quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Sobre apresentações

18 de novembro de 2021

É bem provável que você não me conheça. Mesmo que nos conheçamos, é quase certo que não somos exatamente a mesma pessoa, a que você conhece e a que eu sou. Por isso prefiro dizer que quem pareço ser é apenas quem estou sendo. Mas isso não importa muito, quem há de dizer o contrário.

Há muitas pessoas que acreditam que somos o que temos. Então, me apresento. Não tenho nada, ou praticamente. Tenho diabetes. Tive Covid. Tenho medos. Tenho alegrias. Tenho esperanças, mesmo que elas vivam tentando escapar de mim. Não tenho muito mais que isso. O terreno que tinha, vendi. Os carros que tive, vendi. Os salários que tive, gastei. Sobreviver custa caro nesse país. Viver, nem imagino muito bem. Tenho um dólar na carteira, não sei bem o porquê. Esse, não vendi. Dos sonhos que tive, alguns vendi, outros doei, outros ainda trago comigo, nos bolsos. Ainda cabem muitos sonhos nos meus bolsos, inclusive estou sempre catando sonhos por onde ando. Aliás, sonhos são meu maior patrimônio. Pessoas enriquecidas chamam de “ativos” coisas um tanto desimportantes, talvez para que pareçam imprescindíveis. Já os meus ativos são umas coisas para alguns um tanto inúteis. Alguns poemas, talvez. Sonhos, lembranças, medos, esperanças. Vazios. Minhas lacunas e espaços a serem preenchidos são o que me sustenta. Veja que minha carteira de ativos é um tanto estranha.

Aprendi com uma jovem muito inteligente que não se chama as pessoas de ricas ou de pobres. Ninguém é uma coisa ou outra coisa. Ninguém é nada definitivamente, então não SÃO pessoas pobres ou ricas. Melhor dizer que ESTÃO enriquecidas ou empobrecidas. O mundo enriquece ou empobrece as pessoas. Isso ajuda a pensar que é possível que se deixe de ser uma coisa ou outra, e vai ver é por isso que pessoas enriquecidas insistem em tirar e tirar e tirar cada vez mais das pessoas empobrecidas, século após século. Ainda me apresentando, ou algo que o valha, não sou enriquecido nem empobrecido. As pessoas materialmente enriquecidas muitas vezes me olham como empobrecido, já que não possuo tantas riquezas materiais quanto elas. Já as pessoas empobrecidas pensam o contrário. São as desigualdades que fazem isso.

Mas outro dia fiquei realmente mais rico, ou enriquecido, o que seja, por ter ganhado algo muito valioso. Recebi de Europa um livro. Minha filha que o enviou. Tem o título Flecha, e é de Matilde Campilho, uma escritora portuguesa. Acho que é portuguesa. Junto do livro, veio um bilhete. Trinta e poucas palavras, ou pouco mais. Me tornei enriquecidíssimo. São essas coisas que entram no meu livro-caixa em tinta azul, na coluna haveres. O bilhete falava em saudade, amor, oceano e beijos. Imaginei o percurso percorrido pelo livro. Porto, Lisboa, Paris, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Teresina. Já  estive e sigo estando em todos esses lugares, assim como o livro que recebi. Curioso que um livro, enviado por minha filha, passe por onde já passei e só depois chegue às minhas mãos. Gosto de imaginar que o autor, no caso autora, pelo menos ela se afirma assim, pegou no livro que agora toco. Há nos livros algo de encontro. Não sei se ela ao menos viu esse exemplar, pode ser que nem isso. Mas é bom pensar que sim. Matilde, Rafaela, eu, tocando com as mãos a capa do mesmo livro. São encontros.

A vida talvez seja essa coisa que vai passando pelas nossas mãos sem que nem percebamos. E de repente nossas mãos estão ali, vazias, pendendo ao lado do corpo ou cruzadas sobre o peito. O que você tocou com suas mãos ao longo dos anos?

Por falar em mãos, Sam comprou anéis. Dois anéis, prateados. Sam tem mãos delicadas e as usa para escrever. Eu escrevo livros, mas Sam escreve melhor que eu. Ela tem mãos delicadas, e faz tempo que não rói as unhas, felizmente. E agora tem dois anéis. Eu não uso anéis, mas até senti vontade de ter um. Um anel preto. Preto é a cor que mais gosto. Dizem que preto é ausência de cor, mas acho isso pura tecnicalidade. Gosto de dizer que gosto da cor preta. Então, é cor. E eu gosto. Gosto também de não fazer nada. Há dias em que faço muitas coisas. Em outros faço ainda mais coisas. Chamam isso de trabalho. Eu gosto de fazer coisas, mas acho a melhor coisa não fazer nada. Só que faço nada pouquíssimas vezes. Mas faço meditação, e aprendi que fazer nada às vezes é tudo a ser feito. É zazen, o que faço. Zazen mais ou menos significa meditação sentada. Talvez isso seja o zen. Pensar sobre o nada. Vou tentando.

Não consegui me apresentar muito bem. Veja que não sei muito de muita coisa. Não sei nem mesmo o que vai ser essa coluna. Pode ser que não seja sobre nada, o que pode significar algo muito importante. Me parece uma bela aventura, essa da gente se jogar em algo sem saber exatamente o que será. Volta e meia me pego fazendo isso. Repetidas vezes. E, mais uma vez, comecei. Espero que se permita se jogar pelo menos um pouquinho comigo. Irei me desfolhando por aqui, descobrindo o que esse espaço pode ser e o construindo com você. Mas não espere muito. Não crie expectativas, é melhor criar cactos. Ou ursos.

Sem ganho, sem méritos. Apenas, sendo.

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André Gonçalves

Cientista político, escritor e artista visual. Editor da Revestrés. Mestrando em Comunicação. Zen.