quinta-feira, 21 de novembro de 2024

“Também morre quem atira”?

Diante de uma (necro)política, o estado propõe algumas soluções para tirar a mira nas costas da população negra, mas será que funciona?

29 de janeiro de 2024

Antes do sol nascer, o policial militar F. já está de pé depois de uma noite mal dormida. Se asseia e respira fundo à frente do espelho como se fosse aspirar uma dose cavalar de coragem. Olha seu rosto negro e percebe sinais da idade cada vez mais evidenciados pelo desgaste da profissão. Beija a esposa que ainda dorme e parte para mais uma jornada na rua que não sabe como vai terminar. Do outro lado da cidade, o jovem K. se prepara para mais um dia cansativo de trabalho numa loja de reparo de celulares, guardando na mochila itens que irá precisar durante todo o dia até a hora de ir pra universidade durante a noite, incluindo a marmita, escova de dentes e o pente pra ajustar o cabelo black power que ostenta com orgulho, um dos seus poucos sinais de vaidade. Beija a mãe no ponto de ônibus enquanto cada um vai pra um lado diferente da cidade. À noite, apenas F. beija a esposa. A mãe de K. chora diante de um corpo cravejado de balas compradas pelo Estado.

A crônica acima é um reflexo não muito distante de uma realidade de quem sente na pele o medo de uma abordagem policial. Mas também uma antagônica e confusa história que molda a sociedade que hoje tem homens e mulheres negras servindo às forças de segurança do estado que mantém uma política velada que extermina populações negras e periféricas. Pelo menos isso é o que mostra o relatório “Pele alvo: a bala não erra o negro”, produzido pela Rede Observatórios de Segurança Pública. De acordo com o documento, 88,24% das vítimas de letalidade policial no Piauí são negras. Ou seja, de cada 10 mortos pela polícia, cerca de 9 são de pessoas pretas.

Outro ponto preocupante é que a porcentagem apresentada no relatório é maior do que a quantidade de pessoas autodeclaradas negras no Piauí, que corresponde a 79,25% da população, de acordo com o IBGE. Além disso, os dados indicam que a maioria das mortes aconteceram em Teresina, com 56,41% dos casos, o que representa 22 das 39 mortes ocorridas em 2022.

O relatório já está com quatro anos de monitoramento e os dados são coletados por meio das secretarias de segurança pública e suas correlatas. No entanto, nem todos os estados forneceram os dados, apesar das solicitações terem sido feitas via Lei de Acesso à Informação. Em uma análise sobre os dados das edições anteriores, eles destacam que “ano após ano, a letalidade policial contra pessoas negras se mantém alta e não há movimentação dos governos para reduzir os eventos violentos. Ao contrário disso, existe a manutenção da política de guerra às drogas, que mais tem produzido mortes e encarceramento em massa”, diz o relatório, que foi apresentado em novembro de 2023 e que está sendo reapresentado para grupos acadêmicos e pesquisadores para debates, como ocorreu no último dia 18 na UFPI.

Na apresentação do relatório na UFPI, um dos integrantes da Rede e pelo levantamento dos dados no Piauí, o pesquisador Elton Guilherme, destacou a importância de manter o monitoramento, lembrando ainda uma série de dificuldade de acesso aos dados em alguns estados como o Maranhão, que segundo o relatório ajuda a reforçar uma agenda racista, além de não dar “oportunidade de compreender profundamente as desigualdades, identificar disparidades preocupantes que ocorrem no uso da força das autoridades, mapear quais grupos e em quais proporções, além de não promover justiça social”.

Apesar do Piauí colaborar com os dados, ainda existem alguns problemas relacionados à falta de um estudo estatístico referente aos trabalhadores de segurança pública, com dados referentes a raça. Atualmente, na Polícia Militar piauiense são 6026 ativos, já com o novo efetivo das últimas nomeações, mas sem informações sobre raça, o que dificulta um perfil de quem é a Polícia Militar no Piauí.

Segundo dados nacionais do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2021, a maioria do efetivo das forças de segurança no país é de pessoas brancas, correspondente a 56,8%. No entanto, quando se trata de violência, os dados levam para as mesmas discussões sobre extermínio de pessoas negras, tendo em vista que de um contingente de 42% de policiais negros, eles correspondem a 62,7% dos policiais assassinatos, a maioria fora de serviço.

