“Teresina não tem mar, mas tem bar”. Esse ditado antigo para a defesa da única capital do nordeste que não é localizada no litoral diz muito sobre a cidade. Apesar de não ter a vista para o horizonte com o pé na areia, por outro lado a capital piauiense oferece a cerveja considerada uma das mais geladas do país. E isso graças ao menu de atrações de bares e restaurantes e que servem de “vitrine” para muitos músicos e que movimentam uma economia gigante, gerando empregos e renda. Porém, muitos trabalhadores reclamam do gosto amargo de uma espécie de “dinheiro fantasma da noite” que vem do couvert artístico a artistas que nem sempre é distribuído de forma justa, além da falta uma legislação mais eficaz para a gestão e controle desse recurso, que às vezes cai no bolso do empresário.
Lívio Nascimento é músico há mais de 20 anos em Teresina, com uma grande experiência na noite, discos gravados, muitos projetos, conta os calos, não só nos dedos de guitarrista, mas na forma de lidar com calotes também. Ele vive da sua arte e ostenta com orgulho, ao mesmo tempo que olha para o outro lado da balança e percebe que nem sempre isso é um mercado justo que lhe paga corretamente. Ou pelo menos justamente. Se não fosse pela sua postura de cobrar respeito ao seu trabalho como artista, principalmente na negociação dos valores de suas apresentações, ele alega que estaria perdido, já que não existe entidade ou lei que ampare quem garante o sustento da família com a sua arte.
O couvert artístico é entendido como uma taxa cobrada por restaurantes, bares, shoppings ou outros estabelecimentos comerciais por oferecer uma atração artística ao vivo. Para o seu cumprimento, existem legislações específicas que evitam danos ao cliente, com regulamentação prevista pelo Código de Defesa do Consumidor. Entre as normas, indica que o consumidor deve ser previamente comunicado, de maneira clara e ostensiva, preferencialmente na entrada no estabelecimento, sobre a cobrança do couvert, bem como do seu valor. No entanto, como trata apenas de quem paga pelo serviço, não diz nada quanto à quem recebe, como músicos.
Cada estado tem a sua legislação específica quanto às especificações dessa cobrança, mas seguindo um padrão semelhante no texto. No Piauí, por exemplo, uma lei de 2013 define que fica vedado aos estabelecimentos a cobrança do couvert sem o aviso prévio, salvo se for gratuito, bem como a fixação de informes em locais visíveis quando for cobrado. Além disso, outra, de 2017, indica que se o cliente estiver em local reservado, que não usufrua do serviço, este não pode ser cobrado. Na Câmara de Teresina, em uma busca por projetos de lei, foram encontrados dois que tratam do tema, de 2011 e 2015, ambos arquivados.
Já em âmbito federal, o tema já foi discutido neste ano na Câmara com um projeto do deputado Rubens Otoni (PT-GO) e que, desta vez, abraça os artistas. No texto, é estabelecido que os valores cobrados a título de couvert artístico deverão ser totalmente repassados ao artista contratado, além de determinar que os estabelecimentos permitam ao artista, ou a uma pessoa indicada por ele, fazer a checagem dos valores cobrados e efetivamente pagos pelas apresentações. No entanto, a proposta ainda tramita em caráter conclusivo e será analisada pelas comissões de Trabalho; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
A ausência de uma discussão sobre o tema em Teresina deixa artistas frustrados, ainda mais devido à falta de uma entidade que os representem e que leve pautas como essa para os plenários. A cantora Bia Magalhães também é artista com muitos anos de estrada e destaca que já teve muita dor de cabeça tanto com donos de bares como entidades públicas que não repassaram os valores. “A gente precisa ter uma organização, uma associação mesmo, falta isso juridicamente. A galera monta muito em cima da gente [artistas] porque não somos organizados e acabamos sucumbindo ao sistema que eles colocam”, destaca, ao mesmo tempo que alfineta a demora de entidades públicas que contratam artistas a repassarem os valores de apresentações.
A reclamação de Bia é a mesma de diversos outros músicos, que destacam omissão de entidades como a Ordem dos Músicos do Brasil, por exemplo, que, segundo eles, atua apenas para a cobrança de uma taxa, considerada alta, para registro profissional e a fiscalização de quem atua no mercado, sem nenhuma ação de defesa incisiva dos profissionais, exceto com ações de aperfeiçoamento profissional previstas no seu estatuto, mas que raramente se vê pelo Piauí.
