sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Muito além da dor do parto

45% das mulheres atendidas pelo SUS foram vítimas de violência obstétrica - na rede privada, taxa cai para 30%

20 de junho de 2022

Edição Luana Sena

A bolsa estourou na madrugada do dia 12 de abril de 2020, quando Mariele Sousa levantou para ir ao banheiro. Pensou que aguentaria até amanhecer, mas as contrações fortes a fizeram sair de Altos, distante 30 quilômetros de Teresina, para a Maternidade do Satélite. Mariele faz parte dos 13% de atendimentos feitos na unidade hospitalar que não pertence à Zona Leste, onde a maternidade é localizada, tampouco da cidade, mas que recorrem à maternidade para realizar o parto. A situação se reflete nas outras maternidades municipais, dos quais 41% dos partos vêm de outras cidades do Piauí.

A jovem tinha completado 22 anos uma semana antes de ter o primeiro filho. Sem acompanhante, por causa da pandemia, o marido ficou do lado de fora. Assim que entrou na sala de espera, sozinha, quis chorar por conta das dores e quase implorou por algum remédio que pudesse aliviar o sofrimento. Ouviu quando uma enfermeira sussurrou para ela: “Engole o choro, foi bom para fazer, agora aguenta parir”. Engoliu a seco o comentário e evitou fazer qualquer outra reclamação.

Em um corredor comprido, a mesma enfermeira ordenou que ela fosse caminhando para a sala de parto. A cada passo, Mariele sentia como se o bebê fosse escapar do seu ventre. Andava com as pernas quase abertas e segurando a barriga, sem derramar uma lágrima, com medo de que a mulher voltasse a lhe repreender. Já deitada na maca, os minutos pareciam demorar horas, o obstetra não chegava nem a mulher conseguia ter forças para dar a luz. Quando o médico chegou, vendo a dificuldade da criança nascer, pediu para uma enfermeira empurrar a barriga da mulher rumo ao ventre – um movimento conhecido como manobra de Kristeller, proibida em diversos países e contraindicada pela OMS (Organização Mundial de Saúde). mas ainda praticada por profissionais da saúde. “A dor foi imensa”, conta à reportagem. “Coloquei minhas últimas forças para não morrer e o Benjamin nasceu saudável”. 

Pouco mais de dois anos depois, Mariele ainda lembra do dia com tristeza. Ela tem crises de ansiedade e faz terapia para poder se recuperar da dor psicológica. “Há noites em que eu tenho pesadelos com essa lembrança”, comentou.

Segundo a OMS, o que Mariele sofreu chama-se violência obstétrica. É toda e qualquer violência cometida contra mulheres antes, durante e após o período gravídico. Para a organização, essa violência pode acontecer de sete formas: física (empurrões, beliscões ou outras manifestações de agressões), sexual (toque de algum membro da equipe médica com conotação sexual), verbal ou psicológica (xingamentos ou culpabilização da vítima), discriminação (em razão racial ou socioeconômica da mulher), falta de cuidado (práticas não recomendadas, como manobra de Kristeller ou episiotomia), omissão de comunicação (não informar procedimentos ou intervenções às gestantes) e condições inadequadas de saúde (falta de estrutura no hospital para a mãe e criança).

Ela faz parte dos quase 45% de mulheres atendidas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) que foram vítimas de algum tipo de violência obstétrica. Na rede privada de saúde, essa taxa cai para 30%. Os dados são de uma pesquisa do “Nascer no Brasil”, divulgada em 2021 pela Fiocruz, que entrevistou mais de 24 mil mulheres. Mariele ilustra bem esses números, que atestam uma maior incidência de violência em relação a mulheres em vulnerabilidade social. “Eu senti da porta o preconceito dos funcionários quando me viram. Eu sei que é porque sou uma mulher negra, com tatuagens e da periferia”, destaca Mariele.

“Mulheres negras e pobres são o principal alvo de violência durante o parto”, afirma a Subdefensora Pública Geral do Estado do Piauí, Carla Yáscar Belchior. No órgão, casos como esses têm ganhado espaço dentro das ações ajuizadas contra hospitais públicos e privados, pouco a pouco, tendo em vista que muitas mulheres demoram a reconhecer quando sofrem esse tipo de violência.

Carla Yáscar, Subdefensora Pública Geral do Estado: DPE se organiza para ajudar no combate a violência (Foto: reproduição do Instagram)

Entretanto, a Defensoria Pública do Estado não possui um núcleo que faça a catalogação desse tipo de violência para acompanhar e dar assistência jurídica à denúncia. Os casos são atendidos pelo Núcleo de Saúde da DPE. “Esse assunto ainda é relativamente novo no Piauí, o que faz a diferença na forma como os órgãos se organizam para resolver e combater essas violências”, aponta a defensora.

