domingo, 12 de maio de 2024

O inferno no espelho

27 de fevereiro de 2023

De acordo com alguns livros de história do Brasil, quando os portugueses chegaram a terras brasileiras, dentre outras bugigangas, o espelho foi um dos objetos mais atrativos para a população indígena que já habitava estas terras. O contato com a nova tecnologia e com o estrangeiro proporcionaram a experiência de acessar a si de um lugar diferente por conta das características das outras superfícies que se encontravam mais ligadas ao mundo da natureza.  A novidade era a possibilidade do acesso e propriedade da clareza  translúcida, oriunda da cultura estrangeira. 

Os livros contam ainda que, com a chegada dos invasores e suas armas e presentes, começou outro tipo de suplício e desafio para os povos originários. Sem querer romantizar a vida, achando que antes da chegada dos estrangeiros não havia guerras, conflitos, disputas e luta pela sobrevivência. Tudo isto já existia. O que não existia era a noção de inferno trazida pelos missionários. Ensinava-se na catequização que o inferno era o lugar para onde, após a morte, iam as almas daqueles que durante a vida não cumprissem as exigências de ser do bem, lutassem contra os pecados e que não  se convertessem à religião oficial trazida nos navios. Seguindo um entendimento diferente, o filósofo Jean Paul Sartre não via o inferno como um local, mas sim na relação onde, para ele, o inferno são os outros. 

As chocantes cenas dos Yanomami divulgadas na mídia após quatro anos de descaso do governo Bolsonaro são estarrecedoras. Impossível não se comover diante da dor do outro. Hoje já é público, notório e cada vez mais comprovada a política de extermínio de  povos indígenas implantada por aquele que se elegeu destacando ter Messias no nome, e destinou Damares Alves para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A ministra de Estado que, diante de uma situação de dor, viu Jesus na goiabeira consolando-a, mas não usou a mesma piedade com seus semelhantes. O projeto de governo sempre deixou claro que havia muitos que eram considerados o “inferno” e por isto deveriam ser metralhados. No grande espelho projetado por eles, que deveria refletir a sociedade ideal dos cidadãos de bem, diversos outros, entre eles os índios Yanomani, prejudicavam a iconopornografia verde e amarela e os negócios. 

Impossível se calar ou ficar indiferente ao que vimos ganhar espaço e visibilidade após a chegada de equipes levando os primeiros socorros. As imagens e os dados apresentados revelam que propositalmente não foi feito nada para evitar a situação calamitosa. Olhando para a floresta e a fragilidade daquelas vidas humanas, cujo projeto genocida se arrasta pelo país desde a chegada dos portugueses à Ilha de Vera Cruz, a realidade dos povos indígenas parece roteiro de um filme hollywoodiano, ou melhor já é. Será que há coincidência entre o mega sucesso de bilheteria Avatar e o que chocou o Brasil, ou é mera semelhança? 

Avatar 1 e 2 mostram a luta dos Na’vi, considerados pelo exército norte-americano como seres primitivos que protegem a floresta e suas riquezas por serem fonte de suas vidas. O conhecimento e as práticas dos definidos como “involuídos e atrasados”, são considerados impedimento à realização dos projetos de pilhagem e destruição de proporção sócio-ambiental. 

Em que parte da história os dois filmes e o Brasil de 2023 se tocam? No ódio ao diferente, ao meio ambiente, ao ecossistema e no amor do capital pelo extermínio e pelo poder. Se encontram na crença de que os  “involuídos e atrasados” são bárbaros selvagens e, por isto mesmo, exterminá-los é um bem à sociedade e aos “cidadãos de bem”. Mas o projeto capitalista objetiva eliminá-los não por uma “questão existência”, ele o faz porque se acha dono de tudo e o que ainda não possui dá um jeito de comprar. Considera que todos têm um preço. Os que são e pensam diferente são considerados atrapalhando o caminho. Entre poluir um rio e incentivar a exploração livre de um garimpo, é claro que vai ficar com o segundo. 

Amplio esta discussão para todos aqueles que o sistema capitalista hegemônico considera diferente e, portanto, desviante. São subestimados por, no caso dos indígenas, estarem em maior conexão com a Natureza. E a população periférica por quererem utopicamente produzir mudanças sociais que diminuam as desigualdades, os privilégios e aumentem os espaços de inclusão.

O ódio ao diferente refletido no espelho midiático tem um preço que, até agora, só quem pagou foram os que estão em situação de vulnerabilidade social e economicamente, enquanto o lucro vai para quem aperta o gatilho ou a tecla confirma, nas eleições, para cidadãos declaradamente contrários a uma pauta a favor da vida. 

Ao sair das quase três horas de exibição de cada um dos dois filmes, podemos até nos indignar com o sistema anti-vida que destrói os mananciais de sobrevivência da sua/nossa espécie. Com a cegueira absoluta de quem diz que é tudo ficção. Não é possível comparar com o filme porque a realidade é diferente. 

O cotidiano e as inúmeras tragédias ambientais nos últimos tempos no Brasil indicam o contrário. Cada rio poluído, animal em extinção, solo contaminado, floresta devastada, população ribeirinha e indígenas mortos para a chegada do garimpo e agronegócio, mesmo com a tecnologia, o pretenso controle dos recursos e teorias produzidas para justificar aumento de capital e “o progresso” a todo momento o que os ainda faz humanos, aparece em demasia e com uma imensa força. 

Voltando ao filósofo Sartre que acredita que o inferno não é um lugar físico, mas o sofrimento provocado pela crueldade dos próprios seres humanos que, por ignorância, ainda acreditam que a única forma de impor seu modo de ver o mundo é apagar as diferenças. É preciso cada vez mais reforçar a ideia de que o outro não é meu inferno. O inferno que o outro me convida a entrar é o que vai manter a vida em fluxo e descobertas. Querer mudar esta dinâmica é aniquilar o que nos mantém vivos, criativos e potentes.  

domingo, 12 de maio de 2024
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Paulo Fernando Lopes

Jornalista. Professor na UFPI. Escrevinhador sobre retalhos das realidades. Assuntador das questões de jornalismo, mídia, cultura, política, educação e o que mais couber no cesto e minhas agulhas me permitirem tecer.