Em um cenário que já é de fragilidade devido à complexidade do tipo de atendimento, a situação de vulnerabilidade, somada ao medo, dezenas de mulheres vítimas de violência em Teresina estão passando por mais um constrangimento no meio de um imbróglio entre a Prefeitura e a Arquidiocese. Com o fim do Centro de Referência da Mulher em Situação de Violência Esperança Garcia – CREG- e a transferência dos serviços para um novo espaço provisório, os órgãos brigam pela continuidade dos acompanhamentos numa guerra de ofícios, datas e farpas, enquanto quase 400 vítimas estão perdidas em meio a isso.
O problema iniciou-se ao pé do plano de inauguração da Casa da Mulher Brasileira, obra da Prefeitura Municipal de Teresina, que tinha previsão de funcionamento para agosto deste ano e centralizaria diversos tipos de atendimentos às mulheres, desde às relacionadas à proteção à cuidados, defensoria pública e etc. Antes da ideia desse novo espaço, as ações de assistência à vítimas de violência já vinham sendo realizadas há 8 anos pelo CREG, gerido pela ASA – Ação Social Arquidiocesana- e que seguia um protocolo de atendimento com metodologia reconhecida pela Organização das Nações Unidas. Com a criação do novo centro, elas seriam apenas transferidas para lá, onde dariam continuidade aos atendimentos.
No entanto, a Prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres, só renovou o contrato com a ASA até o meio do ano com aditivos, pois faria a gestão na nova casa, o que gerou desconforto na Arquidiocese, que acusa de desorganização e despreparo com as vítimas que seriam prejudicadas com a transferência para novos profissionais, enquanto a gestão municipal diz que o contrato tinha um valor alto e que não teria como bancar dois espaços, além de que tem capacidade técnica para seguir com os atendimentos.
O Ministério Público entrou no imbróglio e abriu um processo administrativo para acompanhar o caso. De acordo com a promotora Maria do Amparo Paz, a preocupação maior é com os atendimentos que estão em andamento. Isso porque com o fechamento do CREG no último dia 11, as mulheres ficaram desassistidas. “É a interrupção do atendimento. Não importa se foi um dia ou três. Desde do dia 11 lá fechou, só recebemos o comunicado formalmente no dia 12 informando que ele [atendimento] foi interrompido. Soubemos informalmente que foi criado o núcleo na quinta (dia 21) e até o momento não recebemos da Secretaria, nenhum comunicado. Um total despreparo para administrar uma crise. Portanto, está tendo a interrupção”, lamenta.
Segundo a promotora Amparo Paz, os documentos das vítimas em atendimento no CREG que estavam com a ASA serão repassados para a Secretaria da Mulher nesta terça-feira e será feita uma cobrança sobre a qualidade dos acompanhamentos. “Queremos saber como essas mulheres serão acolhidas e, inclusive, acionaremos uma perícia para saber se o ambiente é adequado, quem são os profissionais e quais as funções”, destaca.
Por outro lado, enquanto aguarda o recebimento dos prontuários das vítimas em atendimento, a SMPM alega que a ASA tem colocado dificuldades no processo, que vão desde a demora para repassar as informações e até mesmo o apagamento dos e-mails recebidos na conta do centro, que continham informações que poderiam ajudar nos acompanhamentos. Mas apesar dos problemas, o órgão alega que todos os atendimentos serão continuados. “Muitas dessas mulheres já estavam em processo de desligamento, tanto que a Guarda Maria da Penha estava monitorando 89 mulheres desse número [cerca de 370]”, destaca Malena Alves, psicóloga do Núcleo Provisório de Atendimento.
A secretária da SMPM, Karla Berger, garante que a Casa da Mulher Brasileira será inaugurada até novembro. As obras já estão finalizadas e faltam apenas as licitações para a compra de mobiliário e equipamentos. Enquanto isso, os atendimentos seguem no espaço provisório, chamado de Núcleo de Atendimento e Acompanhamento às Mulheres em Situação de Violência Doméstica e/ou Familiar e outras de Gênero – Esperança Garcia, que será administrado pela Gerência de Enfrentamento à Violência e Empoderamento Feminino, da SMPM. Ele começou a funcionar nesta segunda-feira, 25, e foi oficializado através de decreto na última sexta-feira. Contará com o apoio de equipe multidisciplinar do próprio quadro de servidores que integram a SMPM, composta por duas Assistentes Sociais, duas) Advogadas, duas Psicólogas e um Terapeuta Holística, com funcionamento das 07h30min às 17h. Ele fica localizado na sede da secretaria, na Rua Agripino Maranhão, n° 235, Bairro dos Noivos.
Enquanto existe a promessa de fiscalização dessa nova equipe pelo MP visando amenizar os problemas da revitimização das mulheres, ex-funcionárias do CREG alegam que isso já existia antes de toda essa mudança. Isso porque havia uma rotatividade grande de membros da equipe, o que fazia as vítimas terem que relembrar suas violências para profissionais que substituam os antigos e que seguiram com seus atendimentos. Esse ponto é, portanto, um dos mais delicados, independente das farpas trocadas.
Por outro lado, a ASA, em nota, afirma que as contratações são feitas com fins de evitar “empreguismo”, que pode ocorrer pela Prefeitura: “Esclarecemos que todas as pessoas contratadas pela ASA para prestarem serviço no Centro de Referência, como as demais que estão nos outros Serviços da ASA, são selecionadas, mediante apresentação, avaliação de currículo, bem como entrevista, evitando-se uma relação de empreguismo ou beneficiamento de quem quer que seja”.
Revitimização
Malena Alves, explica que existe uma preocupação e um cuidado especial com a revitimização das mulheres, um procedimento que está tendo uma atenção à parte nesse momento de acolhimento. Ela destaca que já existe uma norma técnica nacional de Centros de Referência à Mulheres vítimas de violência para os atendimentos e acompanhamento sigiloso e individual. “É um serviço de acordo com a política pública da mulher. E temos que levar em conta que nós psicólogas, assistentes sociais e advogadas somos resguardadas por nosso código de ética profissional onde o sigilo e a escuta qualificada devem ser cumpridos. Em outros espaços como nos procedimentos de investigação do crime, no constrangimento de ter que falar para homens, policiais e suas histórias deslegitimadas, em ter que expor detalhes da sua intimidade… tudo isso se trata de mais uma violência. E o pior é que muitas vezes leva a mulher a desistir do processo. E essa equipe multiprofissional e qualificada dará continuidade ao acompanhamento”, destaca.
Esse processo é tão traumático que a Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado aprovou, no início de agosto, um projeto de lei que prevê o uso de técnicas de depoimento que protejam a intimidade e integridade física e psíquica de mulheres vítimas da violência doméstica. Autora do PL 628/2022, a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) alega que alteração na Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006) evita a revitimização em ações cíveis nas quais essas mulheres sejam parte.
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