados atualizados obtidos pela reportagem apontam que, no período de 2015 a 2022 (janeiro até setembro), 470 mulheres foram mortas em situação de violência, sendo 251 Mortes Violentas Intencionais (MVI) e 219 feminicídios. Os maiores casos de MVI foram contra jovens de 15 a 34 anos. Já nos feminicídios, as vítimas possuíam entre 25 a 44 anos. Os dados estão no relatório de criminalidade da Secretaria de Segurança Pública do Piauí.

Parte dessas estimativas revelam fragilidades no aparato da rede de acolhimento às mulheres em situação de violência. Para se ter uma ideia, a maior parte das delegacias especializadas, as DEAMs, se concentra na capital, onde também ficam os abrigos para mulheres em situação de risco. Apenas 3,1% das cidades piauienses possuem delegacias – sendo 7, dos 224 municípios, os que ofertam DEAMs. Quatro das sete delegacias especializadas estão concentradas em Teresina, mas elas não funcionam à noite, nem aos finais de semana. 

Nas cidades que não possuem delegacias especializadas, as mulheres precisam recorrer à Central de Flagrantes ou Delegacia de Polícia Civil mais próxima. E esbarram em outro problema: não são todas as cidades que possuem Centrais de Flagrantes e, por isso, precisam viajar para conseguir atendimento policial contra os agressores. 

A concentração do maior aparato policial na capital, por outro lado, não garante o aplacamento desses crimes. Um dos motivos do aumento de boletins de ocorrência e de feminicídios, segundo o Boletim do Observatório Mulher Teresina (OMT), é o acesso facilitado de armas de fogo dentro dos lares. Enquanto os dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm) apontam crescimento de 156% de registros de armas de fogo no Piauí, a cada dez mulheres vítimas de feminicídio, cinco foram executadas por uso de armas de fogo. Em seguida, armas brancas (29%), outros (14%) e pedras (7%). 

Segundo a pesquisa do OMT, a associação do instrumento com as mortes é importante a fim de indicar estratégias para evitar o feminicídio. Desde 2020, quando o número de registros de armas começou a aumentar, os feminicídios também acompanharam o crescimento. No primeiro semestre de 2022, dois dos três feminicídios registrados foram praticados com arma de fogo (66,67%). “Essa série histórica traz fundamentos para concluir que o desenfreamento das flexibilizações de posse e porte de arma colocam diretamente a vida das mulheres em risco”, consta no levantamento do OMT.

Outro ponto apresentado pelo relatório para pensar o feminicídio no aparato é quanto à sua ocorrência. Finais de semana, tendo a mesma proporção entre o sábado e domingo (29%), são os dias em que mais ocorrem os crimes, tanto na capital quanto em outros municípios. Os casos nesses dias chegam a 58% das ocorrências. Por outro lado, somente a Central de Gênero permanece aberta aos sábados, domingos ou feriados. De acordo com a delegada Bruna Verena, coordenadora do Departamento Estadual de Proteção à Mulher, ouvida pela reportagem, recentemente a DEAM Norte, região que concentra o maior número de feminicídios em Teresina, passou a atender mulheres em tempo integral. As outras delegacias de atendimento à mulher espalhadas na cidade funcionam somente das 8h às 18h, em dias úteis. 

Para tentar aplacar os dados de violência e feminicídio, foram aumentadas as rotas da  Guarda Maria da Penha nos finais de semana. Desde março deste ano, a guarnição decidiu estender o horário de atendimento para 24 horas. Assegurada pela medida, uma mulher em situação de insegurança aciona o serviço para que uma viatura exclusiva da Patrulha possa fazer seu escoltamento. Willyara Silva, gerente do serviço, explica que um dos desafios desse tipo de trabalho é qualificar a mão de obra policial para fazer a proteção das mulheres atendidas. “A carga emocional é muito forte, por mais profissional que seja, é impossível não se comover com as histórias trágicas que assolam essas mulheres”, explica a guarda. Atualmente, a equipe é composta por 18 guardas, sendo uma mulher e dois homens trabalhando. Na Patrulha, diferente das guarnições tradicionais, a mulher é a comandante da viatura.  

