Muito de uma cidade é construído pelas pessoas que contam sua história. Através da arte, essa história ganha beleza e uma notoriedade ainda maior, carregando o retrato do seu povo e a sutileza do que lhe cerca, formando um painel. O bairro Itararé, na zona Sudeste, o mais populoso da capital piauiense, já teve sua história contada de várias formas seja em livros, reportagens ou fotografias. No teatro, um espetáculo do coletivo de teatro Shangri-lá traz novamente a história da região, já contada inicialmente sob as cortinas pelo escritor José Afonso em “Itararé: a república dos desvalidos” readaptada por três vezes, com apresentações fora do Piauí, e que teve como base para uma nova peça, “Itararé: dos desvalidos às ruas vazias”, mostrando que a linguagem cênica é rica de possibilidades e que as novas realidades criam novas visões do espaço.
O Itararé tem uma área de 3,47 km2 e é há muitos anos o bairro mais populoso de Teresina, abrigando cerca de 4,88% da população, de acordo com dados de 2010 da Prefeitura de Teresina. Com uma economia voltada ao comércio e serviços, moradores dizem que é quase uma cidade dentro da cidade. Ele ocupa uma área que pertencia à Fazenda Itararé, nome de origem tupi que significa curso subterrâneo das águas dum rio através de rochas calcárias. Nele fica localizado o conjunto Dirceu Arcoverde I, criado pela antiga Cohab [Companhia de Habitação] em 1977, e o II, em 1980.
Nessa região, durante esses 46 anos, muitas histórias foram contadas, famílias estabelecidas, vínculos rompidos e novas uniões firmadas. As ruas, as praças, o carnaval de blocos, os espaços públicos ou até mesmo uma antiga locadora trazem muito de quem viveu ali, de uma infância, juventude ou a labuta. Foi essa bagagem que o escritor José Afonso de Araújo Lima, o Zé Afonso, levou para o papel na primeira construção teatral sobre o bairro, encenado em 1986. A sua obra trata essencialmente da política de habitação brasileira como pano de fundo para aspectos da cultura regionais e fez muito sucesso na época, ganhando prêmios e inspirando ainda outras peças como Raimunda Pinto Sim, Senhor, do Grupo Harém, uma outra obra prima da dramaturgia piauiense. Devido seu impacto, recebeu outras duas readaptações, em 2006 e 2014, recebendo o nome de “A República dos Desvalidos” já com um elenco dirigido por Arimatan Martins e até fundo musical com a Orquestra Sinfônica.
A nova peça que traz o bairro, teve inspiração na obra de Zé Afonso e é dirigida pelo professor, ator e diretor Clodomir Júnior. Ela estreia no dia 8 de novembro às 19h no teatro João Paulo II e conta a história do bairro Grande Dirceu (Itararé) através dos relatos históricos de seus moradores mais antigos até os dias atuais, dando vida ao passado esquecido de um bairro independente e marginalizado. A obra foi uma das beneficiadas pela lei de incentivo à artistas SIEC no edital de 2023 com um valor de R$ 20 mil, considerado pequeno tendo em vista a complexidade e custos de uma produção desse porte.
Além de valorizar o local, ela ainda traz um elenco de moradores do bairro, entre atores iniciantes, experientes e até quem nunca teve contato com o teatro. Para a direção, a “trajetória dos atores que moram no Dirceu também contribui para uma identidade cultural na peça teatral, trazendo elemento do cotidiano do bairro e arquétipos de seus moradores para os personagens”.
O próprio grupo nasceu no bairro, a partir de oficinas de teatro pelo projeto Mais Educação ministradas por Júnior, que também integrou a Cia de Teatro Renascer. Segundo o ator, o objetivo do projeto desenvolvido no bairro Dirceu foi inserir a artes cênicas como alternativa já que se trata de uma região de grande importância para Teresina, mas que carecia de representação nessa área.
Por isso o artista quis desenvolver uma linguagem específica de teatro que tivesse uma relação direta com a própria população local já que ele sentia falta de um grupo desenvolvendo um trabalho mais contínuo na região. Para o grupo, desconstruir o estigma da região é uma missão importante, pois é importante demonstrar que existem problemas sociais, mas que existem outras possibilidades de interações para além da violência. Valorizar a cultura da região, as subjetividades dos morados e toda a complexidade do bairro é dar voz à própria comunidade e apresentar o teatro como um espaço de sociabilidades, de construção e trocas de saberes.
