Num horário conhecido pelo piauiense como o “pingo do meio-dia”, Jéferson está tentando juntar alguns trocados para alimentar as duas filhas num cruzamento do bairro Ininga, zona Leste de Teresina. Para se esconder do sol, ele usa um chapéu e uma camisa longa, mas o suor na testa e os olhos cansados comprovam que isso não o protege da sensação terrível de calor. O seu local de trabalho é um dos locais mais quentes da capital, de acordo com dados do Plano de Ação Climática da capital, que criou uma espécie de “mapa da quentura”, listando os bairros que mais sofrem e acendeu o alerta para ações urgentes da população e do poder público diante da crise climática, principalmente nas regiões mais vulneráveis, enquadradas na categoria de “risco” a “extremo risco”, de acordo com dados do Índice de Vulnerabilidade do Banco de Desenvolvimento da América Latina.
O relatório de planejamento executado pela Secretaria Municipal de Planejamento da Prefeitura de Teresina foi elaborado com base em estudos realizados pela equipe da Agenda 2030. Nele, foi constatado que Teresina tem apresentado níveis de aquecimento superiores ao que é sentido no resto do mundo. Enquanto o planeta aquece numa média de 1,1°C, segundo a NASA, Teresina esquenta 2ºC, o que representa o agravamento de problemas em várias áreas, como saúde, educação e até gestão pública. Para quem vive na cidade, a sensação é que o segundo sol da composição de Nando Reis, interpretada por Cássia Eller, já chegou na capital piauiense.
O documento não apresenta mais um sol na capital, mas traz um esquema detalhado dos diversos fatores que envolvem a questão climática, como localização, vegetação e as chuvas, além de um mapa com as regiões mais quentes, as chamadas regiões com maior suscetibilidade a ondas de calor, com períodos de no mínimo três dias de tempo excessivamente quente. Nele, percebe-se um maior risco desses eventos nos bairros Fátima, Horto, Ininga, Jóquei e Planalto, que são zonas de pessoas com maior poder aquisitivo da cidade, com área comercial e de lazer, mas pouco arborizadas.
Além dessa região, o relatório aponta ainda para outros bairros que possuem uma vegetação maior, mas que também são áreas com elevado risco de ondas de calor. São os os bairros Jacinta Andrade, Portal da Alegria, Padre Eduardo, Palitolândia, Parque Brasil, Santa Maria do Codipe e das Vassouras, Dilma Roussef, Padre Humberto e Angelim, considerados os bairros mais quentes e secos, nos quais são registradas secas frequentemente, além dos bairros Promorar, no Parque Piauí, Santa Fé e Porto Alegre, que podem ser potencializados pelas ondas de calor. Isso você pode conferir no mapa abaixo, que constam as regiões mais quentes atualmente em tom de amarelo mais escuro.
O mapa indica algo que está acontecendo, mas que pode piorar ainda mais. O coordenador da Agenda 2030 em Teresina, Leonardo Madeira, explica que as projeções ao longo do ano são negativas e que são necessárias medidas urgentes. “Nós temos manchas importantes em alguns bairros da cidade que nos mostram o tamanho da vulnerabilidade à formação de ilha de calor. Ou seja, a ilha de calor já existe, a tendência dela é só piorar. E uma dessas manchas está ali na região do bairro Jóquei. Então, de fato, ali existe uma ilha de calor importante, a tendência dela é piorar muito, por isso que ela vai avermelhando ao longo dos anos. As projeções são bem ruins para aquela região”, destaca.
A quentura que molesta
Ao que parece, esse segundo Sol de Nando Reis ainda não realinhou nada na cidade, mas trouxe calor, que o teresinense já sente literalmente na pele a onda. Na segunda-feira, 21 de agosto, internautas registraram 46 graus em Teresina em aplicativos de celular, que ainda conta com a baixa umidade de ar para dificultar ainda mais a vida. Esse foi um dos dias mais quentes do ano. E podem vir dias piores, segundo especialistas.
No entanto, apesar do susto da imagem publicada em perfis de fofoca, os dados oficiais da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) indicam que apesar de Teresina ter registrado a a maior temperatura de 2023 na última segunda-feira, os números não chegaram aos 46ºC, mas sim aos 38,8 ºC, sendo que a maior temperatura registrada na capital nos últimos anos foi em 2018, quando atingiu 40,4 ºC.
Para quem trabalha na rua, como Jéferson Pereira, de 35 anos, alguns dias são insuportáveis. Ele faz malabares em sinais da cidade há cinco anos para alimentar as duas filhas e conta que a sensação térmica do bairro Ininga é diferente do local onde mora, na Pedra Mole. “É muito mais quente porque aqui (no Ininga) tem mais asfalto. E existe o horário entre 1 às 3 horas, que é o horário mais quente e tem menos oxigênio para pessoa respirar. Sinto até falta de ar por causa da queima de combustível dos carros. Isso ainda sem contar com o sol quente, o calor”, conta.
Pega fogo…
Enquanto Jéferson reclama dos gases poluentes dos carros no seu local de trabalho, em casa, no bairro Pedra Mole, ao abrir a janela, o problema é outro: a fumaça das queimadas, que além do calor, ainda vem com um aviso das cinzas que invadem os cômodos. Isso não é distante de se ver. Basta olhar para o céu azul numa tarde de Teresina e perceber o triste contraste com o cinza da fumaça para comprovar que nessa época, existe algo que incrementa essa onda de calor, o que tem impactado principalmente as comunidades mais periféricas.