De acordo com dados obtidos pela reportagem, hoje, 64 mulheres são cadastradas no Serviço. A cada cinco dias, com ocorrências ou não, elas são visitadas pela Guarda. Para fazer parte da rota do serviço é preciso passar pelo CREG (Centro de Referência Esperança Garcia)  e, após o acompanhamento, ser inserida na lista da GCM. O número de acesso e agendamento ao serviço é (86) 3233-3798, ou presencial, na rua Benjamin Constant, 2170, Centro (Norte). A reportagem entrou em contato com o telefone disponibilizado e constatou o atendimento. 

Caixa postal, desligado ou “este número não existe”

Um grupo de mulheres preparava, na Praça do Esplanada, Zona Sul de Teresina, um ato público para lançar as atividades dos “21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher” na região, no dia 25 de novembro – data de lançamento da campanha em todo o mundo. Desde 2016, a região é a segunda zona onde mais acontecem feminicídios e casos de violência contra a mulher na capital, segundo a SSP-PI. Esse é um dos motivos de, a cada mês de novembro, as “Mulheres Articuladas”, movimento encabeçado por líderes da sociedade civil, realizarem atos públicos para engajar a comunidade contra a violência de gênero. 

A organização começa bem antes da data, com quase um mês de antecedência, para dar tempo de convidar os moradores e representantes públicos. Para esse ano, a organização queria a presença de uma delegada para falar das medidas protetivas e como realizar a denúncia. Tentaram a delegada da DEAM localizada na zona Sul, situada na Avenida Henry Wall, bairro Saci, a poucos minutos do Esplanada. Ao longo de um mês, nenhuma ligação para o telefone disponibilizado nos sites da Segurança Pública do Piauí conseguiu completar a chamada.

No dia do evento, a organização afirma ter passado quase duas horas tentando ligar para o número da delegacia da zona Sul. Sem sucesso, tentaram localizar o telefone da DEAM da zona Sudeste, a segunda mais próxima do local. Não obtiveram retorno. O evento, até o final do dia, foi apresentado pelas próprias mulheres dos movimentos da sociedade civil. “Imagina se fosse a ligação de uma mulher pedindo socorro, ela simplesmente não ia ter atendimento”, relata Marta Célia Ferreira, representante do Mulheres Articuladas, à reportagem.

Com base no relato do Mulheres Articuladas, a equipe do estadodopiaui.com, levantou os números das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher na capital. Os números são disponibilizados no site do Governo do Estado, tanto pela Coordenadoria Estadual de Políticas para as Mulheres (CEPM-PI) e da Secretaria de Segurança do Piauí. 

Ao longo de uma semana, nenhuma das tentativas de chamada aos números indicados nas páginas completava a ligação. As tentativas foram feitas por mais de um aparelho celular. Alguns números sequer existiam e outros não pertenciam mais às delegacias. O problema também se alastra nos números das unidades localizadas no interior do estado. No site Mulher Segura, por exemplo, o contato telefônico da delegacia de Parnaíba pertence a uma construtora de Teresina. 

O número da Central de Gênero, sediada na Central de Flagrantes de Teresina, responsável por atender casos de urgência no esquema de plantão, também foi um dos contatos que sequer chegaram a completar a ligação. Na página do Google Maps, uma série de reclamações registram que o número do lugar não funciona. 

Uma busca no Google com as palavras-chaves pesquisando delegacias no Piauí, mais de uma página indica números diferentes dos descritos nas páginas oficiais. No site da Polícia Civil do Piauí, no entanto, a página conta com o endereço, nome das delegadas e e-mail, mas o telefone, comumente a forma mais rápida de fazer contato, não é disponibilizado. À reportagem, a assessoria da CEPM informou que os números nas páginas oficiais do Governo estão atualizados e que verificaria o problema. Até o fechamento da reportagem, o órgão não emitiu resposta ou enviou qualquer esclarecimento.

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Categorias: Especial

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