quinta-feira, 21 de novembro de 2024

O tóxico no Agro

Senado aprova "Pacote do Veneno", projeto de lei que flexibiliza o uso de agrotóxicos e amplia a exposição da população a substâncias cancerígenas. O projeto aguarda a sanção do presidente Lula

15 de dezembro de 2023

No Brasil, 21,1 milhões de pessoas enfrentam uma grave situação de insegurança alimentar que resulta na fome, é o que destaca o relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo“, divulgado em junho deste ano pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O documento também aponta uma piora nos indicadores de fome e insegurança alimentar no país nos últimos três anos. No entanto, além dos perigos relacionados à escassez de alimentos, a presença de agrotóxicos posto à mesa dos brasileiro também representam um risco mortal para a saúde da população.

O Brasil que tem se alimentado também tem vivido o risco de ingerir um alto nível de agrotóxicos. Um em cada quatro alimentos vegetais tem resíduos de pesticidas proibidos ou acima do permitido. É o que indica o relatório Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – PARA, divulgado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no dia 6 de dezembro. O levantamento engloba dados de 2018, 2019 e 2022, uma vez que as análises foram interrompidas nos anos de 2020 e 2021 devido à pandemia. As informações foram obtidas em supermercados de 79 municípios, abrangendo todas as regiões do Brasil e considera 13 tipos de alimentos diferentes submetidos à análise, incluindo a batata, o brócolis, o café em pó, a laranja e o feijão.

Dados: Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos – PARA

Em meio a esse elevado índice de agrotóxicos na mesa dos brasileiros, segue para sanção presidencial o projeto de Lei 1459/2022, que flexibiliza o uso de agrotóxicos. Chamado de Pacote do Veneno por ambientalistas, o projeto foi aprovado pelo Senado Federal em regime de urgência no dia 28 de novembro de 2023. O presidente Lula tem até o dia 27 para aprovar ou vetar o pacote. 

O que muda?

O Projeto de Lei 1459/2022 propõe uma série de medidas que buscam facilitar a utilização e o registro de agrotóxicos no território nacional. Da bancada piauiense, os senadores Ciro Nogueira (PP), Marcelo Castro (MDB) e Jussara Lima (PSD) foram favoráveis ao pacote. O PL 1.459/2022 é reconhecido como uma versão atualizada do antigo PLS 526/1999, que tramita no Senado há mais de 20 anos. A proposta original foi apresentada ao Senado em 1999 por Blairo Maggi, que na época ocupava o cargo de ministro da Agricultura. Já o texto mais atual do Pacote do Veneno foi proposto pelo Senador Fabiano Contarato (PT/ES) na intenção de moderar riscos do antigo projeto, porém as alterações ainda enfrentam um forte repúdio dos ambientalistas. Mais de 230 organizações, incluindo Greenpeace Brasil, Fiocruz, Abrasco, Campanha Permanente contra Agrotóxicos e pela Vida, Observatório do Clima (OC), ClimaInfo, Instituto Socioambiental (ISA), WWF e Conectas Direitos Humanos, lançaram um manifesto contrário à aprovação do Pacote do Veneno.

O texto atual do projeto de lei pretende mudar as regras para aprovação e venda de agrotóxicos, revogando a atual Lei dos Agrotóxicos de 1989 e flexibilizando essas normas. O Pacote do Veneno centraliza a liberação dos agrotóxicos no Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), historicamente influenciado por grupos ligados ao agronegócio. Essa medida representa uma quebra na abordagem tripartite adotada desde 1989, que determina o envolvimento dos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde na regulação dessas substâncias.  

Leia mais: O perigo está na mesa

Entre as demais mudanças, o texto estabelece prazos mínimos para obtenção de registros de agrotóxicos no Brasil, com a opção de licenças temporárias em caso de atraso; e muda a classificação de produtos prejudiciais à saúde humana e ao meio ambiente. Dessa forma, o PL considera como “risco aceitável” substâncias associadas a condições como câncer e malformações fetais e autoriza a exportação de produtos do Brasil sem registro e que não possuem autorização para uso em território nacional, desconsiderando os potenciais perigos associados ao transporte e à possível produção em solo brasileiro.

 

O projeto propõe a implementação do Sistema Unificado Informatizado para Utilização de Pesticidas e Produtos de Controle Ambiental, organizado por meio da coleta eletrônica de dados dos receituários agronômicos emitidos por profissionais credenciados. No entanto, Olavo Castelo Branco, coordenador do Controle de Agrotóxicos da ADAPI, critica a medida e diz que ela tornará o processo de análise mais suscetível a erros. “Hoje, o profissional habilitado vai até a propriedade e verifica qual o dano que aquela praga está causando sobre aquela cultura, verifica as questões de armazenamento, verifica quem possivelmente irá aplicar o produto. Então ele passar as instruções. Agora, com esse projeto retirando o diagnóstico presencial, o diagnóstico vai ficar mais vulnerável a erros”, explica.