Segundo Leonardo Madeira, “a interpretação que a gente pode tirar, em bairros como Santa Maria da Codipi, Porto Alegre, Jacinta Andrade e outros que ficam no limite entre a zona urbana e a zona rural é que as ondas de calor os colocam numa condição muito ruim. E muita susceptibilidade a queimadas. Inclusive, vi isso na prática quando a gente foi fazer um projeto no Residencial Gaioso, quando sentimos o quanto o calor está impactando a comunidade, as famílias, e o ambiente está muito seco e a vegetação muito seca”, destaca, acrescentando que é algo que outras regiões mais centrais não vão sofrer também. “O Jóquei vai sofrer com a ilha de calor. É como se fosse um forno ali, evidentemente provocado pelo processo de urbanização, o asfaltamento de todas as ruas, muito concreto, enfim, você quase não tem áreas verdes, uma condição favorável para à radiação. Então, o conforto térmico nessa região quase não existe”, complementa.
O problema das queimadas já acendeu o alerta, não somente em Teresina, mas em todo o Piauí, que é o quarto do país em maior número de focos de incêndio. De acordo com dados do Programa Queimadas (BDQueimadas), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), somente no mês de julho, foram quase 500 ocorrências em todo o estado, a maior desde 2012. Na capital, vários órgãos estão preocupados com os riscos que vão além do calor, como a CCR Aeroportos, concessionária que administra o Aeroporto de Teresina, que alerta para a fumaça nas proximidades do sítio aeroportuário que pode provocar acidentes e problemas nos voos, além de ser um crime previsto no Código Penal, Art. 261: praticar qualquer ato que possa impedir ou dificultar a navegação aérea ou expor a perigo aeronaves são crimes, com pena de dois a cinco anos de prisão.
No caso de ocorrências de queimadas a população conta com poucas armas para o combate, sendo uma delas a denúncia, informando os possíveis focos, através do telefone da Defesa Civil 199 (ligação gratuita). Outro contato é um canal de atendimento da Coordenação de Incêndios Florestais da Semarh, no qual pode-se denunciar incêndios descontrolados ou queimadas ilegais em todo o Piauí através do telefone (86) 99421.6693.
Bonito pra chover?
Além das queimadas, provocadas pelo mato seco, outro fator que intensifica o calor e já é sentido pela população é a falta do tradicional e belo ditado “está bonito pra chover”, comumente dito pelo teresinense diante do céu cinza, mas não de fumaça. De acordo com um estudo do Centro de Eficiência em Sustentabilidade Urbana – Cesu – as chuvas hoje na capital estão mudando, se tornando tempestades, provocando estragos maiores a prédios públicos e privados, causando mais alagamentos e demandando mais do poder público. Além disso, houve um aumento do período chuvoso com a elevação brusca das temperaturas assim que as chuvas cessam. Se antes os meses de maio, junho e julho eram caracterizados pela brisa e ventos que amenizavam a sensação térmica, hoje tem-se um aumento do período de calor. Ou seja, o B R O Bró está chegando mais cedo e com ele o sofrimento.
O estudo do Cesu aponta ainda que quando se trata da crise climática, a situação de Teresina é de risco a extremo risco, levando em conta o Índice de Vulnerabilidade do Banco de Desenvolvimento da América Latina. Isso porque a capital apresenta valores que performam abaixo da média nacional, para as variáveis “vulnerabilidade à mudança climática”, “exposição”, “sensibilidade” e “capacidade adaptativa”.
[Leia mais em: “A cidade frita”]
Teresina apresenta, portanto, alta vulnerabilidade à mudança climática, extrema exposição, alta sensibilidade e baixo risco com relação à capacidade adaptativa. Contudo, o relatório aponta que é importante reconhecer que a mudança climática impacta nos territórios dentro da cidade de forma diferente, expondo populações vulneráveis a um risco maior de sofrerem com efeitos mais severos.
O mundo frita!
O pesquisador do departamento de Química da UFPI, o professor doutor José Machado de Moita Neto, destaca que o mês de julho deste ano quebrou os recordes de temperatura desde 1850 em cerca de 0,25ºC. E o aumento, que pode ser pequeno, produziu ondas de calor em todo o mundo, que agora podem ocorrer a cada 5 a 15 anos. “Este ano pode ser o mais quente já registrado – e o ano que vem provavelmente será ainda mais quente”, explica.
Machado destaca que é necessário uma discussão urgente sobre as ações para melhorar o clima na cidade, mas que isso não é uma reclamação nova, lembrando que no livro Um Manicaca, de Abdias Neves, obra que documenta Teresina no apagar das luzes do século XIX, já se reclamava do calor. “Não existem políticas públicas que possam melhorar o clima de Teresina, mas é possível introduzir intervenções legislativas para garantir na cidade e nos conjuntos residenciais um microclima que traga maior qualidade de vida aos habitantes”, finaliza.
“Este ano pode ser o mais quente já registrado – e o ano que vem provavelmente será ainda mais quente”
Para o professor, que também é especialista em ciências ambientais, a sensação de calor que o teresinense tanto reclama não corresponde ao aquecimento global. “Nosso organismo não tem sensibilidade para pequenos aumentos de temperatura e nem a nossa memória é melhor que registros históricos de tais variáveis”, explica José Machado.
Diante disso tudo, voltando à composição de Nando Reis, talvez o teresinense não tenha visto de fato os dois sóis, mas hoje vê a vida que arde sem explicação.
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