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O público não chegou

Atividades culturais chegam a ser inacessíveis para mais de 60% dos jovens no país

15 de dezembro de 2021

Edição Luana Sena

Mariana Junqueira, de 14 anos, adora pedalar,  correr e conversar. Nas horas vagas, quando não ajuda a mãe com os serviços domésticos ou estuda, navega pelo Youtube para assistir seus canais preferidos. Netflix e Amazon, outros streamings de audiovisual, corriqueiramente são abertos pela garota. Ela adora ver pela telinha, mas confessa que tem o sonho de assistir um filme no cinema.

A adolescente mora no povoado Taboca do Pau Ferrado, zona rural de Teresina. Uma viagem em torno de trinta minutos – de ônibus ou carro – marca a distância da casa de Mariana até os dois shopping centers que alocam os dois únicos cinemas do Piauí, localizados na capital. Os dois espaços, para a menina, são desconhecidos. “Nunca fui, não sei nem como é”, conta em um riso tímido. 

Assim como o cinema, o teatro é algo que ficou na memória dela através dos livros. Dos três teatros em Teresina – Teatro do Boi, Theatro 4 de Setembro, Teatro de Arena e Teatro João Paulo II -, Mariana não tem conhecimento nem mesmo da localização. “Imagino que deve ser um lugar grande, com muitas portas, cadeiras, janelas e colorido”, conta à reportagem. 

A história de Mariana ilustra os dados do IBGE –  Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – que em 2019 apontou que atividades culturais ainda são inacessíveis para mais de 60% dos jovens no país. O relatório evidencia que a produção artística e cultural é ainda inacessível para uma grande parcela da população. 

No entanto, quando se pensa em aproveitamento da cultura pelas juventudes, esse assunto é  mediado pelas condições de vida dos jovens – em  especial questões como acessibilidade e recursos disponíveis, tempo livre e normas do sistema familiar.

O filme brasileiro Bacurau, por exemplo, levou mais de 700 mil pessoas ao cinema. Porém, apesar das sessões lotadas e indicações e premiações importantes no cenário artístico, o acesso às produções nacionais ainda não é uma realidade. Em estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), cerca de 54% dos brasileiros nunca colocou os pés em uma sala de projeção. 

A barreira cultural não se restringe ao cinema. Teatro, show de dança, museus ou centros culturais não fazem parte de uma programação vivenciada por quase 70% da população, afirma o IPEA. Por outro lado, ouvir rádio e televisão é quase unanimidade entre as pessoas: apenas 0,9% nunca assistiu à TV e 5,9% nunca ouviu rádio. 

Os números também revelam um abismo cultural no país. Enquanto as metrópoles concentram 41% de todo consumo de cultura – artes plásticas, música, dança e audiovisual – cerca de 75% dos brasileiros nunca foi ou frequentou um museu. Os motivos são muitos, mas em especial, o sentimento de não se sentir pertencentes à expressão cultural. 

Essa sensação – ou melhor, impossibilidade – fere diretamente o Estatuto da Juventude (artigo 21), o qual estabelece que todo jovem tem direito à cultura. Nesse cenário, evidencia-se ainda que apenas 5,9% dos municípios possuem plano de cultura regulamentado.

“A gente tá carente”

Entre aplausos e risadas, a palhaça Rupita parou o espetáculo que fazia com o palhaço Pitchula para dizer que Teresina estava carente. A carência, no entanto, era de arte. Crianças, adultos e idosos que estavam no pátio da Biblioteca Estadual Cromwell de Carvalho para o Festival TRISCA #3 – festival de arte com criança – prontamente assentiram. No meio da plateia, uma menina de pouco mais de sete anos grita: “A gente precisa de arte!”.

Os palhaços fazem parte do Coletivo Fuscirco – uma mistura de fusca e circo. Juntos, eles fizeram uma viagem de quase 500 quilômetros com saída em Fortaleza, para o Piauí. Entre brincadeiras e piadas, eles não esqueceram de dar o recado de que, dentro do contexto da pandemia, os espaços culturais e o financiamento da cultura sofreram importantes restrições. Para se ter uma ideia, somente em 2020, trabalhadores desse setor tiveram cerca de 50% dos seus projetos suspensos e 42% foram cancelados. 

