domingo, 12 de maio de 2024

A violência nossa de cada dia

28 de junho de 2021

Ao ler o título acima, talvez, de imediato, o leitor possa responder: “Nossa, não”. Aconteceu comigo quando o insight de texto e de título apareceu para mim. Em uma semana, sempre que sintonizava uma plataforma gratuita de vídeos apareciam algumas opções que me chamavam atenção por se tratar de violência física. Apareciam diversas chamadas para vídeos que narravam o ato, a fuga e a não captura de um homem que havia praticado um crime no Distrito Federal. Não adepto de notícias sobre violência, procurei não ler um único texto completo nem clicar nos vídeos para não ser eu o capturado pelos algoritmos.

De algo que não sabia ao certo o que era, mas como a todo momento era atualizado na plataforma, deduzi ser algo grave e ainda não solucionado. Comecei a ouvir, nas poucas vezes em que precisei sair de casa, pessoas falando  – ora com medo, ora com deboche – sobre o assassino estar solto e sobre o que fariam caso ele ‘aparecesse’ de surpresa na sua frente, me rendi. 

Percebi então que o tema havia me escolhido. Apresentou-se como uma possibilidade para a semana em que a imprensa e o país falaram bastante sobre o serial killer que ainda não havia sido capturado, em uma ação cinematográfica que envolveu força-tarefa com 270 policiais de diferentes órgãos de segurança, três helicópteros e cinco cães farejadores. O tema da não captura, que começou como apenas mais uma notícia de crime, foi ganhando proporções midiáticas que passou a ser vitrine. 

Na ágora web midiática, diversas narrativas têm circulado. A grande mídia já fez uma cronologia da fuga, que entrou no 17º dia, com infográficos, imagens, hiperlinks e vídeos. A caçada e fuga se assemelham a um filme de ação, onde a morte cede espaço para o protagonismo da saga de não ser capturado. A leitura proposta é a de que as pessoas assassinadas são vítimas do Estado, que não manteve o assassino preso – e não da pessoa que praticou o crime, seja qual for seu diagnóstico. A internet não ficou atrás e já existem memes onde os assassinatos praticados tornam-se menores ante as visões ideológicas partidárias que ligam os principais líderes candidatos à corrida eleitoral de 2022. Pelo deboche há também um distanciamento do ponto central do ato e o autor dos crimes, que aparece como uma celebridade com feitos que não pode ter sua “imagem” prejudicada. 

Saindo do campo midiático, um popular defendeu recentemente sua tese sobre a possibilidade do criminoso  ser um “encantado”. Segundo sua percepção, ele teria a capacidade de mimetismo e invisibilidade. Ou seja, o criminoso teria poderes mágicos para fugir das polícias. 

Protagonista de uma saga, celebridade ou detentor de poderes mágicos me parecem ser a forma como a sociedade encontra para lidar com o tema da violência, seja ela natural (a qual não existe controle) ou artificial (excesso de força na produção de danos físicos). A etimologia da palavra mostra que ela  vem do latim violentia cujo significado remete para o ato de violar outrem ou a si com vis – ou seja, com força, vigor, potência, emprego da força física com intensidade. O lugar onde as três narrativas se tocam é o da naturalização da violência. Ela aparece como o ordinário da vida e não como o extraordinário, que precisa ser olhado sem medo para não nos transformar em escravos ou prisioneiros em alguma caverna digital. 

O relatório publicado este ano pelo Instituto para a Economia e Paz (IEP), mostrou que o Brasil, na edição de 2021 do Índice Global da Paz, em termos de aumento da violência, está no 128º lugar entre os 163 países avaliados no ranking – e passou a ser considerado nível baixo de paz. Dados do relatório do Ipea de 2020 escaneiam o país e revelam contra quem as armas estão apontadas. 

Num quadro ainda pandêmico da Covid-19, CPI da pandemia, manifestações pedindo o impeachment do presidente Bolsonaro, tentativa de aprovação da PL 490, suspeita de superfaturamento na compra da vacina Covaxin, esta situação romanceada ascender em importância e destaque mostra que o conceito de notícia ainda em vigor é o que Umberto Eco chamou de busca pelo anormal, ou seja: a grande mídia prefere o monstro da primeira página do que o vivo “normal”. A violência torna-se tão banal que aparece como pano de fundo para os personalismos e não para as causas. Todos os que foram mortos por Lázaro – interessante olhar que este é um nome bíblico ligado ao milagre da vida – tornam-se coadjuvantes, ou no linguajar artístico, escada para o protagonista brilhar, seja com a morte, seja com o encantamento irreal com aquele cuja existência é feita de saltos bruscos, que suspendem por algum tempo a normose da vida cotidiana.

Não há aqui uma ingenuidade de pensar uma total ausência de violência na sociedade – até porque, em algumas situações de opressão, ela pode ser uma única forma de defesa. O que pretende-se refletir é quando ela assume um estado de puro maniqueísmo ou polarização, na luta entre mocinhos e bandidos,  literalmente o humano morre.

domingo, 12 de maio de 2024
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Paulo Fernando Lopes

Jornalista. Professor na UFPI. Escrevinhador sobre retalhos das realidades. Assuntador das questões de jornalismo, mídia, cultura, política, educação e o que mais couber no cesto e minhas agulhas me permitirem tecer.