José* tinha 15 anos quando voltava da escola com mais dois amigos, da mesma faixa etária, quando avistaram escrito no muro de um terreno abandonado as letras PCC. Para os garotos, nada mais era do que apenas três letras. Mas, poucos anos depois, José entendeu que aquela sigla marcaria a história de alguns jovens – alguns deles, seus amigos – da Santa Maria da Codipi, região onde mora.
Fundado em 31 de agosto de 1993, no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté -130 km da capital paulista- o PCC (Primeiro Comando da Capital) tinha como inspiração o lema “Paz, Justiça e Liberdade”. As palavras de ordem são originalmente do Comando Vermelho, grupo criminoso do Rio de Janeiro, nascido no final dos anos 1970, durante a ditadura militar.
O que parecia bem distante dos piauienses hoje é realidade, e faz com que a população constantemente relate a necessidade de esforços em relação a segurança pública do estado. De acordo com o Anuário de Segurança Pública, comparando os números dos anos de 2019 e 2020, o Piauí teve um aumento de 21,12% no número de crimes violentos. Foram registrados 711 em 2020, contra 587 crimes no ano de 2019. Na capital, o aumento de Crimes Violentos Letais Intencionais foi de 25,31 % – 36% das ocorrências na zona Sul de Teresina.
No primeiro semestre de 2021, em levantamento realizado pelo G1, 348 pessoas foram vítimas de crimes violentos durante os seis primeiros meses no estado. Os dados colocaram o Piauí entre os seis estados que tiveram altas em assassinatos neste ano, em comparação ao mesmo período de 2020. Neste mês de novembro, em apenas uma semana, um jovem foi morto a tiros durante uma partida de futebol e dois adolescentes cujas famílias denunciaram o desaparecimento, foram encontrados mortos.
Segundo o levantamento, feito com base em dados da Secretaria de Segurança Pública do Piauí (SSP-PI), em janeiro de 2021 foram registrados 56 homicídios, 52 em fevereiro, 43 em março, 68 em abril, 71 em maio e 58 em junho. Já a soma total de assassinatos no primeiro semestre de 2020 foi de 321.
“Amigos meus foram se envolver com o PCC e acabaram mortos”, diz José*. “Eu não os julgo, alguns deles não tinham nada, às vezes nem para comer em casa e viram no tráfico uma oportunidade de ganhar uns trocados”, explica.
Marcondes Brito, pesquisador em segurança pública, em sua tese – Cartografias do tráfico: Uma análise comparativa entre os estados do Piauí, do Ceará e da cidade de Juarez no México – analisa que o tráfico de drogas adquire a cópia da estrutura do Estado capitalista, inserindo os jovens no tráfico através do consumo. Para isso, são utilizadas atividades criminosas e extremamente mortíferas para a juventude.
O tráfico não é uma atividade econômica qualquer – figura-se como o 3º PIB do mundo. É uma atividade que movimenta alto valor em dinheiro, estimulando não só as disputas de facções criminosas por territórios de distribuição e venda, mas também as rotas de produção.
“Ainda que tenha essa visão de violência, que é real, o tráfico movimenta o bairro economicamente. Boa parte da galera que eu acompanhei que entrou no crime foi por isso”, conta José*.
Para o pesquisador, o capitalismo propõe que alguém só existe se consumir – no entanto, não há ferramentas para proporcionar isso. Em linhas gerais, a criança ou adolescente se “alista” nessas organizações criminosas para se auto afirmar enquanto sujeito, tão logo existir.
Piauí vira alvo
O Nordeste tem se tornado rota das facções. Depois da internacionalização do aeroporto de Fortaleza, a cidade tornou-se o ponto mais próximo entre a África e a Europa. Então, as organizações criminosas que lidam com o tráfico passam a ver o Nordeste como nova forma de expansão. “Se você olhar o Piauí, o estado tem um dos menores contingentes policiais do Brasil”, aponta Marcondes. O Piauí tem 6 mil policiais militares para monitorar 224 municípios e uma população de 3 milhões de habitantes. “Para o tráfico, o pouco contingente policial é um facilitador”, diz.