Outro ponto do projeto de lei Pacote do Veneno que preocupa Olavo é a autorização para a prescrição de receitas agronômicas de forma preventiva, antes da ocorrência da praga. “A gente não pode conceber esse tipo de situação porque pode acontecer que a praga nem mesmo ocorra e mesmo assim o manejo do produto está sendo feito”, ressalta. O coordenador do Controle de Agrotóxicos da Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Piauí (ADAPI) explica que as alterações propostas no PL 1.459/2022 são negativas em tendo em vista a legislação vigente. “Para fins de fiscalização, ela é péssima. A atual lei em vigor que rege o uso dos agrotóxicos é uma das mais avançadas; e o projeto de lei em trâmite é um retrocesso para a forma de cadastrar e manejar esses produtos”, analisa.

Os prejuízos na fiscalização desses produtos colocam em risco a vida, especialmente no caso dos agrotóxicos. Para Olavo, o projeto, se aprovado, deve prejudicar tanto a saúde pública quanto o meio ambiente. “Será mais difícil realizar fiscalizações a tempo de impedir ou identificar os responsáveis. Além disso, haverá falta de recursos para conduzir eficazmente tais investigações”, adverte. Apesar dos perigos associados ao uso inadequado de agrotóxicos, Olavo assegura que eles são importantes para o controle de pragas e doenças nas plantas. No entanto, ele esclarece que há alternativas menos prejudiciais que podem ser viáveis. “Hoje já temos produtos, inclusive biológicos e microbiológicos, que também têm essa função e que têm baixo resíduo, ou seja, baixa toxicidade”, diz.

O risco na fronteira 

O Cerrado já está banhado em veneno. São cerca de 600 milhões de litros de agrotóxicos dispersados anualmente no Cerrado, correspondendo a 73,5% do total consumido no país em 2018. É o que aponta O “Dossiê sobre Agrotóxicos nas Águas do Cerrado“, lançado em maio deste ano pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, uma coalizão composta por 56 movimentos e organizações sociais. Os dados do estudo consideram informações coletadas em 2021 e 2022 pela Fundação Oswaldo Cruz nos estados do Centro-Oeste (GO, MT e MS) e na região do MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), caracterizados pela predominância da monocultura de grãos, como soja e milho. O relatório técnico destaca a presença alarmante de agrotóxicos nas águas dessas áreas, evidenciando os impactos negativos dessa prática agrícola na qualidade ambiental e na saúde pública. A soja, além de ocupar a maior extensão de terras, é também a cultura que demanda a maior quantidade de agrotóxicos. Mais de 63% do total de agrotóxicos utilizados no Brasil são direcionados para a soja, seguida pelo milho (13%) e pela cana-de-açúcar (5%). A publicação enfatiza que os limites permitidos para resíduos de agrotóxicos na água no Brasil frequentemente excedem os valores máximos permitidos (VMPs) em países da União Europeia. Como exemplo, os níveis permitidos de glifosato na água no Brasil são 5 mil vezes mais elevados do que os estabelecidos na União Europeia.

Perigo que vem de cima

As formas de dispersão de agrotóxicos, especialmente a pulverização aérea, representam uma ameaça adicional além do perigo associado aos próprios produtos químicos. Segundo o relatório “Agrotóxicos e violações de direitos humanos no Brasil: denúncias, fiscalização e acesso à justiça”, produzido pela Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e pela Terra de Direitos, essa prática é marcada pelo desperdício de substâncias químicas devido à deriva técnica. Mesmo em condições ideais de vento e temperatura, apenas 32% dos agrotóxicos pulverizados atingem as plantas-alvo, enquanto 49% se depositam no solo e 19% são dispersados pelo ar para áreas circundantes. Para as comunidades locais, a contaminação resultante pode tornar a vida inviável.

Devido aos riscos da prática à saúde humana e ao meio ambiente, a União Europeia proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos em 2009. Projetos de lei que proíbem a pulverização aérea de agrotóxicos estão em tramitação em assembleias legislativas de estados brasileiros, notadamente em regiões de grande produção agropecuária, como Pará, Mato Grosso e São Paulo. No entanto, apenas o Ceará possui uma legislação vigente que proíbe a pulverização aérea em seu território, a “Lei Zé Maria do Tomé”. Essa lei foi considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio deste ano, abrindo caminho para a possível adoção de medidas semelhantes em outros estados do país. Apesar da legislação ter sido aprovada primeiro no Ceará, circula no Piauí desde 2015 o projeto de lei estadual 4696/2015, de autoria do deputado Francisco Limma, que proíbe uso de aeronaves na pulverização de agrotóxicos nas proximidades de áreas urbanas no estado do Piauí. O protejo aguarda o parecer da comissão responsável.

