sábado, 11 de maio de 2024

Alguma coisa sobre a vida

30 de novembro de 2021

Hoje me olhei no espelho. Um ato banal e cotidiano, talvez você diga. Todo mundo se olha no espelho, diria o senso comum. Pelo menos, as pessoas que têm espelhos em casa. Acredite, há quem não os tenha, por diversas impossibilidades. Mas há também gente que pode ter muitos espelhos em casa. Talvez o número de espelhos em casa pudesse ser um dado a ser acrescentado nos questionários do Censo do IBGE. 

Além de pessoas que não têm espelhos, há pessoas que ainda têm superstições. Conheci uma que só descia o meio-fio com o pé direito. Nunca compreendi bem que diferença poderia fazer atravessar uma rua pisando antes com o pé direito que com o pé esquerdo para descer um meio-fio. Mas essa pessoa tinha essa superstição, fazer o quê. Há piores.

Sim, hoje me olhei no espelho. Quem os têm, espelhos, em estado minimamente razoável de possibilidade reflexiva, provavelmente se olha nele mais de uma vez ao dia. Há quem se olhe no espelho o tempo inteiro, inclusive. Mesmo que não haja espelhos disponíveis, mesmo no escuro absoluto, lá está a pessoa de olho nela mesma. Mais do que se olhando, se admirando. Chamam de narcisistas, acho. Não sou narcisista. Pelo menos penso que não, mas talvez pensar não ser narcisista já seja uma forma de sê-lo. Enfim, não sou de ficar me olhando ao espelho. Nem gosto muito. Sou uma pessoa comum, e cada vez mais. Me vejo no espelho ao escovar os dentes, ao pentear o que me resta de cabelos, e não muito mais que isso.

Mas hoje me olhei no espelho. Assim, deliberadamente. Sem um motivo específico qualquer. Fui para a frente do espelho, parei, fechei os olhos, respirei profundamente três vezes, abri os olhos e me olhei. Em um primeiro momento vi um homem um tanto careca, barba por fazer, em tom levemente prateado. Um pouco prateados também os restos capilares, relativamente desgrenhados. A luz da janela, entrando da direita para a esquerda, chegava também um tanto prateada: os dias andam nublados.

Olhei nos olhos da imagem refletida no espelho. Tentei saber de quem eram aqueles olhos. Não consegui descobrir ainda. Estão bem instalados nas órbitas daquele rosto que me acostumei a chamar de meu, mas que, confesso, não ando identificando muito bem. Apertei um pouco mais os olhos para tentar enxergar o que estava dentro deles. E vi outros olhos, muitos, curiosos, não sei se mais que os meus. Segurei o olhar por algum tempo, talvez minutos, talvez dias, talvez anos. Os olhos que me olhavam no espelho começaram a me observar atentamente. Aos poucos, fui identificando alguns deles. Com um pouco de dificuldade, já que iam se misturando uns aos outros. Mas, sem desviar o olhar dos olhos que me olhavam do espelho, consegui. Percebi que aqueles olhos que me olhavam eram os olhos de uma criança, e eram iguaizinhos aos meus. Segui observando. Logo os olhos da criança foram substituídos pelos olhos de um homem velho e os olhos desse homem velho eram idênticos aos meus. E brilhavam. E sorriam. E logo vieram outros olhos, sempre me espiando com a maior atenção. E outros. E outros. E eu os reconhecia. Sabia de quem eram, todos eles. 

Do nada meus olhos, os meus, mesmo, ou os que penso que sejam meus, ficaram nublados, como anda nublado o céu nesses dias. E logo começou a chover neles. Começou a chover nos meus olhos, mas insisti em seguir observando os olhos no espelho. E tantos me observavam dali de dentro que a chuva escorreu pelo meu rosto. Eram tantos olhos, tantos. Cada um, cada par, cada sequência de olhos, fui identificando. E eram tantos, tantos! Todos iguaizinhos aos meus. Iguais. Iguais. Muitos. Intermináveis. Eram olhos alegres, na maioria, mas às vezes alguns olhos tristes. Alguns muito tristes, outros decididamente felizes. Aqui e ali alguns radiantes, eu diria. Eu os reconhecia. Todos. 

Algumas dezenas de anos ou minutos depois, a chuva nos meus olhos parou. Logo só conseguia ver meus próprios olhos, os demais tinham ido para algum lugar depois da chuva. Pisquei uma, duas, três vezes. Voltei a me ver, ou a ver aquela imagem, que penso ser a minha, refletida no espelho. Os cabelos, não tantos. A calva. A barba por fazer, a boca. As orelhas. Tudo aquilo que forma o rosto que identificam com meu nome. 

Os olhos. Prestei atenção aos olhos, os que chamo de meus. Eles estavam diferentes. Algo neles havia mudado. Não sei bem o quê. Mas já aprendi que acontece, às vezes.

sábado, 11 de maio de 2024
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André Gonçalves

Cientista político, escritor e artista visual. Editor da Revestrés. Mestrando em Comunicação. Zen.