A explicação para isso é que a maioria dos cargos de chefia é ocupada por pessoas brancas, sendo as funções de trabalho ostensivo, rondas e afins ocupadas por pessoas negras, que correm mais perigo em confrontos ou se tornam alvos de grupos criminosos.

Luz, câmera, segurança?

Uma estratégia adotada em alguns estados que visa dar mais segurança tanto para a população como para o agente da polícia é o uso de câmeras fixadas às fardas dos policiais, conhecidas como “bodycam”, que filmam as abordagens e em muitos casos são anexadas aos processos judiciais caso haja suspeita de exagero, contravenção da polícia ou na defesa dos PMs. Elas talvez evitassem a morte como a descrita na pequena crônica que abre esse texto.

Uma reportagem do Fantástico exibida recentemente mostrou diversos casos do uso dessas câmeras por policiais, nos quais em algumas abordagens eles teriam supostamente adulterado uma cena de homicídio praticado por eles, outra em uma abordagem na qual prenderam um jovem acusando-o de tráfico, mas que ficou comprovado a falha dos agentes da lei pelas imagens. Em outro caso, numa abordagem um homem sacou uma arma e foi alvejado pelos militares, tendo as imagens como comprovação de que não houve abuso por parte da PM.

Elas já são usadas em cinco estados brasileiros e estão em fase de implementação em outros sete. O fato é que o uso desse tipo de item é controverso, com um jogo de ações judiciais contra e a favor do uso em determinadas operações e alguns gestores não muito favoráveis, como em São Paulo, onde o governador Tarcísio Freitas [Republicanos] tinha uma opinião desfavorável ao uso e nesta terça [23] afirmou que estuda uma ampliação do programa de câmeras corporais nos uniformes da polícia paulista.

As câmeras devem ser implementadas pela PM do Piauí em pouco tempo. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Apesar da polêmica, o programa deve ser copiado pela Polícia Militar no Piauí com vias de proteger tanto o policial como amenizar os casos de letalidade. A Secretaria de Segurança Pública já tem um projeto para aquisição das câmeras corporais e já está em fase de compras, com os itens atendendo inicialmente um efetivo menor.

No entanto, alguns policiais militares não se familiarizaram com a ideia e alegam que isso intimida a ação, além de ser mais um equipamento que são obrigados a se responsabilizar, enquanto outros afirmam que o problema da câmera é o microfone, que acaba sendo invasivo para além de operações, atingindo o direito à privacidade dos homens da lei, bem como levantam alguns questionamentos sobre o momento em que elas devem ser ligadas.

O diretor do Departamento Geral de Operações da PMPI [DGO], coronel Galvão diz que o programa chegará em pouco tempo nas ruas piauienses e garantirá mais segurança, somado a um investimento maior nas câmeras de trânsito que irão fiscalizam as ruas em todos os bairros da cidade, além de blitz. “São Paulo já tem se dobrado a essa utilização de câmeras e o que nós temos percebido é que na grande maioria das vezes a câmera serve muito mais para absorver, para mostrar as ações positivas do policial militar e muito menos para servir contra o policial. Nós temos vários casos em que o policial teve que usar uma força letal, em que o policial militar teve que reagir e a câmera mostrou que aquilo era necessário. E que só fazendo aquilo, ele poderia ter salvado a sua vida ou salvado a vida de outra pessoa. Então, nós somos muito favoráveis”, destaca.

Para o coronel, com o uso e os bons exemplos colhidos em outras policias, o efetivo piauiense passará a entender a segurança que as câmeras proporcionam. “Existe muito desconhecimento [sobre as câmeras corporais] e às vezes as pessoas emitem opiniões sem ter dados, sem ter nenhum conhecimento a respeito do assunto, mas com certeza depois que isso for a realidade vai mudar esse conceito”, finaliza.

O fato é que com ou sem câmeras, a realidade das pessoas pretas das periferias segue amedrontada e os monitoramentos dos pesquisadores, alguns com o alvo nas costas como Elton Guilherme, ainda continuam, e com sua frase ecoando pelos becos: “O que a sociedade hoje mais me faz perceber é o sentimento de medo”.

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

0 comentário

Deixe um comentário

Avatar placeholder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *