Nem o sol a pino, ao meio-dia, impedia o sobe e desce na Vila Irmã Dulce, zona Sul de Teresina. As pessoas se dirigiam aos seus lugares de votação apressadamente, querendo fugir do calor – ou da sensação de medo. Nos últimos meses, nada pela região dava pistas de que o bairro foi o que mais deu votos ao candidato do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na capital do Piauí. Se na última eleição, em 2018, os moradores pintavam suas casas de vermelho e adesivos com o rosto de Fernando Haddad – candidato petista em 2018 -, neste ano, preferiram se reservar. “A gente queria ver o fim desse ódio que o país entrou”, explica Jussara da Silva, moradora da comunidade.
Até o anoitecer, boa parte dos moradores ficaram quietinhos em suas casas, esperando o fechamento das escolas eleitorais e o início da apuração. Na sexta-feira (28), a comunidade até pensou em comemorar antes da hora, na praça do bairro, visando a possível vitória do presidente no domingo (30). Acontece que ninguém teve coragem de se manifestar antes do resultado, nem mesmo apontar a eleição como ganha.
Passava das 19 horas quando os gritos vieram de dentro das casas: Lula acabava de virar a votação nas urnas contra o candidato à reeleição Jair Messias Bolsonaro (PL). Quem tinha foguete estourava na porta, mirando o céu. Quem tinha corneta, fazia barulho a plenos pulmões. Quem havia segurado o choro, desde o começo da manhã, agora ia às lágrimas.
Em uma disputa apertada, Lula venceu pouco antes das 22h, com a menor diferença percentual em uma disputa presidencial desde 1989 – pouco menos de 2%. Lula recebeu 69,34% dos votos válidos da região Nordeste – única em que ele superou Bolsonaro. A larga vantagem do petista na região foi capaz de conduzi-lo à Presidência, ainda que o atual presidente tenha sido mais votado em outras localidades. No Piauí, Lula bateu seu segundo recorde. No primeiro turno teve 74% e, na disputa de domingo, aumentou mais de dois pontos percentuais, sendo o estado com melhor desempenho de Lula nas eleições gerais.
No Brasil, a abstenção se tornou menor: reduziu de 20,9% para 20,6%. No Piauí, no entanto, a abstenção foi ligeiramente maior: passou de 17,69% para 18,74%. É a primeira vez que a abstenção eleitoral, em uma média nacional, caiu entre os turnos de uma mesma eleição. O resultado pode ser considerado um feito, mesmo com operações de fiscalizações montadas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) em diferentes estados, a maioria em cidades nordestinas. Entre as BRs 316 e 343, no Piauí, barreiras feitas pelos agentes rodoviários paravam ônibus e carros de grande porte. O servidor público, Marcelo Filho, foi uma das pessoas que presenciou as barreiras no norte do estado, na cidade de Floriano, Amarante e na localidade Estaca Zero. “Não querem deixar o Nordeste votar”, contou à reportagem.
Às 22h já era certo que o Brasil tinha eleito um novo presidente. Francisca Maria de Moura, a Neguinha, líder comunitária da Vila Irmã Dulce, decidiu que ninguém deveria ficar enclausurado dentro de casa. Desceu sozinha, em uma caminhada convocando os moradores para uma passeata improvisada pelas ruas da comunidade. Ela cantava, sorria e chorava a vitória de seu candidato. A pequena manifestação durou pouco mais de duas horas, e contou com quase 300 pessoas em carros, motos, bicicletas e a pé. Foi tímida, mas suficiente para despertar a alegria contida nos moradores da periferia.
Enquanto percorriam as ruas, Neguinha lembrava ao microfone dos últimos quatro anos sob a gestão de Bolsonaro. Durante a pandemia, os moradores com sintomas da Covid-19 tinham que se deslocar para bairros vizinhos a fim de ter acesso aos testes da doença. Até hoje, não se sabe quantas pessoas foram vítimas na comunidade. Tanto os remédios quanto as testagens demoraram a chegar na Vila Irmã Dulce. O mesmo aconteceu com a lenta chegada das vacinas.
A diferença de governos é sentida até hoje pelos moradores. Em 2003, quando Lula foi eleito presidente pela primeira vez no país, embora localizada ao lado do Rio Parnaíba, a comunidade não tinha água encanada. E ainda demorou quase uma década para que pelo menos 10% dos moradores da região recebessem água potável pelas torneiras, sem precisar buscar nos poços artesanais. A energia elétrica também não existia para os moradores. “Faltava de um tudo, o básico para se viver”, relembra Neguinha. “Foi a primeira vez que a gente viu a favela tendo direitos”.
No seu primeiro mandato, Lula desembarcou em Teresina direto para a Vila Irmã Dulce, em 2003. Acompanhado de quase 30 ministros, pretendia mostrar à sua equipe de governo um exemplo da miséria no país. Na época, cerca de 3.500 pessoas moravam na ocupação, em situação de irregularidade. No dia, o número de pessoas na favela chegou a ficar 10 vezes maior somente para ver a visita do presidente. Uma delas era Hilda Mesquita, de 44 anos, mãe de seis filhos e portadora do vírus HIV. Com uma caligrafia insegura e o pouco português que aprendeu na escola, ela chegou a escrever uma carta para Lula pedindo ajuda financeira. A mulher não esperava viver muito, tendo em vista o avanço da doença, mas esperava viver com dignidade os dias que lhe sobravam. Pela primeira vez vendo um presidente da república diante de si, ela ousou sonhar um futuro diferente para a favela que viu nascer.
Hilda não chegou a ver a Vila Irmã Dulce crescer, mas ainda no segundo mandato de Lula, a comunidade recebeu 482 moradias construídas pelo programa “Minha casa, minha vida”. O PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, criado em 2007 por Lula, foi responsável por trazer energia elétrica, saneamento básico e investimentos na saúde e educação da região. “A gente, devagarinho, foi virando e sendo tratado como gente”, relembra Maria Lúcia Bucar, uma das primeiras moradoras da favela. No entanto, boa parte dos projetos e serviços financiados pelo governo foram progressivamente abandonados por Michel Temer, a partir de 2016, logo após Dilma Rousseff (PT) ser impeachmada. No governo Bolsonaro, eles deixaram de existir.
Para derrubar uma favela é preciso disposição. Isso porque, segundo Neguinha, todas elas começam forjadas na necessidade de sobreviver um dia de cada vez. “Quando Bolsonaro diz que a favela do Complexo do Alemão não presta, ele também diz que a Vila Irmã Dulce não presta”, declara. “A gente é favela e somos favelas com muito orgulho, porque não é fácil passar com uma pandemia sem vacina, não é fácil passar o dia sem nada na barriga para comer”, complementa. “É preciso ter força pra ser de favela”.
Por isso, ela acredita que o resultado não poderia ser outro: os dois maiores colégios eleitorais que abarcam a população da comunidade deram 83% dos votos para Lula na noite de ontem. Dos quase cinco mil eleitores da Vila Irmã Dulce, pouco menos de 500 foram dissonantes, e apostaram numa reeleição de Bolsonaro. Na pracinha da Vila Irmã Dulce, enquanto a população comemorava, a emoção foi tanta que Neguinha até esqueceu de tirar uma foto. Não fez tanta diferença: para ela, ficou tudo registrado na fagulha da memória: “É um dia que nunca vou esquecer”, comentou. “O povo agora volta ao poder”.
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