segunda-feira, 13 de maio de 2024

Redes sociais, gênero e o que está em jogo na questão das identidades

01 de fevereiro de 2023

O pensador jamaicano Stuart Hall conta que o então presidente americano, George W. Bush, na busca de restaurar a maioria conservadora na Suprema Corte americana, indicou, pelo perfil conservador, um juiz negro para o cargo. Quando o nome de Clarence Thomas foi anunciado,  fez aparecer o jogo das identidades. Eleitores brancos, mesmo tendo preconceito racial, o aceitaram pela política conservadora. Eleitores negros, que sempre apoiaram questões políticas mais liberais, se identificaram pela questão racial. Para complexificar ainda mais, ao longo do processo de escolha, o juiz indicado foi acusado de assédio sexual por uma funcionária negra. Mulheres negras ficaram divididas entre o lugar da raça e de gênero; homens negros conservadores, em relação à raça e ideologia; homens brancos liberais não apoiavam pelas ideias, o assédio e a raça; algumas mulheres brancas conservadoras concordavam com a indicação por identificação política e por serem contra o feminismo e, por fim, mulheres brancas feministas, mesmo sendo mais progressistas em relação à raça, eram contundentes na questão do assédio sexual. 

Na recente política nacional, em dois momentos distintos, um mesmo protagonista causou grande movimentação nas redes sociais em uma dinâmica identitária rica e complexa. Em 2021, pela primeira vez na história política do Brasil, um governador falou em mídia nacional sobre sua homossexualidade. Em entrevista a um programa de TV, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do PSDB, afirmou que tinha a pretensão de ser o candidato do partido a concorrer às eleições presidenciais de 2022, e se definiu como um governador gay, e não um gay governador. 

No dia seguinte à entrevista, um político branco e heterossexual o parabenizou pela coragem de assumir-se gay em rede nacional, mas não fez referências à política. Uma deputada branca, heterossexual e feminista, destacou apenas a atitude corajosa da fala sobre a orientação sexual. Um homem negro e heterossexual questionou o aparato político midiático, que apostava na homossexualidade e na desvinculação de imagem do então governador da do presidente que o apoiou e defendeu na campanha de 2018 para representar a terceira via. Uma mulher negra e heterossexual considerou importante para a causa gay um governador se assumir, mas devido ao apoio dado na eleição passada ao então presidente, destacou que isto não o tornava seu aliado.

 Um homem gay branco considerou oportunismo político e midiático, pelo fato de nunca ter lutado por políticas de acesso e melhoria das condições de vida da população LGBTQIAP+. Um homem gay negro e autodeclarado como afeminado questionou o modelo padrão em privilegiar a cisgeneridade em que gays performam masculinidades aceitas socialmente no país que mais mata LGBTs. Uma mulher lésbica e branca pontuou não haver heroísmo em se assumir gay.  Para ela – dizia – a heroína foi Roberta da Silva, a mulher trans queimada viva na rua. Mulher, travesti, negra chamou atenção para a sociedade que ainda só admite gays e lésbicas se eles dialogarem com os modelos identitários da cisheteronormatividade de masculinidade e feminilidade. 

O ponto que mais dividiu as opiniões foi o uso da homossexualidade como estratégia para se firmar como uma terceira via em um país que mais mata LGBTQIAP+, sem apresentar políticas públicas para mudar esta realidade. Como já sabemos, a candidatura à presidência naufragou na convenção do partido, mas obteve apoio para concorrer ao governo do Rio Grande do Sul. No discurso da posse como governador,  fez menção ao companheiro como seu amor e foi aplaudido de pé. No entanto, tem sido bastante criticado nas redes quanto às escolhas políticas, a ausência de políticas públicas para comunidade LGBTQIAP+, o secretariado sem representação negra, o perfil do secretário dos Direitos Humanos e a busca em desvincular a imagem do político da orientação sexual – fato que levou o governador a responder que orientação sexual não tem nada a ver com opinião política. A fala reacendeu discussões envolvendo identidade e representatividade. 

Por que trazer a comparação e estes casos para reflexão? Faz pouco tempo que se buscou entender o jogo das identidades que regeu a eleição e quase reeleição de um presidente branco, heterossexual, de extrema direita, com uma política econômica liberal ortodoxa e contrária a várias pautas sociais, ambientais, de gênero, de raça e LGBTQIAP+. Na defesa e voto do político estavam várias identidades que declaradamente se identificavam com um projeto de eliminação do diferente, a partir de um modelo hetero branco normativo do qual elas próprias não fazem parte.  

A eleição de um governador branco, homossexual, que reproduz uma proposta de governo similar e busca desvencilhar sua imagem de pautas de gênero, raça, LGBTQIAP+, aponta para uma realidade em que as referências de classe, gênero, raça, nacionalidade e sexualidade provocam mudanças estruturais, transformando as certezas que sustentaram a modernidade e boa parte da atualidade. 

Quando escreveu sobre o borramento das fronteiras que colocava os indivíduos numa crise de identidade, Hall já imaginava o deslocamento que as identidades nacionais sofreriam devido a globalização. O que não imaginava era a chegada da direita e da extrema direita ao poder, em vários países democráticos, sustentadas por identidades contraditórias que transferiram anseios e crises pessoais para a esfera política, embaladas pela polarização e o consumo de fake news. Esta dissonância cognitiva levou o Estado e a Democracia a uma profunda crise que ainda não sabemos se está superada. Por enquanto, o que está em questão para as próximas eleições é como vai se configurar o jogo das identidades e quais vão ser suas consequências políticas.

segunda-feira, 13 de maio de 2024
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Paulo Fernando Lopes

Jornalista. Professor na UFPI. Escrevinhador sobre retalhos das realidades. Assuntador das questões de jornalismo, mídia, cultura, política, educação e o que mais couber no cesto e minhas agulhas me permitirem tecer.