A vida era tranquila no bairro Buenos Aires. Apesar de sempre ter sido difícil fechar as contas no final do mês vendendo “arrumadinho” na porta de casa, Fabiana Alves tinha apego pela casa onde sempre morou, por quase três décadas. Ela é uma das pessoas que precisou sair de sua casa para dar início ao projeto Lagoas do Norte, na região Norte da capital, em 2009. Fabiana, e mais de 300 famílias, vivem hoje na Ocupação Lindalva Soares. Todos fizeram um êxodo involuntário para que fosse possível o início das obras do projeto. “Precisei recomeçar tudo do zero, e não foi fácil”, conta à reportagem.
Passado mais de uma década desde a primeira vez que ouviu falar sobre o projeto que chegava à Teresina, Fabiana lembra um pouco do impacto da notícia para os moradores da área. Do dia para noite, as famílias eram informadas que o território que compreendia cerca de treze bairros na região, conectados pelos rios, iria fazer parte de uma obra avaliada em 176 milhões de dólares – financiada pelo Banco Mundial através da prefeitura de Teresina e do governo federal pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
À época, a prefeitura frisava que as intervenções sociais, ambientais e urbanísticas desenhadas pelo projeto melhorariam a qualidade de vida de mais de 110 mil habitantes da região. No entanto, com uma condição: parte da população precisaria sair de cena. “Uma das maiores incongruências do projeto é baseada na contradição de fazer um bem à população, mas tirando ela do espaço”, destaca Luan Rusvell, arquiteto popular e assessor técnico do movimento contrário ao programa, batizado de “Lagoas do Norte para quem?”
Ainda durante a chegada do projeto, a região já era notada como uma zona que possuía uma vida econômica e cultural própria. Nos bairros integrantes da região, segundo o Serviço de Apoio às Micros e Pequenas Empresas do Piauí (Sebrae/PI), existiam 2.694 empresas registradas – 45,8% composta por microempreendedores individuais (MEI) e 44,1% de microempresas. Apenas 25 empresas são consideradas de grande porte, sendo que destas, 19 estavam localizadas no bairro Aeroporto e tinham suas atividades relacionadas ao aeroporto Petrônio Portela.
Em relação à cultura, a região é atendida por duas bibliotecas municipais: a Fontes Ibiapina, no bairro Matadouro, e a Da Costa e Silva, no Parque Alvorada. Além disso, conta com o Complexo Cultural Teatro do Boi, um espaço adequado para espetáculos e oficinas artísticas em diversas áreas.
Porém, mesmo diante desses dados, a etapa denominada “planejamento e governança” do programa contrariava estudos e planos importantes para a região. A justificativa baseava-se no anseio pela requalificação urbana, que consistia em reurbanização e urbanismo das lagoas para melhoramento das vias locais. Para tanto, seria necessário a construção de equipamentos urbanos – como quadras, quiosques, decks -, a complementação da rede de distribuição de águas e das ligações domiciliares e implantação e expansão da rede coletora de esgoto e das ligações domiciliares. Além disso, estava previsto a melhoria do sistema viário principal, reforço do sistema de abastecimento de água, recuperação de diques e implantação da Estação de Tratamento de Esgoto Norte.
Na prática, nada disso aconteceu.
A primeira etapa do programa atingiu principalmente os bairros São Joaquim, Nova Brasília, Matadouro e Parque Alvorada, dos anos 2008 até 2016. Na época, mais precisamente em 2014, a prefeitura lançou o documento “Marco de reassentamento involuntário”, cujo objetivo era apresentar obras que estavam previstas para serem executadas na 2° fase. Cerca de 1.400 imóveis e 2.000 famílias seriam reassentadas para locais distantes das suas casas originárias.
Na época, a prefeitura garantiu a participação popular na decisão. Porém, muitos moradores se articularam realizando protestos em frente ao Palácio da Cidade ou na própria região buscando a presença prometida através de reuniões e oficinas. Kokeile paynplay casino viimeisimpiä tarjouksia ja nauti välittömistä talletuksista ja nopeista kotiutuksista. Pelaa ja voita vaivattomasti!
Nas áreas correspondentes aos números 2, 3 e 4 (ver mapa acima), havia um orçamento de mais de 390 milhões previsto para ser investido – sendo 50,1% oriundos do Banco Mundial e 49,9% da parceria entre prefeitura municipal e governo federal. Foi na 2° etapa que as tensões entre os moradores dos bairros Mafrense e São Joaquim e o programa, aumentaram.
No início da segunda fase, alterações na região como duplicação da Avenida Boa Esperança, trecho que margeia o rio Parnaíba no bairro São Joaquim com extensão de quase 2 quilômetros, construção de uma nova ponte sobre o rio Poti (ligando a região Norte e os bairros Santa Maria e Parque Brasil) e ampliação do Parque Lagoas do Norte tornando a região mais turística e com melhorias hidráulicas no dique Parnaíba e Poti também não saíram do papel.
