Da casa de Cícera Viana à Universidade de Brasília (UnB), são cerca de 40 minutos de ônibus. A universidade já esteve mais longe, quando ela morava na periferia da Vila Irmã Dulce, zona Sul de Teresina. Há quatro anos, ela saiu da capital do Piauí para pesquisar sobre nanomateriais no Programa de Pós-Graduação em Física (PPGFIS). Sua pesquisa investiga as propriedades desses materiais que, invisíveis a olho nu, podem ser úteis no tratamento de cânceres, castração indolor de animais e melhoramento de tecnologias computacionais.
Para se manter na cidade, Cícera precisa da bolsa científica, com a qual paga aluguel, despesas da casa e gastos com locomoção – principalmente para ir aos laboratórios da UnB, onde passa a maior parte dos dias. Há oito meses no doutorado, como tantos outros estudantes que vivem da pesquisa, ela sentiu na pele a inconstância do financiamento dos estudos nos últimos quatro anos. As coisas pioraram quando, no último mês do governo Bolsonaro, em dezembro de 2022, a gestão anunciou bloqueio de R$ 431 milhões nas contas do Ministério da Educação (MEC). “Nunca imaginei que seriam cortadas totalmente, que tirariam isso da gente do dia para noite”, declarou à reportagem. “Sem dinheiro para pesquisa, a gente não sabe o que vai ser do país”, prosseguiu. “É desesperador.”.
Negra, mulher e nordestina como ela há poucas nos programas de Ciências Exatas. Por conta das intervenções no orçamento da educação desde o ano passado, Cícera começou a questionar seu espaço na universidade e se engajar nas lutas e movimentos estudantis que surgiam dentro da UnB para fazer pressão pela manutenção das bolsas. Nesta quinta-feira (16), quando o presidente Lula (PT) anunciou o reajuste médio de 40% das bolsas de pós-graduação do país, foi Cícera quem abriu as falas da cerimônia. Para a Associação Nacional de Pós-Graduandos, um dos principais grupos de lideranças que encabeçou o reajuste é formado por pesquisadores como a piauiense, que representa o perfil da maioria dos estudantes brasileiros.
Desde 2013, o valor das verbas destinadas às universidades congelou. A partir de 2017, sucessivos cortes começaram a pôr em risco a produção e permanência dos pesquisadores nas instituições. Nas áreas da ciência e da educação, o desmonte se tornou mais escancarado a partir da aprovação da Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos, em 2016. Nada comparado às tesouradas feitas pelo governo Bolsonaro entre 2018 e 2021, cortando as verbas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações em dois terços: de 9 bilhões, passou para menos de três bilhões de reais, segundo levantamento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Atualmente, a bolsa de mestrado é 1.500 reais, e a de doutorado 2.200 – é com esse valor que Cícera, a pesquisadora de nanomateriais, precisa sobreviver em Brasília. Caso fossem atualizadas pela inflação nos últimos anos, os valores passariam a 2.600 e 3.800, respectivamente. Para driblar a remuneração enxuta, a saída para muitos pesquisadores é mudar de país, mirando bolsas e investimentos mais justos. O fenômeno potencializa a “fuga de cérebros”, retirando uma comunidade de talentos científicos do país. A evasão interfere diretamente nos índices de produtividade brasileira: hoje 90% da ciência feita no país acontece dentro das instituições de ensino superior públicas.
Com a nova medida do governo Lula, as bolsas de mestrado e doutorado devem ter um reajuste de 40%: elas devem ficar com valores de 2.100 e 3.300 para mestrado e doutorado, respectivamente. Bolsas de pós-doutorado, de cerca de cinco mil reais, devem ter um reajuste menor, enquanto as bolsas de iniciação científica para o Ensino Médio podem mais que dobrar – atualmente, em alguns Institutos Federais, o valor chega a R$100. Durante a cerimônia, o governo afirmou que pretende dar o aumento em março, pagando janeiro retroativo. Não há previsão de novo valor para médicos residentes, cujos auxílios foram reajustados em 2022.
A Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) pedia um reajuste de 75% para todas as bolsas, na intenção de compensar as perdas com a inflação dos últimos anos. Apesar disso, comemorou o anúncio. De acordo com a entidade, desde 2013 o salário mínimo quase dobrou de valor, enquanto os auxílios continuaram os mesmos.
Com o anúncio do reajuste, Camila Fortes se emociona. Quem está na ponta da pesquisa científica desde 2018, como ela, ano em que ingressou como bolsista no mestrado, o momento é de resgatar a valorização da ciência no país. Jornalista formada pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), decidiu estudar história, saúde e comunicação no Rio de Janeiro – uma das cidades com maior custo de vida do país – pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde. “Se sustentar com esse valor da bolsa é ter a consciência de que isso influencia diretamente nas condições de trabalho do pesquisador”, destaca a pesquisadora, que também é piauiense. Atualmente, as bolsas não asseguram condições trabalhistas, como férias, licença maternidade ou qualquer outro benefício. Os programas também costumam exigir dedicação exclusiva, impossibilitando que os pesquisadores incrementem a renda com outro trabalho.
Mesmo distante do adequado e exigido pelos estudantes, o anúncio do novo governo é um recado do compromisso com pesquisadores e professores. “Ainda há muito a se fazer, mas esse foi o primeiro passo de reconhecimento do esforço dos pesquisadores”, destaca Fortes. “Apesar de tudo, das situações mais adversas, do descaso, do silenciamento, ainda resistimos fazendo ciência de qualidade”, frisa a pesquisadora, se referindo aos últimos anos do governo Bolsonaro. Agora, para Cícera e Camila, as feridas deixadas pela gestão anterior na ciência do país devem começar a cicatrizar.
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