Para além do debate econômico, pensar em uma cidade que vibra cultura é passar também por outros setores: desde as bolhas sociais às geográficas. Para a produtora cultural Layane Holanda, é uma conversa que deve ser feita não apenas pelo campo da arte, mas da antropologia, da arquitetura e do urbanismo. 

“Pensar sustentabilidade e desenvolvimento é pensar qualidade de vida, e pensar qualidade de vida é pensar num espaço que contemple de maneira mais ampliada as pessoas”, analisa Layane. “Se eu tenho uma cidade que tem uma praça que é segura, se eu tenho uma cidade com ruas sinalizadas, se eu tenho uma cidade que pensa programação cultural fora das escolas e fora dos muros das residências, eu penso uma cidade que pode ser habitada”, observa a produtora cultural. 

Layane, que produz eventos voltados para pensar a infância na cidade, discute que o fato de Teresina ser muito quente faz com que as pessoas – especialmente crianças e jovens – “vivam” pouco o espaço da rua. Porém, isso não pode ser motivo para impedir um circuito cultural local em todas as linguagens de arte: música, dança, teatro, pintura, cinema. 

Por mais que haja projetos que contemplem a infância e adolescência, as ações precisam criar um diálogo com o público. Isso porque, a cidade é um organismo apresentado para pessoas dessa faixa etária logo no início da sua vida, e portanto, é preciso enxergá-la como um espaço artístico de direito – assim como educação, segurança e saúde.  

“Uma criança que conhece mercado, que conhece os bairros, os espaços públicos da sua cidade, que tem acesso a produção artística do lugar que ela habita, é uma criança que vai pertencer a esse território de uma maneira mais qualificada”, pontua Layanae. “Assim, quando adulta, vai conseguir enxergar o espaço que vive de um jeito mais crítico, mais forte e mais afetivo”, complementa.

Fortalecendo a cena

A pesquisadora em juventudes, Glória Diógenes, conta em sua pesquisa “Cidade, arte e criação” que, durante o seu estudo, encontrou um grande aporte de materiais que miravam para ampliação de índices da denominada juventude “nem, nem, nem” – nem estuda, nem trabalha, nem pretende voltar a trabalhar e estudar. Por outro lado, a intensificação da presença de jovens em facções e rotas do tráfico na paisagem das metrópoles cresce e preocupa.

Paradoxalmente, ao passo que as realidades dentro das periferias trazem dificuldades e percalços, nota-se um engajamento de experiências juvenis mobilizando-se em múltiplas experiências culturais: organização de saraus, produções audiovisuais realizadas por meio de celulares, formação de coletivos de arte, inserção em grupos de teatros de rua, dentre outros. Contrariando os caminhos normativos mediados pela via institucional – escola/universidade ou trabalho -, essas juventudes parecem condensar com repertórios que nascem das suas realidades. 

Aspectos como urbanismo, iluminação e acessibilidade também são fatores que atraem ou repelem a participação da juventude e de outros grupos em praças, ginásios, academias populares. “Uma mulher não vai se sentir segura em espaços que haja pouca segurança, ou sequer iluminação”, argumenta a socióloga em seu estudo. Do mesmo modo, ela pensa sobre pessoas com deficiências, onde a pouca quantidade de rampas, piso adequado ou banheiros com acessibilidade levam às pessoas para visitar teatros, cinemas, museus. 

Como exemplo, o EaFem – Encontro de Artes Femininas -, foi pensado e criado por universitárias que, para depois da vida acadêmica, buscavam formas de se sustentar através da arte: artesanato, dança, música. Além do gênero, questões como raça e condição socioeconômica motivaram as organizadoras a pensar como em outras festividades e eventos, o acesso das mulheres era limitado por questões sociais.

“A gente faz um trabalho de base e força tarefa pelas manas”, explica Jaísa Caldas, produtora do EaFem. Os encontros, além de fortalecerem mulheres que empreendem pela arte, também faz participações de combate ao assédio sexual, distribuição de absorventes e remédios para mulheres em raves, festas e eventos culturais. “A gente produz, elas produzem, mas a gente dá assistência também”, destaca Jaísa. 

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Categorias: Especial

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