De acordo com o estudo do pesquisador em Direito Constitucional, Márcio Giorci Carcará, essas mudanças marcavam as medidas mais invasivas do projeto. Na época do início dessa fase, a prefeitura de Teresina chegou a ser recebida na região com cartazes “50 anos não são 50 dias”, “Não existe Lagoas sem Boa Esperança” e “Firmino Tirano” na porta das casas. “As comunidades ali assentadas nunca tiveram apoio do estado oficial: não haviam médicos, senão parteiras, os fármacos eram substituídos pelas garrafadas construídas pela ancestralidade herdada de seus avós”, explica Márcio em sua dissertação para explicar que as mudanças feitas no plano urbano modificam a história cultural da população.
Falta de diálogo
Davina Oliveira, de 80 anos, chegou à região Norte – mais precisamente a Avenida Boa Esperança – ainda na década de 60. Por lá, fez amizades e viu os filhos crescerem. Ainda nos anos 2.000, achou estranho quando a expectativa da exploração imobiliária começou a ser desenhada na região: gente de fora construindo casas próximas à região das lagoas para ganhar novos imóveis em outros lugares quando as cheias dos rios chegassem.
“O capital abriu o olho para nossa região”, descreve a filha de Davina, Maria Lúcia Oliveira. Para ela, um dos maiores problemas do Programa foi a falta de diálogo com a população.
Somado a isso, as inúmeras denúncias de violação aos direitos das comunidades tradicionais e ribeirinhas – pescadores, oleiros, rezadeiras, vazanteiros, brincantes de bumba-meu-boi e povos de terreiros com mais de 400 lugares de culto afro-brasileiros. A rotina dessas comunidades vive diretamente em sintonia com o ciclo das águas e, sem grandes explicações, viram seus espaços sendo marcados como “áreas de riscos” e fadadas ao desaparecimento.
Em mais de uma década de implementação do projeto, cerca 1.000 famílias já foram desapropriadas. De acordo com Luan Rusvell, as remoções que provocaram a demolição das casas foram feitas de forma abusiva e sem necessidade. “Pessoas foram retiradas das suas casas e realocadas em locais distantes até seis quilômetros de onde moravam por questões estéticas”, afirma o assessor técnico. “Eles alegavam que as casas alagam, não era essa a intenção”, pontua.
O Painel de Inspeção do Banco Mundial, responsável por investigar as denúncias feitas pelos moradores ao Ministério Público Federal no segundo semestre de 2019, constatou que as remoções causaram piora na qualidade de vida da população. Isso porque, quando as pessoas foram realocadas, foi utilizado como parâmetro a qualidade de suas moradias. “Acharam que seria vantagem dar uma casa de alvenaria em troca da casa de taipa que alguns moradores residiam”, destaca Luan. “Mas não contabilizaram nas novas habitações as pessoas que estavam longe do transporte público, possibilidade de renda e o acesso aos serviços públicos, como bancos, escolas e unidades de sáude”, finalizou.
Os principais pontos destacados pelo Painel de Inspeção foram:
1) Quanto a diminuição de inundações em áreas urbanas:
2) Quanto a vulnerabilidades e ruptura de redes sociais:
3) Quanto ao restabelecimento de meios de vida para evitar o empobrecimento:
4) Quanto a divulgação de informações, consulta e participação:
5) Quanto ao mecanismo de reparação de queixas:
6) Quanto à supervisão:
A investigação feita pelo Painel de Inspeção levou um ano e três meses para ser concluída e colocou em termos técnicos o que os moradores da região já se queixavam na última década. Eles exigiam um estudo antropológico no local. O sentimento, para alguns dos mais antigos habitantes da região das lagoas do Norte, com quem conversamos, é de resistência ao poder econômico e político que e suas tentativas de interferir no território que ocupam – que outrora fora de quilombolas e indígenas – populações historicamente ignoradas pelo poder público.
Ponto final?
O dia 26 de dezembro de 2021 foi comemorado com alegria na comunidade da Boa Esperança. Chegava ao fim o contrato com o Programa Lagoas do Norte com o Banco Mundial. Segundo o diretor do Programa, Bruno Quaresma, o encerramento do contrato já era previsto – porém, o Canal do Matadouro, uma galeria que ainda está em construção, tem previsão para ser finalizada no primeiro semestre de 2022. A obra inacabada tem gerado transtorno para a população por conta do período chuvoso, tendo em vista o alagamento na região.
O motivo do fim do financiamento, em partes, pode ter sido provocado por denúncias consecutivas feitas pela comunidade – e posteriormente, constatadas pelo Painel de Inspeção. Mesmo sem o financiamento do banco – que antes tinha o objetivo de renovação pelos próximos dois anos – a prefeitura de Teresina, através da Secretaria Municipal de Planejamento (Semplan), afirmou que daria continuidade ao programa, buscando outras fontes de financiamento.
A Semplan, em nota, não explicou como se daria a execução das obras ou as “fontes”. Porém, informou que a Prefeitura de Teresina solicitou ao piauiense Ciro Nogueira, atual ministro da Casa Civil, a liberação de recursos para continuar as obras por meio de verba federal.
“Ainda com recursos do Banco Mundial, estamos retomando essa semana a obra do Canal do Matadouro, com investimento de R$ 3 milhões”, afirma Quaresma. As obras devem concluir a drenagem das áreas alagadiças e implementar a urbanização, incluindo equipamentos públicos como lixeiras, bancos, iluminação, pavimentação, aparelhos de ginástica e brinquedos, segundo explicou o diretor.
Entre o início e o fim, quem saiu – ou mesmo quem conseguiu ficar -, espera.
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