Em relação a pulverização terrestre de agrotóxicos, apenas o Piauí e o Tocantins têm distâncias mínimas regulamentadas por legislação específica para proteger a população. No Piauí, a Lei Ordinária nº 6.048, de 30 de dezembro de 2010, modifica e adiciona dispositivos à Lei nº 5.626, de 29 de dezembro de 2006, que trata do controle de agrotóxicos, garantindo 50 metros de distância mínima de núcleos residenciais, locais de recreação e mananciais no uso desses produtos. Nos demais estados, a pulverização é regulamentada por normativas ou decretos, o que facilita pressões para revogação ou alteração, como já ocorreu no Paraná e em Mato Grosso. Essa falta de normativas em outros estados cria um vácuo legal e de proteção para comunidades rurais, mananciais e biodiversidade. 

Não é só quem consome alimento intoxicado que corre risco de saúde, mas quem maneja os produtos diretamente na lavoura. As formas de intoxicação por agrotóxicos incluem contato direto, durante o preparo, aplicação ou manuseio do produto, e contato indireto, através da contaminação de água e alimentos. Os casos de intoxicação por agrotóxicos no Brasil afetam principalmente os trabalhadores. É o que destaca o Boletim Epidemiológico de Intoxicações exógenas por agrotóxicos no Brasil – 2013 a 2022 , divulgado em outubro pelo Ministério da Saúde. Segundo o documento, entre 2017 e 2019 houve um aumento nos casos de intoxicação por exposição acidental no país, indicando um problema de saúde pública. A diminuição nas notificações nos anos seguintes pode estar relacionada à pandemia. A maioria dos casos está ligada ao uso acidental de substâncias agrícolas, afetando principalmente trabalhadores que as manipulam. Cerca de 47,34% das notificações de intoxicação exógena por causas não intencionais foi ocasionada pelo manejo inadequado de agrotóxicos no uso agrícola. Para o coordenador do Controle de Agrotóxicos da ADAPI, Olavo Castelo Branco, o manejo dos Agrotóxicos só é arriscado se realizado sem os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) adequados. “Se tiver os EPIs, isso é minimizado, chegando quase a ter praticamente zero de risco de intoxicação, seja aguda ou crônica”, relata.

Imagem: Ministério da Saúde

Um fórum para o Piauí

Frente aos riscos associados ao uso inadequado de agrotóxicos, diversos estados brasileiros criaram fóruns para combater o uso prejudicial dessas substâncias. Apenas Piauí e o Amapá ainda não possuem um espaço dedicado a tratar desse tema, mas essa realidade está prestes a mudar. Em outubro deste ano, o Ministério Público do Estado do Piauí e o Ministério Público do Trabalho se reuniram para discutir a criação do Fórum Piauiense de Combate aos Impactos do Mau Uso de Agrotóxicos. A iniciativa está agendada para ser lançada em fevereiro de 2024, durante um evento planejado para ocorrer em Uruçuí, onde serão apresentadas palestras abordando o tema.

A iniciativa busca fomentar uma colaboração entre os promotores de Justiça, permitindo que cada um deles debata, junto à comunidade local, temas relacionados ao uso consciente de agrotóxicos. O procurador do trabalho Carlos Henrique Pereira Leite explica que o projeto é uma iniciativa do Ministério Público do Estado e que, em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a iniciativa deve atuar na proteção contra as irregularidades no uso agrotóxicos. “A ideia é que, a partir do projeto, as diversas instituições e grupos ligados ao tema possam adotar medidas para reduzir o uso de agrotóxicos e também cumprir as normas de proteção à saúde e ao meio ambiente. O Ministério Público do Trabalho entra como parceiro, tendo em vista que centenas de trabalhadores são atingidos com o manuseio e o mau uso de agrotóxicos”, afirma.

Carlos Henrique destaca que o Fórum deve colaborar com instituições governamentais e não governamentais, a comunidade científica e a população, propondo ações para combater os efeitos prejudiciais do uso de agrotóxicos na saúde. “A ideia de criar o Fórum é buscar e propor soluções efetivas, sensibilizando não apenas os produtores, mas toda a sociedade sobre os riscos da produção, transporte, armazenamento, uso e descarte dos agrotóxicos e afins no Piauí. A ideia também é propor regulamentações e aperfeiçoamento das legislações que tratam do uso dos agrotóxicos no Estado, sabendo dos riscos que o uso provoca e buscar soluções”, destaca.

 

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