Outra discussão em torno da violência obstétrica é que muitas mulheres não têm a noção imediata de que estavam passando por algum episódio assim – por conta disso, os casos nunca chegam a ser denunciados. Essa situação não passou despercebida pelo “Nascer no Brasil” e, segundo Tatiana Henriques, coordenadora da pesquisa, muitas das entrevistadas não sabiam o que era violência obstétrica. “É trabalhar com uma violência que não tem nome”, destaca a subdefensora.

 

Luta por direitos

O assunto acerca da violência obstétrica tomou fôlego nas últimas semanas em Teresina. Isso porque, em março deste ano, foi promulgada pela Assembleia Legislativa do Piauí (Alepi), a Lei nº 7.750, que garante que as gestantes sejam acompanhadas por uma doula nas maternidades públicas e privadas do Piauí. A lei também assegura que as mulheres terão assistência humanizada no pré-natal, pós-parto e em situação de abortamento. O projeto é da deputada Teresa Britto (PV).

Mulheres no ato em favor da Lei do Parto Humanizado (fFoto: Movimento Doulas do Piauí)

Entretanto, a lei ganhou um novo capítulo, quando o deputado Marden Menezes (Progressistas) apresentou um PLO – Projeto de Lei Ordinária – propondo a completa revogação do texto em vigência. A solicitação leva como base o posicionamento de duas entidades médicas – Conselho Regional de Medicina do Piauí (CRM-PI) e a Sociedade Piauiense de Ginecologia e Obstetrícia (SOPIGO). As instituições protocolaram um ofício pedindo a suspensão da matéria na Alepi.

Marden Menezes sustenta que a lei possui um equívoco e que as doulas não são uma categoria profissional. O deputado ainda destaca que a lei abre margem para um precedente perigoso, tendo em vista que a profissão não é reconhecida pelos médicos.

O Movimento de Doulas do Estado do Piauí explica que as doulas são certificadas e capacitadas para dar assistência à mulher, não à equipe médica. Teresina já possui uma lei municipal que garante a presença das doulas em maternidades – as profissionais são cadastradas e reconhecidas no espaço para acompanhar as gestantes. Com a lei, essa assistência poderá ser garantida em todo o Piauí.

Audiência pública sobre a Lei 7.750/22, de autoria da deputada Teresa Britto (Foto: Movimento Doulas do Piauí)

Outro capítulo ganhou o embate entre o deputado e as pessoas a favor do parto humanizado: mulheres, gestantes, doulas e representantes de movimentos civis em favor do parto humanizado acusam o deputado Marden Menezes de usar falsos argumentos, reduzindo a amplitude da “Lei do parto humanizado” a uma lei que “beneficia” apenas uma categoria profissional – as doulas.

Leia mais: Discussões sobre Lei do Parto Humanizado voltam a Alepi; deputado bloqueia e silencia mulheres nas redes sociais

Em 2019, o Ministério da Saúde emitiu um despacho que defendia a abolição do termo “violência obstétrica”, citado para definir esses casos contra gestantes. A ideia foi abraçada pela categoria médica, assim como em Teresina, em que o Conselho Regional de Medicina (CRM) sustenta o PLO de Marden.

Em nota, o CRM-PI alegou que a presença das doulas fere a autonomia médica. A entidade criticou o fato de não serem consultados e questionaram o uso do termo “violência obstétrica”, preferindo falar em “parto seguro”. Naira Cibele, doula e especialista em Direitos Humanos, ressalta que o termo sugerido pela entidade não faz sentido, uma vez que a violência de gênero acontece contra mulheres em todo o espaço –  inclusive no momento do parto. “Uma doula durante a gestação não é um capricho, é um direito da mulher”, aponta. “A violência obstétrica existe e precisa ser nomeada para que as gestantes saibam como se defender.  Se a gente não consegue nomear uma violência, a gente não consegue fazer nada”, destaca a doula.

 

5 pontos para entender a Lei do Parto Humanizado:

  • A lei não interfere na autonomia médica ou no ato médico – o que essa legislação faz é tratar de procedimentos mais humanizados. O Artigo 11 traz a expressa proibição da doula de realizar qualquer procedimento privativo de profissional de saúde;
  • A lei não traz incentivos ao aborto – apenas faz um resguardo de ala separada na maternidade para gestantes de neomortos/natimorto ou óbito fetal, afim de evitar constrangimentos ou sofrimentos psicológicos para outras mães (Art.14.1);
  • A lei não trata apenas de regular o mercado de doulas – mas sim, assegura o direito a uma acompanhante, direito à informação e um conjunto de direitos que protegem contra a violência obstétrica;
  • A lei, no entanto, não obriga a contratação de doulas – sendo este um direito da parturiente;
  • Não viola dispositivos legais e constitucionais e já é aplicada em outros estados e municípios brasileiros.
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