Em outros lugares, a realidade é um pouco diferente e existe um pouco mais de força. Lívio Nascimento lembra que em São Paulo e no Rio de Janeiro, por exemplo, sindicatos dos músicos atuam com fiscalização de bares. “Nesses lugares, os maiores e não na periferia, eles vão lá e cobram o pagamento. Eles têm uma tabela mínima de valores para os músicos”, destaca.
Sozinhos nessa celeuma no Piauí, os artistas acabam sendo vítimas do que eles denunciam como um esquema do couvert, no qual os donos de bares definem o pagamento a partir do que foi arrecadado na bilheteria, que depois é rateado pelos músicos. Porém, em alguns casos eles alegam que recebem um valor baixo, o que não condiz com o movimento do local.
“Eu já passei por isso várias vezes assim de, visivelmente, o espaço ter muita gente e o couvert não ser pago integralmente. Hoje em dia já não acontece, tanto ou porque a casa já fecha um cachê, ou então dá o valor integral e mostra com uma nota fiscal quantos couverts foram recebidos e tal. Mas acho que deve ainda existir lugares que fazem isso com os artistas, principalmente os inexperientes. A pessoa que está começando agora com certeza deve passar por essa situação de dono de casa não pagar o couvert integral e aí você não tem muito o que fazer”, destaca Bia.
E se não bastasse o problema para o pagamento do cachê aos músicos, eles ainda têm que lidar com a instabilidade dos acordos. Isso porque, em alguns casos, quando a movimentação da bilheteria é maior do que o esperado, alguns empresários resolvem mudar os termos, como lembra o músico Lívio Nascimento. “Já teve caso de um local que montaram uma banda pra tocar lá e os músicos ficarem com a bilheteria. Lá estava falido e uma banda muito boa fez o espaço renascer, bombar mesmo, explodiu porque eles estavam saindo com R$ 5 mil da bilheteria. Aí a dona disse que não queria mais, porque porque ela cresceu o olho e quis ganhar o dinheiro”, lamenta.
Por conta desses problemas, alguns artistas preferem fechar um valor ao invés de contar com a sorte, ou a boa vontade dos contratantes, o que muitas vezes sai abaixo do esperado para quem ainda está começando. No entanto, muitos ainda arriscam e encontraram estratégias para não serem enganados, algo que exige uma disposição extra na hora da apresentação.
Lívio e Bia explicam que quando fecham esse tipo de contrato, contam a quantidade de mesas no local e, durante a apresentação, a quantidade de pessoas presentes para uma ideia de valor de acordo com o que foi cobrado. “É simples e fácil. Quando é bar, a gente só conta quantas mesas ou quantas pessoas entraram. Aí depois a gente pede o couvert e, em alguns casos, finge que eles tão sendo honestos”, conta em tom de ironia.
Já do outro lado, o Sindicato dos hoteleiros e garçons do Piauí (Sintshogastro), que fiscaliza os bares e casas de shows, alega que não trata desse assunto, tendo em vista que é uma negociação entre o empresário e o artista.
Marco Barbosa, que já atua há vários anos gerenciando bares na cidade, explica que sempre repassa o valor integral aos artistas, mas que a estratégia da contagem feita pelos músicos nem sempre bate com a realidade. Isso porque muitos clientes se recusam a pagar. “Os problemas mais corriqueiros sobre a recusa a pagar o couvert são eles alegando que chegaram há pouco tempo, sendo que o sistema avisa quanto tempo a mesa está aberta. Às vezes, um grupo de cinco, seis pessoas, pede para tirar metade. Vemos gente que chega no começo da apresentação do artista e que você vê que ela está gostando, está cantando, está curtindo e que no final, mesmo assim, se recusa a pagar”, lamenta. “Quando eu estou no caixa ou gerenciando à noite, que as pessoas se recusam a pagar, eu sempre coloco a responsabilidade para eles irem falar com o artista, até porque o dinheiro é deles”, completa.
Para Marco, apesar de trabalhar com cachê fechado em alguns eventos, a preferência é sempre pelo pagamento do couvert, pois o próprio artista ajuda a divulgar o evento. “Porque é uma mão lavando a outra. A gente faz nossa mídia e tal, em redes sociais e outras coisas, mas o artista também busca a via de contato deles, juntar aos fãs e seguidores e tudo mais”, finaliza.
0 comentário