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O Piauí faz divisa com quatro outros estados e, pelo menos três deles, são produtores de drogas. Para as facções, um estado que não tem mercado suficiente, que é o caso do Piauí, é um estado que serve de canal, sendo atravessado de forma farta com drogas e substâncias tóxicas. “Se você negociar com a institucionalidade, o Piauí se transformaria, na melhor das hipóteses, em um dos maiores depósitos de drogas do Brasil”, afirma Marcondes.
“O Piauí é um espaço muito atrativo para o crime organizado. Com o histórico de crime vinculado às instituições de organizações criminosas, fica ainda mais fácil você estabelecer, se for um criminoso de boas relações”, comenta o pesquisador.
Em busca de soluções
José* conta que não vê nenhuma outra intervenção que não seja partindo da própria comunidade. A igreja e os grupos de jovens são os que comumente provocam discussões sobre o tema, promovendo alguns eventos no intuito de trazer a juventude para um outro olhar além da realidade do crime. “Eu tive a oportunidade de entrar no crime, mas a igreja me alertou e me mostrou outro caminho”.
Marcondes analisa que instituições como a Secretaria de Segurança do Piauí, precisam entender o real papel de segurança pública, e trabalhar de forma integrada para monitoramento dessas facções, entendendo como elas atuam e quais medidas devem ser tomadas para evitar seu avanço. “Precisamos ampliar a noção de segurança pública, isso não é só um caso de polícia”, defende.
O pesquisador chama a atenção que, em espaços com menores desigualdades sociais, a criminalidade também é menor. Em espaços onde há políticas culturais, políticas sociais, políticas de educação e de renda integradas, uma reestruturação das polícias com carreira de valorização, capacidade investigativa e investimento em tecnologia, costumam apresentar um índice de criminalidade menor. “Nós (o estado brasileiro) fizemos a escolha errada”, diz o professor. “A gente colocou na cabeça que prender pobre é enfrentar o crime. Essa é a pior de todas as escolhas”.
Na última terça-feira, 23 de novembro, o Piauí recebeu um total de R$ 25 milhões destinados à área da segurança pública. O repasse foi anunciado pelo Governo Federal, por meio do Ministério da Justiça. O valor é proveniente do Fundo Nacional de Segurança Pública e deve ser investido em ações de fortalecimento das forças de segurança e valorização dos profissionais.
O recurso deve ser aplicado em ações nos eixos exigidos pelo governo, sendo destinados 20% para o eixo de Valorização dos Profissionais de Segurança Pública e 80% para o Fortalecimento das Instituições de Segurança Pública e Defesa Social. Isso abrange equipamentos, tecnologia, capacitação, valorização e a melhoria da qualidade de vida dos profissionais de segurança pública.
“Não se faz segurança pública só com dinheiro”, diz Marcondes. Ele aponta que, embora necessário, o dinheiro deve ser investido em inteligência, pois o trabalho da polícia é atuar para que o crime não aconteça, e não o contrário. “A polícia aqui é chamada para estancar sangria”, comenta. “Quando o crime já aconteceu é uma noção latente que o trabalho policial falhou”.
Um levantamento da CNN, com base no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, apontou baixo investimento em inteligência e informação. Todos os 27 estados investiram mais de R$ 157 bilhões em segurança pública, mas apenas 1,2% do total gasto foi para inteligência. No Piauí também não é diferente. Em análise feita pelo Observatório de Segurança Pública, o estado não dialoga com os estudiosos – para que se trabalhar a inteligência é fundamental o diálogo com a academia, a fim de ter acesso ao levantamento de dados que ajudem a entender como funciona o problema da segurança pública e como agir de forma preventiva.
Para os pesquisadores em segurança pública é necessário construir um novo pacto de entendimento, pois nenhuma instituição policial avançou no enfrentamento da criminalidade sem o diálogo com instituições de pesquisa. E o plano de segurança pública precisa ser revisto e refeito em diálogo com a universidade e a comunidade para que se possa discutir sobre o encarceramento em massa – uma medida que não é solução para o problema da segurança pública no Piauí.
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*Nome alterado para preservar a identidade da fonte
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