A atriz e hoje produtora do espetáculo, Milena Araújo, destaca que a peça provoca uma reflexão acerca da realidade do bairro, da força e do passado que se conecta com o presente. “A peça me trouxe uma visão política e muito mais íntima com o lugar que eu moro desde que nasci. Também me ajudou a perceber que integro uma cultura que parte de uma história de um povo que foi marginalizado, que se reinventou, que empreendeu para sobreviver e contornar essa marginalidade, além de entender como o bairro surgiu e os reflexos disso na atualidade me ajuda a entender o meu lugar dentro de toda essa estrutura que começou lá na década de 70”, explica.
A vida imita a arte
Nesse contexto, é possível perceber a troca entre a realidade e a ficção, na qual uma se apropria da outra para seguirem suas trilhas. O ator e jornalista Maneco Nascimento acompanha a história do teatro há muitos anos, seja no palco ou nas crônicas sobre o que vem sendo apresentado nele. Para ele, um dos principais pontos em comum dos espetáculos são os diálogos, a linguagem: “O autor Zé Afonso se apropria dos falares dizeres e natureza ‘boca suja’ das periferias humanas para construir a ação dramática no contexto das casinhas recém entregues ao diverso da sociedade fragmentada em seus naturais e idiossincráticos modos de ser. A segunda montagem já foi dirigida por Zé Afonso com o elenco renovado e uns arcanos do início preservados. A natureza de enredo dramático permanecia a mesma. Mas ganhava um tom muito mais naturalista histriônico de contar cotidianos comuns das franjas e periferias de vizinhança de casas populares”, comenta.
“A reinvenção da tradição só se dá se se percebermos onde passado e presente se fundem no discurso atualizado de pensar o ato dramático e inspirar o que se tem instigado nesses novos dias.”
Maneco explica ainda que, assim como a sociedade, o teatro também se moderniza bebendo na fonte do atual, das expressões mais novas e vai se conectando com os novos públicos. “30 anos depois o Arimatan [Martins] foi convidado a dirigir. E ele encurtou o título. Ficou República dos Desvalidos. Tentou reorganizar linguagens de assinatura de seu nome. Mas o elenco, quase o mesmo da segunda montagem, e o texto base ia ganhando alguns lampejos de atualidade à pena dramatúrgica do Ari, mas com certa fidelidade ao texto original. No final, os improvisos e cacos de textos em atualização de cotidianos acabam penetrando tanto a segunda quanto a última montagem a dos 30 anos. Texto prosódico e de piauiês improvisado e um punhado de apelo ao riso pelo escatológico e sensual ribeirinho do sexo ardente das periferias urbanas”, destaca.
Para Maneco, o teatro conta com diversas fórmulas que possibilitam contar histórias, sendo necessário apenas a liberdade criativa. “Para o Teatro desempenhar a novidade sobre um material datado é necessário percorrer as novas trilhas, prospectar nova investida de campo e apreender o que se faz, pensa, reflete e incorpora um contexto de quatro décadas atrás a inauguração e tentar reinaugurar a forma sobre fórmula reinventada. A reinvenção da tradição só se dá se se percebermos onde passado e presente se fundem no discurso atualizado de pensar o ato dramático e inspirar o que se tem instigado nesses novos dias. O teatro efetivamente como manifesto-experiencia que desdobre o Ato de encenar quebrar paredes e encurtar distâncias entre personagens e espectadores. O público realmente mergulhado no drama e atualizado nas vezes do enredo de si mesmo na representatividade do outro que abre a cena”, ressalta.
Essas reflexões caem na pergunta clichê: arte imita a vida ou a vida imita a arte? O escritor inglês Oscar Wilde, aquele do Retrato de Dorian Gray, dizia que a vida imita a arte muito mais do que esta imita a vida. De fato, é inegável a influência da arte no cotidiano das pessoas, mas em muitos casos a essência da concepção artística está baseada na vivência, na simplicidade das coisas, que através das linhas da arte se tornam mecanismos de conexão particular para uma mensagem maior. O que se sabe é que teatro, a literatura e o cinema fazem muito disso quando as pessoas contam suas histórias emolduradas em um contexto histórico, social ou regional. E o que se deseja é “merda” para a nova peça e novas criações.
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